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Identidade Étnica e Etnicidade – distintas abordagens, culturas e a perspectiva relacional de Fredrik Barth.

1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: ETNICIDADE, CULTURA, NAÇÃO E NACIONALISMO.

1.1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

1.1.5 Identidade Étnica e Etnicidade – distintas abordagens, culturas e a perspectiva relacional de Fredrik Barth.

Confirmando o que já discutimos até aqui, Seyferth (2012, p. 22) ressalta que “A noção de identidade tem um longo percurso no campo das ciências sociais e da psicologia”, e aqui interessa registrar sua conjunção com a etnicidade, fundamentando-se na noção de diferença cultural, visto que são importantes as fronteiras culturais. No entanto, essa é uma discussão bastante complexa que tange primeiramente a emergência da etnia como construção. A discussão sobre a etnicidade vem sendo feita a partir de distintas abordagens, merecendo algumas pontuações, aqui embasadas principalmente nas Teorias de Etnicidade.

As noções de etnia, raça e nação são apontadas por teorias que tratam de tais questões, como construções do século XIX, pautadas na emergência de um contexto histórico de grandes mudanças. Nesse sentido, para Poutignat & Streiff-Fenart (2011, p. 33), “desde sua criação no início do século XIX, a noção de etnia se encontra mesclada a outras noções conexas, as de povo, de raça ou de nação, com as quais mantém relações ambíguas, cujo rastro, encontramos nos debates contemporâneos”. Porém, embora estejam próximas em algumas de suas perspectivas, temos que perceber com clareza suas diferenças e, mais que isso, as relações entre ambas. De toda forma, são criações voltadas para objetivos determinados.

Poutignat & Streiff-Fenart (2011, p. 34-35) apontam, a partir de algumas contribuições teóricas relacionadas à raça e à etnia, entre estas, a do zoologista francês Vacher de Lapouge, emergindo a sua posição selecionista, porém, voltada para a seleção social e não natural, em que a raça estaria como “associação de características morfológicas (altura, índice cefálico etc.) e qualidades psicológicas” e a etnia como algo capaz de agrupamentos “que resultam da reunião de elementos de raças distintas que se encontram submissos, sob o efeito de acontecimentos históricos, a instituições, a uma organização política, a costumes ou idéias comuns” e que se diferem das nações. Para os autores, sob o contexto de reflexões como esta aí destacada, “É, então, para dar conta de uma solidariedade de grupo particular, simultaneamente diferente daquela produzida pela organização política e daquela produzida pela semelhança antropológica, que o termo etnia foi introduzido na língua francesa”.

Assim, a partir da noção construída culturalmente de etnia, emergem os grupos étnicos a partir de suas etnicidades. Segundo Barth (1969, p. 194), “Na medida em que os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos e aos outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional”. Poutignat & Streiff- Fenart (2011) destacam que, antes da década de 70, no século 20, a definição de grupo étnico era tratada por sociólogos americanos como indivíduos membros de um grupo, portadores de uma “cultura estrangeira”. Para ambos, a grande transformação foi perceber a etnicidade como uma categoria geral da vida social e não mais como a característica de um grupo minoritário com traços culturais, raciais e pertencimentos nacionais específicos.

Essa redefinição se dá no deslocamento da análise sobre o que define o grupo como tal. “A análise se desloca do conteúdo cultural do grupo étnico, para a análise da emergência e da manutenção das categorias étnicas tais como elas se constroem nas relações intergrupos” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2011, p. 82). A partir das novas concepções sociológicas e antropológicas, a definição de grupo étnico não se dá somente na definição de

uma língua, pertença e ancestralidade comuns, mas na afirmação e na manutenção de traços culturais diferenciadores em negociações no espaço social. Para Poutignat & Streiff-Fenart (2011, p. 82), “o grupo étnico não é mais definido per se, mas, como uma entidade que emerge da diferenciação cultural entre grupos que interagem em um contexto dado de relações interétnicas”, cujo movimento de manutenção de fronteiras é potencializado no caráter relacional da cultura (CUCHE, 2002).

Barth (1969, p.82) destaca que “Grupo Étnico é aquele que compartilha os valores culturais fundamentais, constitui um campo de comunicação e de interação com os seus membros, identificando-se e sendo identificado pelos outros”. Neste sentido, “não como algo acabado em si, mas em contínuo aperfeiçoamento e transformação, que visa à organização social, processos identitários, não algo “constituído, naturalizado”” (KREUTZ & LUCHESE, 2011, p. 183-184).

