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1 ENCAMINHAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS: ETNICIDADE, CULTURA, NAÇÃO E NACIONALISMO.

2 RAÍZES CULTURAIS DO NACIONALISMO, CONSCIÊNCIA NACIONAL, TERRITORIALIZAÇÃO DE CULTURAS E IDENTIDADES E A TRIPARTIÇÃO.

2.4 A NAÇÃO DA ÁGUIA BRANCA: NARRATIVA MÍTICA, ROMANTISMO E NACIONALISMO.

2.4.1 O mito fundacional da Polônia e o Sarmantismo.

A mitologia esteve muito presente entre os povos eslavos. Conforme ressalta a literatura, ainda a. C. retratavam de forma pagã o surgimento do mundo (cosmogonia) e de vários deuses (teogonia), que muito se assemelhavam a deuses gregos. Dentre estes deuses, podemos destacar a Deusa Kupała 62 (figura 2), que, como Deusa do amor, da natureza, das águas e das flores, se assemelha à Deusa Afrodite, uma divindade polonesa que seria retomada no renascimento pelo poeta Jan Kochanowski (séc. XVI), utilizando-se da escrita em latim e depois do polonês. No entanto a narrativa mitológica que retrata a origem da Polônia, como parte do povo eslavo, recebeu de seus primeiros narradores, características voltadas para os objetivos como a exaltação da nobreza e seu lugar, ou seja, a exaltação dos sármatas nas narrativas míticas, a religiosidade em contraposição às “crenças pagãs” e, posteriormente, orientações nacionalistas.

62 Disponível em: Blog Cantinho dos Deuses: http://cantinhodosdeuses.blogspot.com/2011/03/mitologia-

Figura 2 – Deusa Polonesa Kupała, pintura de Gerson Wojciech, um dos principais artistas do realismo polonês.

Fonte: Blog Cantinho dos Deuses63

Nessa perspectiva, a origem mitológica, já no final da Idade Média, iria trazer consigo algumas questões que seriam de importância cultural para os povos eslavos e os chamados sármatas, cuja definição que pauta a concepção de cultura e de estilo de vida, foi apresentada no século XV pelo historiador Jan Długosz em latim. Essa se faria circular através da produção literária posterior, afirmando socialmente o domínio da nobreza, e estando presente na adaptação do barroco europeu para uma versão polonesa, evidenciada de forma mais efetiva após a chegada dos jesuítas durante o século XVII, com forte presença até meados do século XVIII e depois, em certo declínio. Conforme Siewierski (2000, p. 44-45):

[...] naquela época chegou a originar uma cultura específica da nobreza, chamada “o sarmantismo”, nome derivado de “sármata” (sauromatae). Era com este nome que os escritores da antiguidade designavam o povo que ocupava as terras a leste do rio Don e do mar de Azov. Pompônio do século I d. C. e Ptolomeu Cláudio do século II d. C., situavam os sármatas entre os rios Volga e Vístula, ou seja, também no território da futura Polônia. Os cronistas medievais franceses e alemães também usavam os termos “Sarmatia” e “sármatas”, apesar da pouca precisão na demarcação nos mapas do

habitat daquele povo. O primeiro historiador polonês que identificou os sármatas com

os poloneses foi Jan Długosz (séc. XV). Defendendo e cultivando os valores

63Texto: Literatura Polaca – O Barroco na Polônia, escrito pela estudante de Estudos Eslavos, da faculdade de

Letras de Lisboa/Portugal, cuja identificação (codinome) é Matrioshka. Disponível em:

tradicionais poloneses, o amor, a liberdade, a religiosidade e o patriotismo, e resistindo às influências estrangeiras, os sármatas não deixavam também de ser cosmopolitas e a sua cultura é bastante sincrética. Enquanto a moderação dos ocidentais os irritava, ficavam atraídos pelo esplendor da cultura e as virtudes bélicas dos seus adversários orientais, turcos e tártaros, adotando seus trajes, assim como armas e os métodos de luta. [...] Na sua fase final, o sarmantismo produzirá também atitudes caricaturais de obscurantismo e xenofobia, com as quais ele será identificado e em razão das quais será severamente criticado pelos homens do Iluminismo. Porém, no final do século XVIII e no século XIX, o sarmantismo vai designar também aspectos positivos do idealizado passado heroico e guerreiro da Polônia.

O Barroco polonês traria, além de construções arquitetônicas e das obras de arte, a partir do sarmantismo, a produção e a circulação de poesias, de comédias, de dramas, de sátiras e de contos épicos e heroicos, que buscavam retratar a atuação dos poloneses em relação às tentativas de tomada de seus territórios, pelos russos, pelos cossacos, pelos suecos, entre outros, suas virtudes heroicas e religiosas. Era uma tentativa clara e efetiva de manter vivas algumas questões importantes em relação ao povo polonês, aquilo que se via como importante que fosse lembrado ou, que não fosse esquecido.

