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EM NOME DO ESTADO: dos delitos e das penas

2.17 A pena: suas finalidades e condições

Dotar de um sentido concreto a resposta repressiva do Estado foi um dos móveis de toda essa teorização no campo penal. Esse objetivo, ou esses objetivos, são materializados na pena.

Tendo cometido um crime e sendo culpável, presentes, se necessário, condições objetivas de punibilidade e não tendo esta última sido extinta por uma das causas para tanto previstas, o agente fica sujeito a uma pena. A pena é a resposta ao crime cometido pelo imputável e possui, segundo a doutrina, finalidade retributiva e preventiva. Pune-se o delinquente, retribuindo-lhe o mal que provocou, e se ensina a ele e à sociedade (prevenção especial e prevenção geral, respectivamente) o que resulta para quem age criminosamente, procurando-se, com isso, desestimular a prática de novos delitos. É a outra face da educação pelo castigo, ou pela perspectiva dele.

A ação retributiva da sanção penal concretiza um revide à agressão, um retorno que se dirige ao criminoso tendo em vista o mal por ele praticado. Nessa concepção pouco difere da vingança, pura e simples, à qual se dá uma roupagem sofisticada e sistematizada. Repudiar um mal praticando outro mal no sentido inverso parece algo inerente à natureza humana, conquanto essa aparente naturalidade não baste para justificar

188 tal comportamento. Historicamente se costuma buscar muito longe a primeira visão desse fenômeno. Mirabete, apoiado em Manoel Pedro Pimentel, informa que, de acordo com os dados que se puderam obter, é possível fazer

uma forte suposição de que a pena, como tal, tenha tido originariamente caráter sacral. Não podendo explicar os acontecimentos que fugiam ao cotidiano (chuva, raio, trovão), os homens primitivos passaram a atribuí-los a seres sobrenaturais, que premiavam ou castigavam a comunidade por seu comportamento. Esses seres, [...] eram os totens [...]. Da mesma época seriam as proibições conhecidas como tabus, palavra de origem polinésia que significa ao mesmo tempo o sagrado e o proibido, o impuro, o terrível. As violações das regras totêmicas ou a desobediência ao tabu acarretavam aos infratores os castigos ditados pelo encarregado do culto, que também era o chefe do grupo, e tinham um caráter coletivo. Todos participavam de tais castigos porque as infrações atraíam a ira das entidades sobrenaturais sobre todo o grupo. A responsabilidade coletiva apresentava-se na cólera dos parentes, na vingança de sangue [...] (Manual, 2005: 243).

Daí se podem perceber algumas informações interessantes: que a origem da pena criminal e da sanção religiosa é a mesma, que ordem espiritual e terrena eram uma só realidade, que esses castigos eram também os mesmos, que a idéia da pena como retribuição sempre esteve presente e que a responsabilidade de arcar com ela, bem como de infligi-la, era de todo o grupo, coletiva portanto.

Com o andar do chamado processo civilizatório, elaborou-se, no Ocidente, com pretensões científicas, toda uma teoria da pena, inclusive da sua função retributiva. Busca- se na principiologia moralista desenvolvida por Kant, no século XVIII, o fundamento para um castigo destinado a satisfazer uma exigência ética, a de compensar o mal e repor em seu lugar a ordem transgredida, assim retomado um natural equilíbrio das relações sociais; o mal da pena seria um imperativo categórico, efeito necessário do delito.

Dá-se à teoria que propõe a pena como retribuição o nome de absoluta e foi a que adotou a Escola Clássica do direito penal, corrente de pensamento que se forma na primeira metade do século XIX e que tem em Francesco Carrara um de seus principais expoentes. Sobre a finalidade da pena ele escreve que

O fim da pena não é que se faça justiça, nem que seja vingado o ofendido, nem que seja ressarcido o dano por ele sofrido; ou que se amedrontem os cidadãos, expie o delinqüente o seu crime, ou [se] obtenha a sua correção. Podem, todas essas, ser conseqüências acessórias da pena, algumas delas desejáveis; mas a pena permaneceria como ato inatacável mesmo quando faltassem todos esses resultados. [...] O fim primário da pena é o restabelecimento da ordem externa da sociedade (2002, v. 1:78 - grifos no original).