De maneira destoante e mais alinhada às concepções da nação e do sentimento de pertencimento e de coletividade, representada a partir da relação com a compreensão sociológica e o comportamento significativo dos homens, Max Weber destaca que grupos étnicos são aqueles que “alimentam a crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranças de colonização ou da migração” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2011, p. 40-41).

As distintas construções e abordagens teóricas relacionadas à categoria de análise etnicidade são eminentemente novas, e foram recentemente incorporadas aos estudos de populações migrantes ou não. Embora tenham despertado discussões em âmbito mundial, ainda no século XVIII, as abordagens das quais nos utilizamos hoje são construções contemporâneas, desenvolvidas, mais especificamente, nos anos 1960 a 1970, pós a eminência da Segunda Guerra Mundial, como as migrações, as perseguições e os extermínios dos judeus, entre outras questões.

O aprimoramento da categoria, a partir de variadas abordagens teóricas, desenvolve-se quando sociólogos e antropólogos dos Estados Unidos e, posteriormente, da França passam a pensar o tema das migrações e seus desdobramentos sociais imbricados à etnicidade. A partir de então, o que era apenas tido anteriormente a partir de uma abordagem biológica e racial e/ou de pertença nacional e étnica, com uma série de características biológicas perceptíveis, comprováveis e hereditárias, passa a ser percebido como algo muito mais complexo, um recurso identitário.

teóricas, cujos potenciais estariam para além da raça e do pertencimento nacional, imbricados a diversas concepções de cultura e de sociedade. Entre estes estudos, estão as Teorias da

Etnicidade. Conforme o prefácio de Jean-William Lapierre:

Foi necessário, depois da Segunda Guerra Mundial e da descolonização, que nossa república se defrontasse com dois tipos de fenômenos políticos e sociais para que despertasse de seu sono dogmático. O primeiro foi o ressurgimento dos movimentos regionalistas e das reivindicações das minorias etnolinguísticas. Qual não foi a surpresa quando se descobriu que na França ainda existiam bretões, bascos, occitanos, corsos, que não admitiam ser reduzidos a sobrevivências folclóricas do Antigo Regime! Havia, então, “etnias” no Estado-Nação, apesar da Constituição – que grande escândalo! O segundo fenômeno foi a imigração (inicialmente encorajada entre 1945 e 1965, em seguida contida, depois reprimida) [...] E assim, ao mesmo tempo que se propagavam em nosso país a xenofobia e o racismo sob diversas formas, pôde ter início o desenvolvimento de uma reflexão e de uma pesquisa quanto às relações interétnicas sem atingir a amplitude que já alcançavam nos Estados Unidos, até mesmo na Grã-Bretanha (LAPIERRE In POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2011, p. 11).

Em relação à emergência da etnicidade, tal como ela é, Poutignat & Streiff-Fenart (2011 p. 27) destacam que, “de acordo com alguns pesquisadores a etnicidade é um fenômeno universalmente presente na época moderna, precisamente por tratar-se de um produto do desenvolvimento econômico, da expansão industrial capitalista e da formação e do desenvolvimento dos Estados-nações”. Nesse sentido, a categoria também começa a ser mais observada no Brasil durante o século 20, quando os grupos étnicos passam a ser entendidos como possíveis ameaças às aspirações nacionalizantes.

O marco desses estudos é o trabalho de Fredrik Barth, publicado em 1969. Posterior a ele, Poutignat & Streiff-Fenart, mais no final do século 20, discutem as questões tangentes à etnicidade, tidas como um novo paradigma nas ciências sociais, nos grupos étnicos e nas relações interétnicas, mostrando as diferentes abordagens a partir de paradigmas como: primordialista, sociobiológico, mobilizacionista, neomarxista, neoculturalista, interacionista e instrumentalista.

O paradigma primordialista é visto como um continuum, já que coloca a etnicidade no patamar de uma herança inata ao sujeito, que emerge naturalmente, a partir de seu nascimento em seus comportamentos sociais, permanecendo ao longo da vida. Muitas das teorias sobre a nação tendem a esta visão de que há uma primordialidade em relação àquilo que define o conteúdo nacional.

Conforme Poutignat & Streiff-Fenart (2011, p.88), “Estas “ligações primordiais” são aquelas que ligam os indivíduos por uma relação à qual atribuem uma qualidade especial que se refere à própria natureza do vínculo, independentemente das relações efetivas” e

contextuais. Para eles, estes vínculos “são dotados de uma significação inefável, como aquela que se atribui aos vínculos de parentesco, e são caracterizadas pela intensidade da solidariedade que suscitam, por sua força coercitiva e pelas emoções e o sentimento do sagrado que lhe são associados”. Ainda, “compartilham a herança cultural transmitida por ancestrais comuns, fonte de ligações primárias e fundamentais” (POUTIGNAT &STREIFF- FENART, 2011, p.88).

