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EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO: do pecado ao inferno

1.7 Influência de fatores externos

A teologia moral, conquanto apegada à tese do livre arbítrio, admite que a vontade do homem possa ser impulsionada por fatores externos, qualificados de tentações. São as concupiscências, o mundo e o demônio.

As primeiras identificam-se com os apetites da natureza humana: da carne, dos olhos e o orgulho da vida. A carne anseia por sexo, os olhos podem ansiar pela posse de coisas alheias, linha de raciocínio que faz concluir pela alta valoração da castidade e da propriedade. O orgulho da vida é o amor próprio excessivo, acompanhado do desejo do indivíduo de ser estimado pelos outros, revelador da preocupação da Igreja com que o homem não procure se igualar a Deus. É, de certo modo, uma ordem de idéias assemelhada à que explica o pecado original, tido por responsável pela origem das concupiscências, que são agravadas pelos pecados que o indivíduo comete durante a vida.

Essas concupiscências, por sua vez, são as raízes dos vícios, chamados pecados capitais (de caput = cabeça). São eles: a soberba, a luxúria e a avareza, aos quais se opõem as virtudes da humildade, castidade e da liberalidade. É a dicotomia da teologia moral, opondo o bem ao mal, como a sugerir alguma ação contra o mal para que o bem seja recomposto.

Figura 4. A dicotomia é retratada pelo anjo bom, em cores azuis, com os dez mandamentos num pergaminho,

oposto ao anjo mau, em cores escuras, asas negras, queimando no inferno e sugerindo o gozo da vida material, como diziam os romanos nos seus banquetes: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.

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Figura 5. Enquanto Jerusalém dorme, a maldade se espalha1 por meio de tudo aquilo que suja2. Os pecados capitais, símbolos maiores do mal, situam-se na origem do pensamento que explicará a pena, ou a penitência, que limpa a sujeira espiritual (o detergente e a escova).

1 A maior das maldades é a crucifixão de Jesus (ver as três cruzes no alto do calvário, na parte superior direita do quadro).

2 Certamente não se pensou nisso, mas a figura 5 é curiosa: a parte inferior da foto seria o confessionário, com água e detergente para limpar as gorduras do pecado?

O mundo é também tido por foco de tentações. Há vários significados para mundo: o planeta em que se vive, o lugar onde se pode ser salvo por Cristo, ou o reduto do mal. É certamente em relação a essa última concepção de mundo que se refere a teologia moral e contra o qual o indivíduo deve lutar.

A tentação do mundo é, por excelência, a tentação do sexo, visto como algo artificialmente exaltado pelos meios de comunicação, provocando uma erotização do cérebro, evidenciando uma invasão no campo da educação e uma contaminação da mentalidade geral. Já se vê que a tentação do mundo se equipara à concupiscência da carne, esta, assim, duplamente vergastada pela teologia moral.

Muito mais que o homem, é a mulher o diabolo (aquele que separa, que divide) que acorrenta e arrasta para o inferno, cena bem representada nas figuras 6 e 7, que tem ainda duas jovens convidando um jovem com cigarro na mão (outro vício) para um programa no motel, o que contrasta com a imagem que está no vitral: São José, o pai casto que tem na mão direita o lírio da pureza e na esquerda o menino Jesus.

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Tanta pureza é emblemática, sobretudo no confronto com o mal, materializado na tentação representada pelo ser do sexo oposto, eterno tentador.

A identificação do outro sexo com o pecado é recorrente, não só na religião, como na cultura geral e nas artes em especial. Obras literárias, filmes, encenações de diversas espécies freqüentemente associam a possibilidade de relacionamento físico com o sexo contrário com a idéia de pecado. Assim, é mesmo verdade que o pecado mora ao lado.

A mulher que já foi a bruxa do Malleus Maleficarum36 está retratada de forma paradigmática na figura abaixo como a face bela da outra face que é o próprio demônio37, que é o representante do mundo material, sempre a desviar o homem de seu caminho correto (figura 8).

