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Cultura e a Nova História Cultural – a ascensão da imaginação e da representação A partir de sua construção, o uso do conceito de cultura se desdobrou em diferentes

1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: ETNICIDADE, CULTURA, NAÇÃO E NACIONALISMO.

1.1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

1.1.3 Cultura e a Nova História Cultural – a ascensão da imaginação e da representação A partir de sua construção, o uso do conceito de cultura se desdobrou em diferentes

disciplinas e campos sociais, entre eles, a história e o olhar para os processos históricos. Esta, sob as influências também de conceitos como o de “mentalidades” e o amplo uso do termo cultura, reificou-se, na França, através da Escola dos Annales20, na proposição inicial de

possibilidades para a escrita de uma história mais aberta e humana, cuja efervescência se evidenciou durante o século 20, na ruptura com a história tradicional ou Rankeana.

Nessa ruptura, a História Cultural foi inaugurada na França como uma “reação deliberada contra o “paradigma” tradicional21” (BURKE, 1992, p. 10). No Brasil, porém, as

discussões e as apropriações ocorreram somente nas últimas décadas do século XX, após

20 Movimento historiográfico fundado em 1929, com a criação da revista Annales d’histoire Économique et sociale, pelos historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre, destacando-se por incorporar métodos das

Ciências Sociais à História.

21 Para Burke (1992, p. 10), poderíamos, também, chamar este paradigma de ‘a visão do senso comum da

longo período de repressão e forte influência positivista. Até então, podemos destacar uma prática historiográfica que evidencia largo caráter de exclusão e de reificação de elites brancas.

No entanto, a real expansão de estudos voltados para esta possibilidade foi potencializada com o pós-estruturalismo e a ascensão da Nova História Cultural, movimento em relação ao qual Burke (2008, p. 45) destacou como o da “virada cultural”, “O interesse por cultura, história cultural e “estudos culturais”” “ficou cada vez mais visível nas décadas de 1980 e 1990”. Além das novas proposições filosóficas ligadas aos limites do conhecimento, somou-se a ampliação do diálogo com ciências, como a psicologia, a antropologia e a sociologia. Para Veiga-Neto (2003, p. 5-6)

[...] parece crescer a centralidade da cultura para pensar o mundo. Mas tal centralidade não significa necessariamente tomar a cultura como uma instância epistemologicamente superior às demais instâncias sociais – como a política, a econômica, a educacional; significa, sim, tomá-la como atravessando tudo aquilo que é do social. Assim, assiste-se hoje a uma verdadeira virada cultural, que pode ser resumida como o entendimento de que a cultura é central não porque ocupe um centro, uma posição única e privilegiada, mas porque perpassa tudo o que acontece nas nossas vidas e todas as representações que fazemos desses acontecimentos (HALL, 1997).

Para Burke (2008), com as marcas deixadas pela antropologia, a Nova História Cultural desvelou-se “mais eclética, tanto no plano coletivo quanto no individual”. “Mentalidades” até então usadas na perspectiva da história intelectual, como ligadas às ideias e aos sistemas de pensamento, passaram a estar alinhada a suposições e a sentimentos. A antropologia influenciou também na incorporação de novas possibilidades metodológicas para se olhar os processos históricos.

Segundo Burke (2008), as produções e o cenário de conceitos desenvolvidos por Michael Bakhtin (vozes que podem ser ouvidas em um texto, penetração da “alta” cultura pela “baixa” cultura), Norbert Elias (O processo civilizador/ cultura, civilização habitus, fronteira da vergonha, fronteira da repugnância) Foucault (discursos e disciplinamento dos corpos, poder e práticas discursivas) e Pierre Bourdieu (conceito de campo, prática, habitus, capital simbólico, reprodução cultural e capital cultural) foram o click para a virada significativa.

Essas teorias ampliaram possibilidades de olhar e de análise em relação à imaginação22, às negociações, às invisibilidades, às narrativas de pessoas comuns, aos

22 Burke (2008) cita a obra “Comunidades Imaginadas” de Benedict Anderson (2008), publicada pela primeira

sentimentos, às experiências, à amplitude e à complexidade dos processos culturais humanos. Em relação às produções e à potencialidade de seus conceitos, Burke (2008, p. 78) destaca que estes “levaram os historiadores culturais a se preocuparem com as representações e as práticas”, estas possibilidades foram então estudadas por Roger Chartier.

Assim, tudo o que envolve a produção e a imaginação cultural humana pode ser pensado no processo histórico. Desde esta renovação então, estudiosos de várias áreas vêm discutido a produção historiográfica, chamando a atenção para a incorporação de novos sujeitos, de fontes diversas de investigação e de maneiras diferentes de construção da narrativa histórica (BURKE, 1997).

Porém, com a ascensão da subjetividade em relação ao conhecimento histórico, emergiram entre os historiadores, na discussão da pesquisa histórica, os critérios de verdade do pensamento histórico e suas relações com a objetividade como caráter científico. Rüsen (2015, p. 65) questiona: “Que conceito, então, se poderia utilizar no lugar de

“objetividade”?” Então, o autor chama para o cenário os acontecimentos do passado vestidos

de significado.

