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EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO: do pecado ao inferno

1.6 A infração: pecado

Conhecidos o fim e os fundamentos da teologia moral, as características dos atos humanos, as situações que podem levar o indivíduo a determinadas práticas, a voluntariedade, as causas agravantes e atenuantes de seu comportamento, a lei divina e a lei humana, a consciência, que é o instrumento pelo qual o homem compreende seus atos e sua conformidade com os caminhos que o levam ao fim supremo, a universalidade dos princípios morais, é hora de passar à entidade que está no centro do processo pedagógico

31 O Transtorno Obsessivo-Compulsivo Espiritual leva o católico a confessar-se todos os dias ou a fazer penitências sem fim por medo do castigo eterno.

religioso tal como foi escolhido para tema deste trabalho: a pedagogia baseada na repressão. Essa entidade é o pecado.

Pecar é transgredir, romper as regras de procedimento como foram postas por alguém e de algum modo. A noção de pecado pressupõe a noção de Deus, posto que pecar significa uma negativa a Deus. É tido mesmo como uma recusa ao amor divino e uma ingratidão. Sua gravidade não está em fazer Deus sofrer, mas em violar a ordem estabelecida por ele no tocante à regulação da vida humana na terra.

A teologia moral repudia o relativismo, que procura ver com olhos flexíveis as ações dos homens dependendo do universo cultural em que ocorrem. Repudia igualmente a análise marxiana, que entende o pecado como uma falta perante os homens, reduzindo tudo ao pecado social. A palavra de ordem contra essas posturas é dada por Pio XII, depois dos horrores da 2ª Guerra Mundial, em 26 de outubro de 1946: O pecado do século é a perda do sentido do pecado.

Mas uma aproximação com a Escola Positiva do Direito Penal não pode ser ignorada. Ao abordar a categoria pecado, a teologia moral o interpreta como o sintoma de traumas sofridos pelo pecador na sua educação, revelador portanto de falhas no seu processo educativo – o que reforça o enfoque da ordem religiosa repressora como uma forma de educar. Se o pecado é resultado de má educação, a pena, ou o castigo, significam fatores de reeducação, o que precisamente constitui um dos fundamentos tradicionalmente aceitos da pena criminal.

Os pecados podem ser: contra o Espírito Santo (o mais grave): representa a recusa do homem ao perdão e à graça de Deus; mortal, ou grave: quando se relacione a matéria grave, seja praticado com a consciência da ilicitude e vontade deliberada; ou venial (de vênia, desculpa), ao qual falta um dos componentes do pecado grave.

Essa não é a única classificação possível, havendo outra que inclui nessa série o pecado leve, que considera mortal o pecado quando existe a intenção do infrator de se revoltar contra Deus. Isso constituiria uma espécie de segunda intenção por parte do pecador, o que significa que à intenção de agir se soma a de atingir determinada finalidade que poderia não ser alcançada tão somente pela conduta.

A afirmação do livre arbítrio do ser humano freqüentemente aparece nas diretrizes da Igreja, considerada sua natureza de premissa indispensável à repressão ao pecado. Assim

46 é que este é visto como ato pessoal do indivíduo, nunca do corpo social que constitui o contexto da sua vida. Para João Paulo II, segundo o texto da Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia,

O pecado, no sentido próprio e verdadeiro, é sempre um ato da pessoa, porque é um ato de um homem, individualmente considerado, e não propriamente de um grupo ou de uma comunidade. Este homem pode ser condicionado, pressionado, impelido por numerosos e ponderosos fatores externos, como também pode estar sujeito a tendências, taras e hábitos relacionados com a sua condição pessoal. Em não poucos casos, tais fatores externos e internos podem atenuar, em maior ou menor grau, a sua liberdade e, conseqüentemente, a sua responsabilidade e culpabilidade. No entanto, é uma verdade de fé, também confirmada pela nossa experiência e pela nossa razão, que a pessoa humana é livre. E não se pode ignorar esta verdade, para descarregar em realidades externas — as estruturas, os sistemas, os outros - o pecado de cada um. 32

Nessa linha de raciocínio, mesmo a categoria pecado social, aceita pela teologia moral, nada tem a ver com um tipo de infração da sociedade. É o mesmo pecado pessoal só que com repercussão social mais alargada, como ocorre na hipótese de a infração atingir um número expressivo de pessoas, ou de qualquer modo causar um dano comum.

O pecado, em geral, é uma conduta afirmativa, caracterizada por um fazer. Através de um movimento corporal qualquer, alguém se manifesta através de um ato, podendo ou não haver, por conta disso, modificação da realidade. É uma conduta comissiva. Admite-se também, ao lado do pecado comissivo, o pecado por omissão. É a omissão que ocorre quando o sujeito tinha o dever de agir e, embora com a consciência desse dever, não age. Há igualmente os pecados internos, ou pecados do coração. São aqueles que não chegam a um fazer físico, nem provocam modificação alguma na realidade, ficando na esfera íntima do indivíduo. Assim, este peca por simples pensamento, ou, na linguagem da teologia moral, permanecem no coração do homem. São significativas as palavras de Jesus Cristo, em Mateus 5, 27-28, a propósito das nuances do pecado do adultério: Ouvistes o que foi dito: não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.

32 cf. item 16 da exortação apostólica pós- sinodal Reconciliatio et Paenitentia de Sua Santidade João Paulo II ao episcopado, ao clero e aos fiéis sobre a reconciliação e a penitência na missão da Igreja hoje, de 02-dez.- 1984. In http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_exhortations/documents/hf_jp- ii_exh_02121984_reconciliatio-et-paenitentia_po.html, consultada em 19-maio-2009, 20h30.

Na esteira desse raciocínio e de modo com ele coerente, as espécies de pecados internos são: a complacências com os próprios pecados do passado, ou a tristeza por não ter utilizado uma ocasião propícia para pecar; a imaginação condescendente em relação às coisas más; os maus desejos ou o simples desejo de praticar determinado mal se fosse possível33.

No mundo, quase tudo afasta da igreja e se torna ocasião de pecado, como na imagem a seguir:

(Figura 3)

33 Há tantas maneiras de cometer pecado que fica difícil não pecar. E talvez esteja aí o maior fator de poder da Igreja em manter submissos os seus fiéis. Há certo desejo de menoridade por parte daquele que se submete acriticamente, dependendo de outro homem (o padre) para reconciliar-se com Deus, pelo sacramento da confissão, ou para ser enviado ao ostracismo eclesiástico pela excomunhão.

48 Poucas categorias da ordem religiosa são dotadas de uma simbologia tão expressiva e extensa quanto o pecado. Pecado é o mal e esta palavra já configura um símbolo forte do que é indesejado. Mas para o mal do pecado a religião constrói um acervo invejável de imagens e vocábulos que têm por finalidade afugentar o fiel da simples tentação de praticá- lo. A ordem religiosa dialoga com os indivíduos por intermédio desses símbolos, o mesmo se dando no diálogo entre os fiéis entre si, de tal forma a reforçar a repulsa àquilo que de forma tão intensa é qualificado de indesejado ou de proibido.

A ordem jurídica fará coisa parecida ao abordar o delito, categoria que não tem existência ontológica, qualidade que todavia o processo educativo jurídico-penal tradicional se esforçará por demonstrar, identificando-a com o que é naturalmente indesejado e nocivo – nisso aproximando a noção de crime da de pecado -, deixando, no mais das vezes, totalmente de lado a pretensão de explicá-lo segundo critérios de reafirmação de uma ordem economicamente seletiva e rotuladora de papéis sociais, que, afinal de contas, coloca o subalterno em seu lugar.