No século XIX, o romantismo consagra a pré-história mítica em obras primas da literatura, “Separando as lendas sobre a pré-história da Polônia das manifestações da megalomania nacional, o romantismo soube explorá-las, já não como fontes históricas, mas como o mito, o “nada que é tudo64”, na busca da definição do consciente e subconsciente

coletivos” (SIEWIERSKI, 2000, p. 11). Neste período as produções artísticas e culturais aconteciam com intuitos claros, mesmo na Polônia tripartida, mas, também, na diáspora.

Entre as obras do romantismo citadas por Siewierski, está a de Juliusz Slowacki (1809-1848), a qual molda a pré-história mítica de acordo com sua própria visão, a partir de outras lendas que tratavam da cultura eslava primitiva, autônoma, “vestígios do grande passado nos túmulos, nos costumes, na poesia e na memória do povo” incorporando-as à história como sua parte integral (SIEWIERSKI, 2000, p. 13). Tais construções culturais, anteriormente evidenciadas por Siewierski (2000), presentes nas narrativas míticas e literárias, também são percebidas a partir da estudiosa de eslavos e de cultura eslava, Matrioshka (2010), conforme a autora:

[...] o Sarmatismo, estilo de vida dominante, a cultura e a ideologia da Szlachta (classe social de nobres) na República das Duas Nações do século XVI ao século XIX. Juntamente com a Liberdade dourada formou o aspecto único da cultura da República. O historiador polaco do século XV, Jan Długosz, foi o primeiro a introduzir o termo que foi rapidamente utilizado por outros historiadores e cronistas como Marcin Bielski, Marcin Kromer e Maciej Miechowita. Outros europeus retiraram-no do “Tractatus de Duabus Sarmatiis” de Miechowita, um trabalho que na Europa

Ocidental era considerado a principal fonte de informação sobre os territórios e pessoas da República das Duas Nações. O nome deriva dos alegados ancestrais da

Szlachta, os sármatas, uma confederação da maioria das tribos iranianas do Norte do

Mar Negro, desalojadas pelos godos no século II, descritas por Heródoto de Halicarnasso no século V a.C. como os descendentes dos citas e das amazonas. Após muitas permutações, isto fez surgir a lenda de que os polacos eram os descendentes dos antigos sármatas, uma tribo guerreira originária da Ásia e que mais tarde se reorganizou no nordeste da Europa. Esta crença tornou-se uma parte importante da cultura da Szlachta, penetrou em todos os aspectos de sua vida e serviu para diferenciar a Szlachta polaca da nobreza ocidental (cuja Szlachta se chamava

Pludracy) e seus costumes. O conceito sármata serviu de culto à igualdade entre todos

os membros da Szlachta, as tradições, o costume de andar a cavalo, a vida rural provinciana, a paz e o pacifismo, popularizou o uso de vestimentas e visual oriental (żupan, kontusz, pas kontuszowy, delia, szabla), serviu para integrar a multi-étnica nobreza ao criar um sentimento quase nacionalista de unidade e orgulho da política de Liberdade dourada da Szlachta. Na sua forma inicial e idealizada o Sarmatismo pareceu ser um bom movimento cultural: incentivou a crença religiosa, a honestidade, o orgulho nacional, a coragem, a igualdade e a liberdade. Contudo como qualquer doutrina que coloca uma classe social sobre as demais acabou por modificar-se com o tempo. Por último, o Sarmatismo transformou a crença em intolerância e fanatismo, a honestidade em ingenuidade política, o orgulho em arrogância, a coragem em teimosia e a liberdade em anarquia. O Sarmatismo, que evoluiu durante o Renascimento e se fortificou durante o Barroco polaco, achou-se em oposição ao Iluminismo na Polónia. Quando na segunda metade do século XVIII a palavra Sarmatismo fez a sua reaparição, o seu significado era decididamente negativo. Sarmatismo funcionava como sinónimo de uma mente retrógrada e ignorante e como um rótulo desprezível para os adversários políticos de Stanisław August Poniatowski, o rei das reformas: a provincial e tradicionalista intolerante Szlachta. Tais significados surgiram primeiramente no jornalismo e depois em trabalhos literários. Os escritores do Iluminismo trataram as implicações políticas e culturais do sarmatismo como um conveniente alvo para críticas e escárnio. O “Jornal Monitor”, periódico de cunho reformista patrocinado pelo Rei Poniatowski, usava o termo de maneira pejorativa e assim fez Franciszek Zabłocki nas suas comédias, como na sua peça “Sarmatyzm” (Sarmatismo), de 1785. Uma reabilitação do Sarmatismo e da antiga Szlachta começou durante o romantismo polaco, um tempo de revoltas militares e recordações associadas a eles, que com isso ajudaram na reabilitação do Sarmatismo, com seu culto à coragem e à bravura militar. Isto ficou especialmente evidente durante e depois da Revolta de Novembro. O género de “Gawęda szlachecka” (A história de um nobre) escrito por Henryk Rzewuski está muito associado à reverência do espírito sármata. Visível no messianismo polaco e nas obras de grandes poetas polacos como Adam Mickiewicz “Pan Tadeusz”, Juliusz Słowacki e Zygmunt Krasiński, bem como escritores (Henryk Sienkiewicz e a sua “Trilogia), em geral, o romantismo polaco está em dívida com a história da Polónia de uma forma não observada nos outros países europeus, onde o contraste entre o passado glorioso e a miséria presente não foi citado, ou não existiu de facto.