No entanto, para o teórico da história, Jorn Rüsen (2015, p. 66), de forma mais restritiva, este significado só pode ser vestido, “quando se trate, efetivamente, de constatar controlavelmente, mediante processo metódico (de pesquisa) a facticidade dos acontecimentos no passado”, como prática da intersubjetividade, ou seja, “trata-se de apresentar (narrar) as sentenças históricas (histórias) de maneira que se possa, genericamente, concordar com elas”. Assim, não se trata de um processo de subjetividade ligado somente ao sujeito que narra e às relações internas do pesquisador com documentos e fontes, mas dos entrecruzamentos e das relações externas com outras produções.

Nessa perspectiva, a narrativa histórica retrata a prática científica de estabelecer delimitações teóricas, conceituais, temporais, espaciais e metodológicas, ligadas a busca de respostas por questões e interesses pautados nas condições do tempo vivenciado pelo pesquisador. Assim, as respostas suprem a necessidade em relação à validade científica, contudo não são as únicas possíveis e também não são definitivas. Retomando a antropóloga Ruth Benedict (1972), “A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo”, desse modo, as nossas interpretações são visões de mundo que, com nossas lentes, tentam ver as lentes usadas no passado e nas relações e construções sociais e históricas para as quais olhamos.

São questões que contribuem singularmente para pensarmos a complexidade humana. Trata-se de um limiar em que a ruptura com a história tradicional e com questões como a

emergência cultural desvelam possibilidades para uma escrita da história não mais pensada no enclausuramento, nos poderes verticalizados e até na “dureza” cronológica.

Conforme Ankersmit (2012, p.318), “A escrita histórica não é formada pelo tempo, mas molda o próprio tempo”. O autor destaca, ainda, que “O tempo histórico não é físico ou filosófico, mas um conceito cultural, e, sua natureza depende de como a escrita da história funciona dentro do todo de nossa(s) cultura(s)”. Então,

O tempo é experimentado historicamente, mas não simplesmente como transformação e mudança, e sim como uma transformação importante para a vida humana, que possui significado, mais exatamente: que precisa ser dotada de significado para que a vida possa prosseguir na mudança experimentada pelo ser humano e pelo mundo. A experiência originária do histórico carente de significado é a virada de época entre passado e futuro, a contingência do presente, na qual a ordem mundial atual da nossa forma de vida é questionada e tem de ser assegurada culturalmente pelas pessoas envolvidas (JORN RUSEN, 2014, p. 182, 183).

Estas novas maneiras de olhar, aliadas também à perspectiva construtivista, mostram que as temporalidades e as espacialidades são concepções construídas na significação. Mais que isso, Burke (2008, p. 101) ressalta que:

Os sociólogos, antropólogos e historiadores falam cada vez mais da “invenção” ou “constituição” da etnia, por exemplo, da classe, do gênero ou mesmo da própria sociedade. Em lugar do sentimento anterior, de restrições, de determinismo social, de um mundo de estruturas sociais “duras”, muitos estudiosos agora expressam um sentimento quase inebriante de liberdade, de poder da imaginação, de um mundo de formas socioculturais “macias”, maleáveis, fluídas ou frágeis.

Ao empregar a noção de cultura vinculada à ação racional do homem, Martins (2007, p. 13) destaca que “A História Cultural e antropologia cultural aprofundaram e expandiram nosso saber sobre as motivações ideais do agir humano”. Destaca ainda que “a categoria da cultura cobriria o campo inteiro da experiência histórica”, no entanto, para ele, “isso só vem a ser assim, quando se entende cultura como um conceito aplicável a tudo aquilo que, no homem e em seu mundo, não pertence à natureza”.

Na verdade, é preciso pensar em como todas as relações, incluindo as que designamos por relações económicas ou sociais, se organizam de acordo com lógicas que põem em jogo, em acto, os esquemas de percepção e de apreciação dos diferentes sujeitos sociais, logo as representações constitutivas daquilo que poderá ser denominado uma “cultura”, seja esta comum ao conjunto de uma sociedade ou própria de um determinado grupo (CHARTIER, 1988, p.66).

O olhar de viés cultural estaria para o ato de sair da simples abstração da cultura em si, quando tudo está interligado e nada pode ser visto a parte da dinâmica social, “as discussões

econômicas, políticas e culturais, necessariamente coincidem” (BURKE, 1992). Rüsen, (2014, p. 196) em Cultura faz Sentido, afirma que a cultura dá ao ser humano a possibilidade de atribuição de sentido para agir no mundo e para a forma como ele age. Então, os processos históricos resultam de diferentes sentidos que são colocados na práxis humana.

A cultura é a resposta que os seres humanos atuantes e sofredores dão a si próprios ao lidarem com a natureza, com o seu próprio mundo social e consigo mesmos e com os outros seres humanos, quando perguntam pelo sentido de sua vida e querem organizá- la de um modo que faça sentido [...] O sentido determina como as experiências são feitas, como o que se experimenta é interpretado e como as interpretações são empregadas para orientar a práxis vital e motivar a vontade. A cultura se manifesta no cosmo dos símbolos que transformam a natureza em mundo humano.

Por termos diferentes bagagens culturais, compreendemos, reagimos e agimos de diferentes formas nas relações sociais, sendo que, nestes contatos com as diferenças culturais, ressaltam-se, a partir da atribuição de sentido, estranhamentos, confrontos, diálogo e hibridização. Para Bauman (2012, p. 298), “A cultura só pode existir como crítica prática e intelectual da realidade social existente”. Percebemos, então, que a cultura possibilita as representações dos tipos de comunidades e de como são imaginadas as nações, as identidades, sejam elas nacionais, sejam elas étnicas, culturais, entre outras, e como não são pautadas em definições estáticas.

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