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1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: ETNICIDADE, CULTURA, NAÇÃO E NACIONALISMO.

1.1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

1.1.4 Cultura e Identidade: redemoinhos e não ilhas!

Pensar as identidades étnico-culturais, relacionadas aos imigrantes em seus espaços de inserção na sociedade de acolhida, coloca-nos no diálogo interdisciplinar e teórico, que, como anteriormente já discutimos, nos exige esta abertura. Mais que isso, no ponto de partida de que estes são construções, processos sociais e históricos em constante (re)elaboração, perpassados por representações simbólicas, por isso, não essencializados, imutáveis, enraizados, naturalizados ou estagnados. Implica conceber que as relações estabelecidas a partir das migrações influenciam diretamente nestas construções, e que os contextos em que estão inseridos revelam-se espaços de trocas, de reformulações e de contrastes. Porém, entendemos que estes não anulam ou apagam aqueles vivenciados anteriormente, então, não deixados totalmente para trás. São contextos em que as identidades são variadas e passíveis de entrecruzamentos e (re)significações na produção de discursos e de representações.

A identidade e suas implicações têm sido amplamente exploradas nos debates teóricos contemporâneos, tendo em vista o lugar ocupado e a potencialidade desta nos processos

históricos e culturais, e suas imbricações ligadas às representações. Bauman (2012) ressalta que mais do que nunca a reflexão sobre a identidade é necessária. Nesse sentido, a concepção de identidade contempla um processo histórico de redimensionamento teórico e epistemológico. Hall (2006, p. 10), em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, faz a distinção entre três concepções de identidade, pautadas no sujeito do Iluminismo, no sujeito sociológico e no sujeito pós-moderno.

Assim, para Hall (2006), “o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior”. Conforme o autor, este núcleo era inato ao sujeito e, embora tivesse um desenvolvimento ao longo da vida, essencialmente permanecia desvelando a identidade do indivíduo, em uma versão “individualista” e masculina.

Conforme Bauman (2012, p. 47), a identidade social garante o significado do “eu”, e reflete, para este sujeito inseguro, abrigo e segurança, articulados a “nós” como significado de inclusão e aceitação. Para o autor, a segurança do grupo - “nós” se efetiva na vinculação a uma força que protege os aceitos no grupo e o poder em relação a “eles”, os hostis, os adversários. No entanto, “A força necessária não virá por si mesma. Deve ser criada. Também precisa de criadores e autoridades. Precisa de cultura – educação, treinamento e ensino”. Nesse sentido, a modernidade, no projeto do iluminismo, legou a cultura às elites letradas, que conduziram, através de um projeto civilizatório, a formação orientada e supervisionada das massas, agora vista com atitudes ditas irracionais, com o intuito de ajustá-las a “moldes civilizados”, moldando-lhes corpos e espíritos, reproduzindo uma nova estrutura de dominação que se conformou na construção da nação (BAUMAN, 2012, p. 49).

Na concepção sociológica do sujeito, refletindo a “crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto- suficiente” como aquele do iluminismo, mas “formado na relação com outras pessoas importantes para ele”, emerge então a relação com o outro. Estes “outros” “mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava”. Assim, valoriza-se a interação social do sujeito que ainda mantém um núcleo essencial, mas que este núcleo é perpassado pelas relações que podem modificá-lo. Para o autor, este núcleo é “formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que estes mundos oferecem”, assim, a identidade “preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público” (HALL, 2006, p. 10).

sujeito, entre elas, àquelas que deram delineamento às nações e às identidades culturais nacionais, a partir de culturas nacionais na busca de lealdades supralocais. Para Bauman (2012, p. 45), “a modernidade é também uma era de totalidades supralocais, de “comunidades imaginadas” orientadas ou aspiradas, de construção de nações e de identidades culturais “compostas”, postuladas ou construídas”. A nação, com os discursos que dela emergem na modernidade, como uma “comunidade imaginada”, ambiciona que seus membros possam ter coisas comuns e que possam esquecer as diferenças entre si (ANDERSON, 2008), adotando o pertencimento nacionalista no sentido de parentesco. Para isso, as identidades tinham um papel imprescindível.

Para o objetivo da construção das nações e das identidades e culturas nacionais, algumas das condições preexistentes foram aproveitadas, dentre elas, Bauman (2012, p. 51) destaca o nacionalismo e as questões preexistentes que aí se articulam; assim, vincularam a ação das elites pela consolidação da aliança entre nação e estado para o autor, consolidando o que já existia como algo natural, pois, “Para se tornar nacional, a cultura tinha primeiro de negar que fosse um projeto: precisava disfarçar-se de natureza”. Para Bauman (2012), no entanto, essas “identidades significativas” revelaram-se difíceis de concretizar, utilizando-se de construções discursivas.