Dentro desse escopo, o paradigma sociobiológico busca explicar os comportamentos sociais atrelados à composição genética, de certa forma, menosprezando a variável cultura na interação social, afirma-se, assim, um reducionismo biológico ligado a uma solidariedade étnica natural, embasada na valorização de si próprios, na “extensão do princípio de parentesco” e no “anticulturalismo materialista”, como uma forma de acentuar o etnocentrismo (POUTIGNAT &STREIFF-FENART, 2011, p.93).

Porém, ao pensar o recurso identitário no paradigma primordialista, e entre as questões tidas como primordiais, elementos como raça, língua e religião, não podemos ignorar o ambiente social e político e de diversidade de culturas, na dinâmica dos processos sociais e históricos em que estamos inseridos, fugindo do caráter essencialista desse paradigma. Os grupos humanos, em geral, não estão fechados em comunidades e culturas particulares a partir de lealdades primordiais como “dádivas” das existências sociais, que derivam mais do sentimento de afinidade natural do que da interação social, como afirma o antropólogo Clifford Geertz (1963).

Já as abordagens instrumentalistas e mobilizacionistas da etnicidade não a vêem como algo propriamente inato, então, os sujeitos podem escolher pertencer ou não. Trata-se de uma construção social e política que evidencia o aspecto utilitarista e de mobilização da etnicidade, prevê uma utilização mais prática dos grupos em uma relação de solidariedade com vistas à efetivação de seus interesses comuns, sejam eles políticos, econômicos, religiosos, de mobilidade social, entre outros. De maneira geral, esta abordagem estaria a serviço de elites que, voltadas para um objetivo relacionado, por exemplo, ao poder político no contexto nacional ou então do grupo étnico, efetivam a seleção de conteúdos culturais e a mobilizam para tais construções. Esta perspectiva embasa a pretensa construção de muitas nações modernas pautadas em culturas instrumentalizadas politicamente e levadas ao alcance das massas.

Para Poutignat & Streiff-Fenart (2011, p. 96), “esta abordagem compreende, contudo, muitas variantes nas quais a ênfase é colocada ora nos fins e nas estratégias individuais, ora nas lutas de poder coletivas [...] uma solidariedade que se dá entre grupos de interesse”.

Seyferth (2010, p. 30; 2011, p.56), na mesma direção, destaca que “a etnicidade é um fenômeno empiricamente muito variado”, mas que “as abordagens mais instrumentais a apresentam como um recurso social, político e cultural para diferentes grupos étnicos e de

status”. Assim, o uso instrumental da etnicidade está voltado para a efetivação de interesses

comuns do grupo.

A definição da etnicidade na abordagem instrumental, assim como na primordialista, pode considerar e se utilizar da ancestralidade e das variantes culturais diferenciadoras, porém concebendo-as como um recurso em uma utilização mais prática. Nesse propósito, a identidade (étnica) permite associar o indivíduo ou o grupo a um passado, uma raça, uma cultura compartilhada, suscita sentimentos de pertença, contudo o interesse comum também une, permitindo laços concretos de comunidade (SEYFERTH, 2011).

Já as teorias neomarxistas compartilham com as teorias instrumentalistas a “convicção de que os grupos são definidos essencialmente por interesses materiais, políticos ou econômicos”, porém privilegiam, como centro de interesse, “a relação entre a etnicidade e a classe, relação esta que é analisada no quadro de uma teoria da exploração capitalista do trabalho” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2011, p.106-107).

Para as abordagens neoculturalistas, os aspectos culturais estão em maior evidência, entretanto trata-se de uma visão de cultura não estática, com aspectos totalizantes e descritíveis, refutando o essencialismo, pois “a etnicidade é vista como um idioma por meio do qual são comunicadas diferenças culturais em contextos que variam segundo o grau de significações compartilhadas” (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 2011, p.111).

Destoando das concepções estritamente ligadas aos argumentos, como questões biológicas e culturais de caráter essencialista, sem descartar certa fixidez, destacamos a importante contribuição do antropólogo norueguês Fredrik Barth. Barth, como organizador da coletânea de trabalhos intitulada Ethnic Groups and Boundaries (1969), este vai valorizar a manutenção das fronteiras através de traços diacríticos e das fronteiras sociais, como imprescindíveis em relação à etnicidade, através da “expressão e revalidação contínuas”, para ele, essas relações canalizam e organizam a vida social e comportamental.