Essa idéia de que a pena tem um fim exclusivamente moral começa a perder fôlego à medida em que ganham espaço teorias de cunho utilitarista, a buscar na sanção criminal algo capaz de produzir alguma vantagem prática, tendência que é bastante explicável à luz do momento histórico então experimentado, de afirmação de um modo de vida e de relações sociais ditados por uma ordem econômica fundada na perspectiva da reprodução do capital, inclinação especialmente sensível no século XVIII. A pena precisa ser útil para legitimar-se. Assim é que passa, aos poucos, a impor-se uma teoria denominada relativa da pena. Esta agora constitui a medida através da qual o Estado faz ver à sociedade o mal que decorre do crime, assim a estimulando a não cometê-lo. Ao criminoso, por sua vez, se mostra a conseqüência direta da prática da infração no sofrimento a si infligido, também procurando convencê-lo de que o delito não compensa. Dessa maneira estão justificados o esforço, as despesas e o sacrifício social que a manutenção de um sistema penal acarreta. Abraçou essas teoria a chamada Escola Positiva do direito penal, que floresceu na segunda metade do século XIX, alavancada pelos ideais científico-positivistas e, nesse ponto, pelas pesquisas do psiquiatra italiano Cesare Lombroso, cujo trabalho se expressa na obra O homem delinqüente, verdadeiro tratado sobre a possível existência de características genéticas e orgânicas do indivíduo criminoso, chegando ao ponto de admitir a viabilidade de um tipo de criminoso nato, pessoa doente, a quem, assim como aos demais delinqüentes, se deveria impor, antes que tudo, um tratamento, concretizado na pena. Enfim curado e, portanto, ressocializado e apto para a vida normal em sociedade, a pena teria alcançado seu fim preventivo. De sua vez, Jeremy Bentham, reconhecendo o mal representado pela pena, a atingir o indivíduo e também a sociedade, ainda assim sustenta que ela se justifica por sua utilidade. E traça um contorno do que seria essa utilidade:

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O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que novamente equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta: se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade [...] (Uma introdução, 1979: 4).

Misturam-se, mais tarde, as teorias, originando correntes de pensamento que se pautam por um conceito híbrido de pena, no qual se enquadram tanto a finalidade retributiva quanto a preventiva. A todas é comum a idéia de pena como medida de defesa da sociedade contra algo – o delito – que se pressupõe um mal em si mesmo.89

O conceito de pena como ato de defesa social é visível no pensamento de Franz von Lizt para quem

[...] A pena é um mal que o delinqüente sofre, é lesão de bens, ofensa de interesses juridicamente protegidos pela mesma ordem jurídica que os protege. E por aí a pena se distingue essencialmente da indenização, embora uma e outra possam ser compreendidas na idéia superior e comum dos efeitos jurídicos do injusto; porquanto a indenização é reparação da lesão, deve curar a ferida, ao passo que a pena abre uma nova ferida e desse modo garante a manutenção da ordem jurídica (Tratado, 2003, tomo I: 373-374).

Tal maneira de ver o crime e a pena sofrerá, mais tarde, contundente crítica tanto de correntes da sociologia do direito, inspiradas no materialismo histórico, dentre outras matrizes teóricas, quanto da própria criminologia, em sua vertente denominada crítica. Esta, debruçando-se sobre a mecânica interna dos sistemas penais (e penitenciários), tece um interessante panorama das funções ocultas dessas categorias.

