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EM NOME DO ESTADO: dos delitos e das penas

2.12 Crime, fato antijurídico (ou ilícito)

Como já falado, de acordo com a prevalente teoria do crime, o delito é o fato típico e antijurídico, ou ilícito, ou ilegal. Ser típico é um indício de ilicitude. Assim se manifesta Heleno Fragoso:

A conduta típica é, em regra, antijurídica, funcionando a tipicidade como indício da antijuridicidade. Em conseqüência, a análise da antijuridicidade se resume ao exame da ocorrência, na realização da conduta típica, de causas de justificação, que excluam a ilicitude. Daí dizer-se que a teoria da antijuridicidade é, na prática, uma teoria do conforme ao direito (Maurach), pois se trata de saber se a conduta está ou não justificada (op. cit.: 182).

Essa função indiciária do tipo desaparece, ainda na lição de Fragoso, quando se tratar dos chamados tipos abertos, em que

não aparece expressa, por completo, a norma que o agente transgride com o seu comportamento, de tal maneira que não se contém no tipo a descrição completa do comportamento delituoso, que depende da transgressão de normas especiais que o tipo pressupõe (ibidem: 183).

Estes seriam os delitos culposos, em que a conduta se dirige a fins geralmente lícitos e não ao resultado, os comissivos por omissão, nos quais a inclusão no tipo depende de um dever de impedir o resultado, ou aqueles em que a descrição do tipo menciona o conhecimento da ilicitude por parte do agente, em geral com expressões como sem justa causa, indevidamente etc.. Em relação a essas hipóteses arremata o mesmo autor: No caso de tipos abertos, a ilicitude deve ser estabelecida pelo juiz, verificando se houve a transgressão das normas que a incriminação pressupõe (ibidem: 184).

Na realidade, quer parecer que a falta desses requisitos, nos exemplos acima, mais aproxima a conduta da ausência de tipicidade que de ilicitude.

A inexistência de justificativa para a conduta típica leva à sua antijuridicidade, o que quer significar que esta é um conceito negativo: existe antijuridicidade, ou ilicitude, onde não há justificativas.

É aí que se chega à categoria das descriminantes, eximentes, ou simplesmente justificativas, que são, na fórmula do Código Penal: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito.

Estado de necessidade é a justificativa caracterizada pela conduta de alguém que, em situação de extremo perigo, que não provocou voluntariamente, nem podia evitar de outra maneira, sacrifica um direito alheio para salvar o seu, ou o de outrem, desde que o direito salvo seja proporcional ao que foi sacrificado.

174 Há, por exemplo, certo consenso doutrinário para considerar em estado de necessidade o indivíduo em situação de penúria que subtrai alimentos e gêneros de primeira ordem para conseguir manter-se com vida e saúde e desde que não tenha outra alternativa para isso.

Não pode se valer dessa justificativa, diz o Código Penal, quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. É quanto dispõe o parágrafo primeiro do art. 24. Procura-se evitar que agentes públicos cuja função é justamente atuar em situações de risco e que, por isso mesmo, forçosamente se expõem ao perigo para salvar terceiros, sintam-se liberados do cumprimento de sua tarefa.

Mas a interpretação corrente dessa norma é que, mesmo no caso do policial, do bombeiro, ou do atendente de um pronto-socorro público, pessoas que têm, por conta da sua função, essa obrigação legal, não se lhes é exigido heroísmo, a ponto de sacrificar inteiramente bens jurídicos importantes nesse enfrentamento da situação perigosa.

Discute-se, por outro lado, se está amparado pela eximente quem tiver provocado o perigo por culpa (negligência, imprudência ou imperícia), considerando que, dessa forma, não o provocou por sua vontade, sendo esta a expressão normativa que representa um dos requisitos para a configuração da justificativa.

Haverá, por outro lado, legítima defesa quando alguém, injustamente agredido, agir, com moderação e usando apenas os meios necessários, para fazer cessar essa agressão, que pode ser atual ou iminente, a direito próprio ou alheio.

Qualquer direito pode ser legitimamente defendido, não havendo aqui, segundo o magistério de Nelson Hungria (Comentários, 1983, v. 1, tomo II: 244), que exigir proporcionalidade entre os bens em questão - o que entretanto não é pacífico entre os teóricos. O exigível, segue Hungria, é que o sujeito que se defende utilize o meio mais inofensivo, dentre os disponíveis, para fazer cessar a agressão; ainda que o utilize com moderação, vale dizer, com intensidade estritamente necessária para afastá-la.

Se ultrapassar esse limite, converte-se de agredido em agressor e sua conduta escapa, daí em diante, da proteção da justificativa, caindo no âmbito da ilicitude. O oposto de moderação é, por conseguinte, o excesso, que possivelmente constituirá um fato típico e antijurídico, doloso ou culposo, conforme o caso; pode também ocorrer, de outro lado, que,

fugindo ao enquadramento em qualquer figura típica, por ser, por exemplo, fortuito, caia no vazio da atipicidade penal.

É igualmente preciso que a defesa, para ser legítima, atue contra uma agressão injusta. A injustiça da agressão mede-se pela verificação do que é contrário ao direito; essa contrariedade não é necessariamente a um direito de ordem penal e nem mesmo pressupõe uma norma explícita proibindo, ou punindo, o comportamento do agressor: basta que a ação deste represente violação de um princípio jurídico, reconhecido pela ordem vigente, assegurador de um direito qualquer, que tal agressor ofende, ou tenta ofender.

Além de injusta, a agressão deve ser atual – a que está acontecendo no momento –, ou iminente – a que está para acontecer e, segundo um juízo de probabilidade, acontecerá se o agressor não for contido.

O estrito cumprimento do dever legal é a obediência de alguém a uma obrigação que lhe é imposta por lei, dentro dos estritos limites que lhe são permitidos, caso em que, embora ferindo direito alheio, o sujeito não comete crime. O funcionário que, no exato cumprimento de seu dever funcional e sem cometer excessos, efetua busca em determinado estabelecimento, munido de um mandado regularmente expedido, apesar de estar violando domicílio (por equiparação), não está cometendo crime.

O exercício regular de um direito dá-se quando alguém faz aquilo que a ordem jurídica lhe autoriza, também sem excessos. Essa autorização às vezes é resultante dos costumes sociais, outras da própria lei. São exemplos a prisão em flagrante efetuada por particular, a repreensão dos filhos pelos pais, mesmo que às vezes com algum rigor, a retenção de livros da empresa contra ato ilegal de quem os queira apreender.