36 Em 1484, em substituição do Manual dos inquisidores, os monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger deram termo aos trabalhos de elaboração do que seria, a partir daquele momento, o grande instrumento de ensino e sistematização do combate às heresias, bruxarias e a toda ordem de males que afligia o ocidente católico. O resultado desse trabalho foi a publicação do grande manual da inquisição católica em fins do século XV, o livro Malleus Maleficarum. Este livro foi avaliado e consagrado pelo Papa Inocêncio VIII – através da Bula Papal de 1484 –, que proferiu autoridade inquisitorial aos dois monges supracitados, determinando a legitimidade de seus processos. O Malleus Maleficarum, portanto, deve ser compreendido como um discurso paradigmático no sentido de configurar um grande esforço normativo sobre os procedimentos e métodos a serem adotados pela inquisição nos diversos locais em que ela existiu no período moderno. O livro é disposto de três partes principais. Na primeira os autores promovem uma exaltação ao demônio e o liga à questão da bruxaria, através da ideologia inquisitorial; na segunda o Malleus Maleficarum ensina a reconhecer, no cotidiano da população, uma bruxa e a neutralizá-la; na terceira, e última, são dispostos os julgamentos e as sentenças a que são submetidas as, assim classificadas, bruxas. O livro foi largamente utilizado pelos inquisidores, que possuíam a obra até em formatos em miniatura para poder caber no bolso. Tal obra foi popular entre os juízes até o século XVIII, servindo de base não só para os tribunais eclesiásticos como para os tribunais leigos. Na terceira parte da obra mencionada estão especificadas as medidas judiciais a serem tomadas contra as bruxas e todos os tipos de hereges, além do modo de julgar, desde o início do processo até a sentença. As informações acima foram retiradas de comunicação feita por Lorena Gouvêa de Araújo, no XIII Encontro de História Anpuh – Rio, com o título de Sob o signo do demônio, disponível em

http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1215205483_ARQUIVO_ArtigoAnais- Anpuh-Ultimaversao.pdf, acessado em 05 de maio de 2009, 15h00.

37 Trata-se de uma imagem exageradamente chocante que, mesmo no contexto das pinturas dessa igreja, acabou sendo coberta, pelo Padre Romeu Antonio Parolize, por um mural do dízimo, como se pode ver na figura em anexo n. 24.

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Visitei diversas vezes a igreja de Itajobi, e a cada visita descobria novidades, principalmente mais demônios e mulheres tentadoras, como esta imagens, que é mulher e diabo ao mesmo tempo, com chifres, pé de bode e garras na mão. Não existem homens atraindo mulheres para o inferno, apenas mulheres que atraem os homens. O padre que mandou pintar a igreja formou-se no seminário menor de São Carlos, estudado na dissertação de mestrado de Tagliavini (1990:78) que cita o trecho do livro O bom seminarista em férias, do Padre Justino Orgonovo, que manda evitar nas férias todas as ocasiões de pecado:

* PESSOAS PERIGOSAS:- o elemento feminino e gente que não frequenta igreja, os "mundanos".

Toda cautela é pouca nas relações necessárias com as pessoas de sexo diferente. Esteja sempre presente ao teu espírito aquela sentença do Espírito Santo, já num livro do Antigo Testamento:- Propter speciem mulieris multi perierunt, ex hoc concupiscentia quase ignis exardescit (Ec. IX, 89) 38. E mais adiante:- Melior est iniquitas viri, quam mulier benefaciens (ib. XLII, 14)39 - maneira expressiva de nos acautelar contra os perigos e tentações que a mulher traz ao mundo.

Esse livro, segundo Tagliavini informou, era utilizado por todos os seminaristas, para fazerem suas meditações em férias, freqüentemente dirigidas pelo próprio vigário.

Os seminaristas devem dar exemplo de seriedade e de perseverança no seu propósito de manter uma vida casta e voltada para sua formação espiritual, mesmo quando distantes fisicamente do seminário. Por isso o dever de visitas constantes à paróquia e sua submissão ao vigário do local das férias.

38 Muitos se perderam por causa da beleza de uma mulher, por sua causa o amor se inflama como o fogo (Eclesiástico, 9, 8).