Neste processo sociológico de identidade, o sujeito coloca-se em seu lugar objetivo no mundo social e cultural, alinhando seus sentimentos subjetivos a partir de uma identidade cultural na internalização de significados e valores. Trata-se de uma costura do sujeito à estrutura, assim, se “Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 2006, p. 12).

Entretanto, na modernidade tardia, essa estabilidade vem sendo desconstruída, tendo em vista o cenário da fragmentação e da desestruturação, o afastamento das tradições e das estruturas, a contestação da predizibilidade e o fato de que os sujeitos podem identificar-se não por uma, mas a partir de várias identidades assumidas em momentos e situações distintas. Trata-se do descentramento do sujeito e da identidade. Este descentramento do sujeito, conforme Hall (2006), é descrito por rupturas nos discursos do conhecimento moderno, entre elas:

- a descentração frente às tradições do pensamento marxista e as novas leituras que descortinam a noção que desloca qualquer entendimento de agência individual (ruptura com o indivíduo cartesiano);

- a descoberta do inconsciente, por Freud, e o entendimento de que a identidade é formada ao longo do tempo, incompleta, não como algo inato, sendo formada por processos

inconscientes, e de que existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade; - o trabalho do linguista estrutural Ferdinand de Saussure e a percepção de que a língua é um sistema social estruturado que possui uma gama de significados, assim como a identidade. Com a virada linguística, argumenta-se que estes significados são contingentes, instáveis, procuram o fechamento (a identidade), mas são perturbados pela diferença;

- o trabalho de Michel Foucault da genealogia do sujeito e o poder disciplinar, este, regulatório, que mantém o sujeito sob o controle das instituições da modernidade tardia que o torna cada vez mais isolado, individualizado;

- o impacto do feminismo, que, juntamente com outros movimentos sociais, trouxe à tona políticas de identidade para os movimentos, novos parâmetros de exercício político com dimensões objetivas e subjetivas, ênfase cultural, contestações das ideologias capitalistas e stalinistas do estabelecido em relação à vida e à posição social;

Assim, evidenciam-se acima as mudanças na compreensão da identidade e do sujeito a partir da virada linguística e as rupturas nos discursos do conhecimento moderno, na transição para o que Hall (2006) trata como modernidade tardia e pós-modernidade, e Bauman (2003, 2012), como pós-modernidade23 - definição esta tomada não no entendimento de superação da modernidade, mas de ruptura e de transformação.

Já para Winck (2017, p. 30), “Outro fator que se veio somar para debilitar ainda mais o enraizamento identitário e a compreensão que fazemos dele foi a transição da modernidade para aquilo que lhe sucedeu ou lhe está sucedendo, seja esse novo momento entendido como prolongamento ou superação dela”. De acordo com o autor,

Ainda que a expressão pós-modernidade/pós-modernismo tenha começado a circular no decênio de 1950, principalmente no circuito da arquitetura, é somente na década de 1970 que ela viria a se cristalizar nos debates culturais. Um marco nessa discussão, sem dúvida alguma, é o lançamento em 1979 de La condition postmoderne de Jean- François Lyotard. [...] Na pré-modernidade, prevaleceram os grandes relatos mítico- sagrados de explicação do mundo. Por força deles o universo era coeso e o sentido imanente à realidade. A identidade estava assegurada e o seu conteúdo era sólido. Na modernidade, metanarrativas secularizadas sobrepõem-se ao discurso religioso. O cosmos se “desencanta”, explicações mais “duras” tomam o lugar do mito. No entanto, como antes, relatos totalizantes – a “história”, o “progresso”, a “humanidade” – fornecem chaves de interpretação global dos fenômenos do mundo. Na pós- modernidade, por sua vez, são esses discursos que entram em crise fragmentando-se, atomizando-se. [...] Talvez nada tenha mudado tanto com essa crise quanto a compreensão da identidade.

A reflexão desenvolvida por Winck (2017, p. 31) também aponta para a descentralidade do sujeito pós-moderno, em que se desfaz a característica cartesiana de

controle de ação e de consciência centrada do indivíduo e se estabelecem fissuras e deslocalizações, em uma sociedade em que o poder se pulveriza em múltiplos centros, o tempo se comprime, o espaço diminui e alguns dos conceitos tidos como definitivos passam a ser questionados. Conforme o autor, “Com isso, a antiga identidade unitária entrou em colapso e em seu lugar assomaram identidades híbridas, múltiplas, móveis”. Dessa forma, “O sujeito, longe de sentir-se pertencente a uma única e exclusiva comunidade, seja ela nacional, étnica ou religiosa (na maioria das vezes uma mescla variável dessas três), passou a identificar-se a inúmeros núcleos igualmente mutáveis”.