O sarmantismo presente nos mitos eslavo-poloneses, cujas narrativas são portadoras de discursos e sentidos ao longo da história polaca, estaria também na narrativa mítica de sua chegada à região da Europa, na formação da família nobre fundadora dos povoados formados pelos povos eslavos, a partir de tribos migrantes, cuja expulsão pelos godos, no século II é narrada por Heródoto. A chegada dos eslavos através do mito fundacional é narrada no trecho abaixo, por Ulisses Iarochinski. O autor desvela de forma lendária o surgimento de três povos eslavos que constituiriam nações, entre elas, a nação descrita pelo autor como “Nação Polaca”.

[...] eram três irmãos eslavos: Lech, Czech e Rus. Esses três aventureiros empreenderam uma longa viagem. Após exaustiva caminhada, resolveram descansar. Foi quando Lech avistou nas proximidades, um ninho com aguiotos brancos. Exclamou instintivamente: “Isso aqui é um sinal de que devo estabelecer-me por aqui com a minha família”. Seus dois irmãos prosseguiram a caminhada. Czech tornou-se pai dos Checos; e Rus, o pai dos Russos. Lech, porém com a sua comitiva preferiu fixar-se, definitivamente, a pequena distância do ninho das águias brancas, fundando a cidade de Gniezno. A palavra Gniezno deriva de gniazdo que quer dizer ninho. Lech escolheu para brasão de sua família a Águia Branca e passou a ser considerado o pai da Nação Polaca (IAROCHINSKI, 2000, p. 16).

A mesma lenda, acima retratada por Iarochinski (2000), é também citada por Siewierski (2000), Dill (2007), entre outros, sempre com algumas variações e adaptações. Siewierski (2000) destaca a transmissão oral dessas narrativas que perpassam séculos de não popularidade da escrita, até alcançar os primeiros cronistas. O passado das tribos recém- unificadas entre os rios Oder, Vístula e Bug era bem diferente daquele dos povos que faziam parte do império romano e a sua cultura, suas divindades, seus mitos gravados apenas na memória popular, porém, em comum, tinham a percepção de que a memória das próprias origens não podia se perder completamente. Através da transmissão oral, ela alcança os primeiros cronistas, reivindicando o seu lugar na história, na poesia e nos processos de formação da consciência e de identidades coletivas (SIEWIERSKI, 2000).

Os primeiros dois cronistas que registram a lenda estão referenciados durante a Idade Média. Estes trazem, através da forma escrita, Lech, Czech e Rus para o cenário, como pais fundadores dos três povos eslavos, tendo a águia como símbolo da Polônia: “um estrangeiro chamado Gallus Anonimus (séc. XII) e um bispo de Cracóvia, Wincenty Kadlubeck (séc. XIII)” (SIEWIERSKI, 2000, p. 9). Porém, isso teve maior repercussão, no século XV, quando, conforme Mazurek (2016, p. 30), foram publicadas as acima já referenciadas crônicas de Jan Długosz (1415-1480), “uma História da Polônia desde os tempos pré-históricos e lendários”, cuja obra foi escrita em latim.

Nestas narrativas lendárias, Lech, ao ser considerado o pai da nação polaca, lega aos seus descendentes o pertencimento, que articulado em uma “narração da origem” produz efeitos na cultura polonesa. Esta “é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados” (CHAUÍ, 1997, p. 32).