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A tentação do sexo, no contexto da sociedade contemporânea, é, na verdade, apenas uma das muitas tentações a que o indivíduo está submetido. Nunca é demais considerar que são as tentações que movem a máquina da produção, levando as pessoas ao consumo de bens, assim transformados em mercadorias. Dessa maneira, o ser humano é tentado cada vez mais, com o emprego dos recursos também cada vez mais sofisticados da mídia, a desejar de tudo: roupas, carros, sexo, juventude, celulares, um corpo bem definido, comida; o lazer é previamente determinado e até mesmo a natureza ganha contornos projetados em planos de venda de viagens, lotes, apartamentos, resorts etc.. Qualidade de vida é uma categoria de que se apropriaram as forças produtivas, que cuidam de associá-la ao desfrute de suas mercadorias.

Trata-se de uma lógica explicável a partir da compreensão do modelo de produção adotado: como as necessidades básicas do ser humano são finitas, em decorrência da limitação do próprio corpo, o capital inventa necessidades, que lhes possibilitam vender o supérfluo.

Nessa ordem de coisas, as tentações do mundo são apenas tentações de um determinado modelo de mundo40. A teologia moral, entretanto, não chega a esse tipo de questionamento.

A outra tentação é o próprio demônio. Este é um ser vivo, espiritual, pervertido e corruptor, segundo magistério de Paulo VI41

. Tal ser, tido por existente pela Igreja, que de tempos em tempos reafirma essa tese, é a própria contraposição a Deus, de novo reiterando a dialética do bem e do mal.

A igreja de Itajobi está povoada por demônios. O mais horripilante é aquele que representa um bode cravejado de pecados por todas as partes do corpo, queimando no fogo do inferno e, num exagero, encimado ainda por outro diabo, príncipe da zona do pecado (figura 10).

40 Dona Cida, funcionária da paróquia de S. José, em Itajobi, em cuja igreja matriz as imagens constantes dessas figuras foram captadas, disse ao autor (08/maio/2009) que o padre que mandou pintá-las, na década de 1980, alertou no sentido de que as cenas identificadas com o mal do mundo, objeto das pinturas, iriam ocorrer. E tudo isto está mesmo acontecendo agora..., confirma ela.

41 Em 15/nov./1972, cf. Obediência e...,p. 112. Talvez pareça um pouco diversa, na obra Grande sertão:

veredas, de João Guimarães Rosa, a conclusão a que chega o narrador, , que, a certa altura de sua fala,

divagando a propósito da existência concreta do demônio, conclui: “[...]: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo.” (1986: 3).

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Figura 10. Essa imagem teve o mesmo destino daquela retratada na figura 8, da mulher diabo, coberta

O demônio é tido por criatura de Deus, mas fadado sempre à derrota frente a este, desde que, por querer a ele se igualar, mudou-se, revoltado, para o mundo das profundezas. Assim, enquanto Deus é luz, o demônio é treva e essa treva deseja ele propagar por entre os homens. Ser tentado pelo demônio é sina do humano. É modo de ser posto à prova e mostrar sua resistência e amor a Deus, fazendo prevalecer o bem sobre o mal.

Bem se vê que a dicotomia entre bem e mal está no centro dos argumentos utilizados pela teologia moral, apresentando-se invariavelmente como categorias absolutas e claramente definidas. Assim é que a linha de raciocínio da estrutura teórica religiosa emprega um quadro simples e direto, que fala imediatamente ao fiel, sem muitas intermediações, dele não reclamando – e mesmo dispensando – qualquer reflexão mais sofisticada.

A lei do Estado, conquanto na maioria das vezes valendo-se de fórmulas complexas, que pedem uma interpretação elaborada e minuciosa, tem igualmente por pressuposto idéias simples, que remetem ao valor do bem e ao desvalor do mal, estes também identificados com situações bem definidas do dia a dia: matar, roubar, caluniar são o mal. Eu não estou matando nem roubando, diz alguém, defendendo-se de uma acusação qualquer. Presume-se a conclusão do argumento: Portanto não estou fazendo mal (nem praticando crime).

Paradoxalmente, a simbologia da cruz, representando a lembrança do grande mal que o mundo fez a Jesus, aparece justamente como relacionada ao poder do bem contra o mal, capaz de afugentar o que é indesejável e causar pânico ao próprio demônio.