Para Hall (2006, p. 12), “Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”. Em contextos mais complexos daqueles vivenciados anteriormente, na “medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13). Assim, segundo Hall (2006, p. 13):

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

As sociedades da modernidade tardia, conforme Hall (2006, p. 17), “são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos”. Então, para autor, “Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados”, no entanto, “essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta”. Ou seja, é neste movimento que o processo histórico se desenrola.

A identidade cultural nacional é deslocada em virtude da globalização que se sobrepõe sobre ela, outras identidades. Essa realidade de contatos culturais diversos se acirra com as migrações, que tratam de processos de deslocamentos múltiplos e de identidades culturais que se tornam hibridizadas, fundidas sob a mistura de distintas construções culturais e que se caracterizam como processos transitórios.

(2012, p. 64) ressalta que os processos identitários articulados aos comunitarismos são parecidos com aqueles evidenciados em relação às nações, ou seja, são comunidades culturalmente postuladas e autoproclamadas, em que a não ligação a uma estrutura de estado coloca a cultura como “encarregada de funções integradoras que a comunidade não tem força para desempenhar por si mesma”. Nessa lógica, para o autor, na pós-modernidade, estas comunidades revelam-se tão limitadoras e coercitivas quanto os estados-nação e amparam-se em discursos tidos por ele como antimodernos, buscando reevidenciar narrativas de origem pré-modernas. O autor afirma ainda que, no multicomunitarismo, os valores universais empobrecem a identidade.

Este processo também se relaciona com o fato de que os produtos culturais, conforme Bauman (2012, p. 68), “agora adquiriram, ou estão em vias de adquirir, grande dose de independência em relação às comunidades institucionalizadas, em particular às comunidades territoriais politicamente institucionalizadas”, “viajam livremente”. Manuel Castells (2000, p. 24) afirma que, na construção de identidades, os agentes sociais buscam transformar e redefinir sua posição na sociedade com a utilização de qualquer material cultural disponível. Assim, efetivam-se processos culturais e identitários permeados por múltiplas possibilidades deslocalizadas. Para Baumann (2012, p. 69),

[...] a imagem mais capaz de apreender a natureza das identidades culturais é a de um

redemoinho, e não a de uma ilha. As identidades mantém sua forma distinta enquanto

continuam ingerindo e vomitando material cultural raras vezes produzidos por elas mesmas. As identidades não se apoiam na singularidade de suas características, mas consistem cada vez mais em formas distintas de selecionar/reciclar/rearranjar o material cultural comum a todas, ou pelo menos potencialmente disponível para elas. É o movimento e a capacidade de mudança, e não a habilidade de se apegar a formas e conteúdos já estabelecidos, que garante a sua continuidade.

No entanto, de forma geral, concebe-se a identidade como uma construção não estática, mas em contínuo aperfeiçoamento e negociação. Para Cuche (2002), as identidades culturais se constrõem e (re)constroem no âmbito da representação, em processos sociais que são arquitetados em meio a contextos situacionais e relacionais, em uma relação que opõe o grupo aos outros com os quais se estende o contato. No mesmo sentido, Woodward (2000, p.10) ressalta o caráter relacional, que se trata de uma construção “tanto simbólica quanto social”, assim, [...] “a identidade é irrevogavelmente uma questão histórica. Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas” (HALL, 2013, p. 30).

Conforme Hall (2005), não se trata de transmissão genética ou de uma estrutura interna ao indivíduo, mase sim de uma dinâmica de representações - ao transformar a

identidade do indivíduo, muda sua forma de se autodefinir e de definir seu grupo. Por vezes, são processos conflitivos que podem sobrepor-se em importância em momentos e situações distintas, ex: identidade étnica mais importante que a nacional.

As identidades culturais se apresentam a partir das representações, dos discursos e dos processos simbólicos, articulados nos processos sociais e históricos e adotados pelos indivíduos e suas sociedades. Nestes meios, os sujeitos fazem trocas, (re)significam-se, e, dessa forma, as identidades não são estáveis e se dão no autorreconhecimento e na alteridade, elaborando e reelaborando identidades individuais e coletivas. Não diferente disso, ocorre com as identidades étnico-culturais.

Assim, entendemos que as identidades nunca puderam ser vistas como unificadas, ou pelo menos não poderiam ser. Na pós-modernidade, tornam-se fragmentadas e são projetos inacabados, e a possibilidade deste entendimento está ligada às teorias que emergem durante o século XX, trazendo a contestação da fixidez, da permanência e da verticalidade com que alguns conceitos eram compreendidos na modernidade, dentre eles, a identidade.