As penas criminais, no sistema do direito brasileiro, consistem em privação de liberdade, multa e restrição de direitos. Segundo a idéia inspiradora do Código Penal, expressa na Exposição de Motivos, item 26, tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. Sua origem é a cela usada pelo

89 Vale conferir texto inicial do item 26 da Exposição de Motivos do Código Penal brasileiro: Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade... (grifei).

religioso, onde ele vai meditar para se arrepender do pecado. Como lembrado por Basileu Garcia,

Outrora, o aprisionamento só era usado para evitar a fuga dos réus. Não passava, pois, de medida processual, equivalente à atual prisão preventiva. Penas, propriamente ditas, eram a morte, os tremendos castigos corporais, o exílio, os trabalhos forçados. [...] O Direito da Igreja, tendo a sugestão da cela monástica empregada nas penitências, entrou a por em prática a privação da liberdade como pena. O costume generalizou-se, e hoje a cela é bem a célula, o fundamento dos institutos presidiários modernos, cujo nome – penitenciárias – lembra claramente a origem eclesiástica dos pequenos compartimentos em que o preso é isolado (Instituições, 1972, tomo II, v. 1: 408-409).

Para imposição de pena é necessário que o indivíduo cometa um fato inscrito no tipo definidor do delito, que não tenha agido sob proteção das excludentes de ilicitude e que seja culpável, isto é, que na sua situação pessoal, seja alguém sobre quem recai um juízo de censura.

Pode ocorrer ainda que não bastem a prática de um delito e a culpabilidade do agente para sujeitá-lo a uma pena. Às vezes a lei estabelece condições que estão fora do sujeito (e não dependem dele) para que seja possível a imposição de pena.

Por exemplo, a lei penal brasileira aplica-se a crimes praticados por brasileiro no exterior, mas isso depende de que esse fato seja também considerado crime segundo a lei estrangeira. Também se considere que, para a doutrina dominante, o encerramento do procedimento administrativo fiscal, iniciado pela autuação e finalmente constituindo definitivamente o crédito tributário, representa condição para que, num processo criminal por crime tributário, o agente possa receber uma pena. A essas condições, assim exemplificadas, dá-se, conforme doutrina majoritária, o nome de condições objetivas de punibilidade e, como se disse, de sua ocorrência depende a possibilidade de imposição de pena.

A punibilidade – essa possibilidade de o sujeito receber uma pena – se extingue sob determinadas condições, como, por exemplo, pela morte do agente, pela anistia, graça ou indulto, pela prescrição, pela decadência (conforme previsto no Código Penal), ou por fatos previstos em leis específicas que se aplicam àquelas situações especiais.

192 Exemplo disso é a extinção da punibilidade do acusado de apropriação indébita de valores destinados à previdência social que, antes do início do procedimento administrativo, paga o débito e presta ao órgão previdenciário as informações pertinentes (de acordo com o disposto no art. 168, § 2º, do Código Penal). Hipótese assemelhada se dá com o pagamento do tributo e seus acessórios, extinguindo-se a punibilidade pelo crime de sonegação (art. 34 da Lei n. 9249/95).

A prescrição, na vida forense uma das mais freqüentes causas extintivas da punibilidade, significa a perda do direito de punir quando o Estado não agiu dentro dos prazos de que dispunha para isso. Ela se mede pelo volume da pena máxima possível e segundo a regra geral do Código Penal (Art. 111, I).

O prazo prescricional começa a correr da data do fato criminoso, sofrendo interrupções decorrentes de causas ali expressamente previstas. Enquanto, porém, estiver pendente questão de que dependa o julgamento da causa criminal, o curso prescricional fica suspenso, de acordo com o que dispõe o art. 116, I, do Código Penal.

Quanto à decadência, trata-se também de causa extintiva da punibilidade, que se caracteriza pela inércia de quem de direito para dar início a certos procedimentos tendentes à apuração do delito e aplicação da pena, como ocorre no caso dos crimes contra a honra e outros que dependam de iniciativa exclusiva da vítima ou de seus representantes.