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Figura 11. Ante a força de Jesus, o diabo nada pode, a não ser blasfemar e insultá-lo: nojento, porque, com

seu poder e com a cruz – cujo simbolismo é forte no credo católico –, vence toda a tentação.

Há mesmo certa programação nessas batalhas do bem contra o mal, como diz Paulo em 1 Cor. 10, 13:

As tentações que vos acometeram tiveram medida humana. Deus é fiel; não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças. Mas, com a tentação, ele vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar.

Curiosamente, não se nega certa popularização do demônio, desde que é um adversário incluído no sistema. A literatura já arrolou inúmeros sinônimos para sua designação, sendo de domínio público termos como: Diabo, Maligno, Capeta, Príncipe das Trevas, Arcanjo, Canhoto. É interessante notar outros, trazidos por Guimarães Rosa (1986:

16; 29-30), pródigo em captar regionalismos: Tinhoso, Arrenegado, Cão, Cramulhão, Indivíduo, Galhardo, Pé-de-Pato, Sujo, Homem, Tisnado, Coxo, Temba, Azarape, Coisa- Ruim, Mafarro, Pé-Preto, Canho, Duba-Dubá, Rapaz, Tristonho, Não-sei-que-diga, [O]que- nunca-se-ri, Sem-Gracejos.

Dele também fala, com fino espírito, Câmara Cascudo (Dicionário, s/d: 353):

No Brasil é o diabo português, com os mesmos processos, seduções e pavores. Como não me foi possível compreender um demônio entre os indígenas ou negros escravos, creio que negros e ameríndios ajudaram ao satanás dos brancos, ampliando-lhe domínio e formas, mas sem que lhe dessem nascimento. Continua o diabo metamorfoseando-se diversamente em bode, porco, mosca, morcego. [...] A sinonímia em Portugal é rica. Antero de Figueiredo (Senhora do Amparo, Lisboa, 1920) registrou-a em boa porção: “Ele é o tanso que apalerma; o carocho que sarna; o enguiço que tolhe; o azango que encanzina; o onzoneiro que engoda; o diacho que zaranza; o nico que nos aborrece; o careca que nos rala; o dianho que nos enreda; o tição negro que enfarrusca; a coisa-má que ataranta; [...] o tisnado, o zarapelho, o fusco, o cornudo, que entende com a gente, nos tira a paciência, nos impertina, nos arrelia.

Mas o estereótipo, se serve para amedrontar e, ao mesmo tempo, para popularizar a figura do demônio, também causa rejeição, por conta, às vezes, de certo exagero. Veja-se diálogo extraído da literatura policial inglesa, em romance de Agatha Christie (1987: 58- 59):

- Eu fui criada acreditando no diabo – disse a Sra. Oliver, como se desculpando. Apesar de achá-lo um tanto tolo. Para que o rabo, os cascos de cabra, e o comportamento de canastrão de opereta? 42

A teologia moral, se por um lado busca fazer uma estruturação do pecado, fazendo dele objeto de uma complexa teorização, reconhece que, além de não pecar, o homem deve também evitar situações de perigo, que poderão, em determinadas circunstâncias, facilitar o pecado. Tais situações, embora não constituam, por si mesmas, uma tentação, são fontes de tentações e, por isso, devem ser evitadas. Assim se há de dar em relação a locais freqüentados por pessoas de má vida e outros análogos.

42 A fim de amedrontar a filha de três anos – narra Tagliavini -, a mãe a ameaça com o lobo mau. Fica sem ação diante da resposta da criança: Onde ele está, que eu quero morder a bunda dele!?!

62 É sempre interessante notar que as tentações costumam ser vistas pela teologia moral como algo externo à consciência do ser humano, que nela contudo penetra para fazê- lo cair em pecado. A origem do mal não é propriamente a consciência humana, da forma como foi moldada, nem se trata de analisar se ela constitui o resultado de um processo social de construção. Dito em outras palavras, a consciência socialmente construída é idéia que não é considerada pela teologia moral. O mal se introduz na consciência, mas não é seu habitante natural.