1.1.4.1 Identidade e Memória – representações.

Os teóricos da identidade evidenciam a íntima relação entre identidade e memória. Joel Candäu (2014, p. 21) ressalta que “As noções de “identidade” e “memória” são ambíguas e ambas estão subsumidas no termo representações”. No caso da identidade cultural nacional, esta é imaginada a partir de sistemas simbólicos, narrativas das histórias nacionais e lugares de memória, cujas referências do passado, dos “acontecimentos fundadores”, são incorporadas e ativadas pela memória dos sujeitos nacionais em processos dados na representação e tornam possíveis algumas explicações para o presente. Assim, nos processos sociais, movem os seres humanos e suas existências ligadas a um pertencimento amplo, a um grupo étnico, a uma história e uma cultura nacional, em uma dinâmica em que “memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas”, e que a identidade seria “um estado psíquico e social” (CANDAU, 2014, p. 10).

Segundo Canclini (1999, p. 163), “a identidade é uma construção que se narra”. Trata- se da construção de uma narrativa permeada e condicionada ao contato e à consciência da existência e da forma como o outro se narra. Portanto, o autor destaca os “acontecimentos fundadores”, entre eles, o nascimento da nação. Nas narrativas nacionais de grupos, das identidades, a memória e o esquecimento são imprescindíveis.

Desse modo, para Candau (2014), a perda da memória é a perda da identidade, pois é nos jogos sociais da memória e da identidade que ocorre a transmissão de um conjunto de práticas e de representações. Nestes processos, no entanto, a memória pode emergir passados com “pedaços escolhidos”, escolhas arbitrárias, uma memória enquadrada (quadros de referência), passível de esquecimentos intencionais e seletividade, voltados para a construção de identidades estratégicas. Para o autor, a memória nos modela, mas também é modelada por nós, na dialética desta e da identidade, nutrem-se e conjugam-se entre si, gerando uma história, uma narrativa, uma ficção unificadora.

Barth (1969) evidencia que a identidade étnica caracteriza-se diferente de outras identidades por ser orientada para o passado. Candau (2014) dimensiona a compreensão em relação ao mundo e à cultura de um grupo, esta ocorre também na emergência de memórias, de vivências e de experiências, em um movimento que reitera o passado; trata-se de uma seleção que considera o que é importante lembrar e o que é melhor esquecer. Para Chartier (2010, p. 21), “a memória, seja ela coletiva ou individual”, confere “uma presença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que estabelecem os livros de história”. Em sua observação de pesquisa sobre a polonidade no sul do Brasil, Siuda-Ambroziak (2011, p. 93) relata percepções como: “O que da herança polonesa é útil e prático, o que jamais o será? O que vale a pena saber, lembrar sobre a Polônia, e o que seria melhor esquecer?”.

No contexto das construções modernas da nação e das distintas identidades, memória e esquecimento tornam-se importantes para a construção destas narrativas nas dinâmicas de seleção e de justaposição de elementos e de fatos. Trata-se de um processo que se dinamiza adquirindo novos elementos e perdendo alguns, ou seja, as narrativas identitárias constituem- se no trabalho da memória, mas este não se desvincula das representações culturais. Para Pollak (1989, p. 7):

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência.

Diante disso, analisarmos a construção de identidades e de nações demanda compreendermos processos amplos. Para Pollak (1989, p.2), “Numa perspectiva

construtivista, não se trata de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade”. A referência de Pollak ao fato social faz a crítica para a forma como o sociólogo Maurice Halbwachs (2003) pensava a memória e seu caráter coletivo, fundada na retórica nacionalista como algo dado e estável, para ele, no entanto, a partir dos quadros de referência, esta pode ser vista como uma faculdade individual, que, no trabalho da memória, pode passar para formas coletivas. Para Candau (2014, p. 21-23), diferentes manifestações da memória coexistem:

- protomemórias – memória social incorporada “no âmbito do indivíduo”, imperceptível, presente nas atitudes sem tomada de consciência, habitus e socialização de “saberes e experiências mais resistentes e mais bem compartilhadas”;

- memória propriamente dita - “essencialmente uma memória de recordação ou reconhecimento”, é “evocação deliberada ou invocação involuntária de lembranças autobiográficas”;

- metamemória – “que é, por um lado, a representação que cada indivíduo faz da sua própria memória, o conhecimento que tem dela e, de outro, o que diz dela vive”; está mais ligada a memória coletiva;

Ambas as manifestações de memória, seja em perspectiva individual, seja em coletiva, se interseccionam. Para Halbwachs (2003), mesmo nas memórias individuais há um ponto de ligação com a coletiva, pois, “Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si,

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