No entanto, Seyferth (2010, p. 30-31) destaca que “a proposição básica de Weber e Barth, também está presente em abordagens ditas “instrumentalistas”, que enfatizam menos a questão da identidade para dar atenção aos processos políticos e/ou econômicos nos quais a etnicidade é uma variável crucial de organização grupal” (SEYFERTH, 2010, p. 30-31).

Nesse mesmo sentido, segundo Barth (1969, p. 221), “o fato de as formas contemporâneas serem proeminentemente políticas não diminui em nada seu caráter étnico”.

Para o autor, a substância cultural pode variar, “ser reconhecida e mudar, sem nenhuma relação importante com a manutenção das fronteiras24 do grupo étnico”. O que ocorre é um

reordenamento de diferenças culturais.

Para Meyer (2000, p. 60), “estas fronteiras tanto relacionam e aproximam, quanto separam e diferenciam grupos entre si”. Desse modo, no viés instrumentalista, “o que é mais importante de ser compreendido, é que elas agem de forma a posicionar socialmente os grupos representados, numa operação em que características de diversas ordens são transformadas em privilégios, vantagens, desigualdades e desvantagens sociais”. Nessa perspectiva sentido, entre as abordagens discutidas, a abordagem instrumentalista da etnicidade é dada nas dimensões da dinâmica social, são reordenamentos e negociações estabelecidas a partir de relações de interesse e de poder. Nessa dinâmica, a etnicidade atua em bases mais racionais do que propriamente emocionais e afetivas.

Os instrumentalistas veem a identidade étnica como uma construção, assim como Barth (1969). Porém, enquanto os primeiros a entendem como uma manipulação das elites, a partir de seus interesses, os aliados a concepção relacional de Barth entendem que essa construção não pode ser simplificada, mas que é perpassada por múltiplas relações e redefinições dadas pela etnicidade nos processos históricos, culturais e sociais complexos na demarcação de fronteiras.

Se a identidade cultural situa a cultura não unificada ou fechada, a identidade étnica é a autoatribuição da etnicidade que, na representação, não necessariamente situa uma cultura comum ou, como destaca Barth (2011, p. 191), um grupo étnico como um suporte de cultura. Conforme este autor “a fronteira étnica que define o grupo e não a matéria cultural que ela abrange”, visto que a variação cultural não seria um processo descontínuo. Em relação às diferenças culturais, Barth declara: “As características que são levadas em consideração não são a soma das diferenças “objetivas”, mas somente aquelas que os próprios atores consideram significantes”.

A etnicidade trata-se então de processos históricos relacionais (entre grupos) e situacionais, ou seja, não estabilizados, mas passíveis de mutações na dinâmica social e na seleção contextual de elementos culturais, articulados a aspectos, entre eles, nação e religiosidade. Assim, para o autor:

Em primeiro lugar, fica claro que as fronteiras persistem apesar do fluxo de pessoas que as atravessam. Em outras palavras, as distinções de categorias étnicas não

dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação. Mas acarretam processos sociais de exclusão e de incorporação pelos quais categorias discretas são mantidas, apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de histórias de vidas individuais. Em segundo lugar, descobre-se que relações sociais estáveis, persistentes e muitas vezes de uma importância social vital, são mantidas através dessas fronteiras e são frequentemente baseadas precisamente nos estatutos étnicos dicotomizados. Em outras palavras, as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrário, frequentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas englobantes. A interação em um sistema social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos (BARTH, 2011, p. 188).

Na verdade, o contato interétnico25 é a forma de tornar as fronteiras perceptíveis e

efetivas. Para Barth (2011, p. 196), “a persistência de grupos étnicos em contato implica não apenas critérios e sinais de identificação, mas igualmente uma estruturação da interação que permite a persistência das diferenças culturais”. Assim como a nação, na perspectiva construtivista, retomando Anderson (2008), a etnicidade é uma narrativa, uma imaginação, não imutável, nem totalmente dissolúvel, mais que isso, o grupo étnico é uma comunidade imaginada. Esta abordagem é relevante para pensar contextos de migrações, como o brasileiro e as complexidades culturais, tendo a etnicidade articulada nas fronteiras socioculturais, um entendimento potencialmente mais democrático e autônomo em relação à dinâmica social, ajustando-se aos objetivos do estudo que propomos.

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