A partir destas narrativas que colocam Lech como “pai fundador”, as gerações que se seguiriam foram suas descendentes e, a Polônia como povo, nascia na cidade de Gniezno, o ninho das àguias brancas e seu berço mitológico. A águia branca é o símbolo principal da

Polônia ainda hoje e está estampada em sua bandeira. Posteriormente, seu descendente Popiel seria o rei de Gniezno, sucedido pelo camponês Piast, origina a dinastia Piast, cuja sequência de reinados teve seu início.

Até o século XVIII, a pré-história lendária fazia parte integral da história da Polônia e a sua veracidade raramente era questionada. Mas mesmo na Época das Luzes quando a historicidade dos protoplastas eslavos chegou a ser contestada, não lhe faltaram defensores (SIEWIERSKI, 2000, p. 10).

Entre estes defensores, acima mencionados, estava Józef Aleksander Jablonowski, que situava “A chegada de Lech à Polônia por volta do ano 550”, e Augustyn Koludzki, cuja obra “começa a história da Polônia a partir do Jafet Bíblico, que após o dilúvio ocupou as terras da Europa e da Àsia Menor, e cujos descendentes tardios foram os irmãos Lech e Czech, príncipes eslavos” (SIEWIERSKI, 2000, p. 10).

A narrativa mítica de forma generalizante, além de outras questões já mencionadas, ressalta a ligação étnica com os demais povos eslavos e, também, as relações interétnicas. Estas questões estão presentes de forma explícita em narrativas como a mítica de Adam Mickiewicz 65, este, já sob as influências nacionalistas, patrocinado por um aristocrata polonês, viveu em Paris e participou da organização das legiões polonesas na Itália, durante o século XIX escreveu narrativas como a destacada na obra de Siewierski (2000, p. 14), através de trechos em que apresenta: ainda antes da dinastia Piast “uma mulher, que prefere morrer como uma vítima do amor pela pátria a desposar um alemão66”. Em seguida, fala do rei Popiel, um rei mau que renegou seus ancestrais e foi devorado pelos ratos. Os “Livros da

nação e da peregrinação polonesa (1832)” se tornaram um catecismo dos emigrantes

poloneses, Adam propunha uma reza pela “guerra universal, pela liberdade dos povos” (SIEWIERSKI, 2000, p. 85).

Também no século XIX destaca-se o poeta do romantismo polonês Juliusz Slowacki, publica alguns poemas épicos. Slowacki é enviado pelo Governo Nacional Polonês para Londres e Paris, com o intuito de estar em articulação nacional junto com os emigrantes, e, assim como Adam, também colabora com o Comitê Nacional Polonês em Poznan (SIEWIERSKI, 2000, p. 88). Somado a muitos outros escritores, musicistas e artistas do

65 Adam Mickiewicz publicou poemas como “A Mãe Polaca” que teria influenciado o brasileiro Castro Alves em

“A Mãe do Cativo”, tomando em ambas as aspirações por liberdade.

66 A relação conturbada com os germânicos acompanha os eslavos desde tempos imemoriais. Renan (1997, p.

168) relata que Wiltzes e Obotritas (tribos eslavas) foram vítimas de massacres e vendas em massa na dinastia dos imperadores otonianos do Sacro Império Romano Germânico, em meados do século X.

período, entre eles Frederic Chopin, todo esse trabalho literário e artístico tangiam a visão de seu papel em manter o nacionalismo e a cultura vivos. Para Siewierski (2000, p.89):

No espelho da história o mito perde as suas cores. Mas a história sem mito também é pálida. O mito ilumina as trevas do passado, mas ele pode também obscurecê-las ainda mais. Os românticos costumavam conciliar o mito com a história, sabendo que são como asas, indispensáveis para a viagem ao passado.

Porém, tais narrativas giravam em torno de uma supremacia da nobreza e de um passado heroico, cuja cultura específica era delineada pelo sarmantismo. Estas definições culturais delineavam aquilo que os congregava como povo e se revelavam conservadoras em muitas questões. Dessa forma, o sarmantismo fez parte dos “sentidos sobre a nação” (HALL, 2006, p. 51) adotados pelos poloneses. Conforme o autor, “Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas”.

A doutrina dos sacerdotes era simbólica, no sentido em que nela coincidiam signo e imagem. Como testemunham os hieróglifos, a palavra desempenhava originariamente também a função de imagem. Essa função passou para os mitos. Tanto os mitos quanto os ritos mágicos visam à natureza que se repete. Ela é a essência do simbólico: um ser ou um processo que é representado como eterno, por dever sempre converter- se novamente em acontecimento, no perfazer-se do símbolo. Inesgotabilidade, renovação sem fim, permanência do significado, não são apenas atributos de todos os símbolos, mas seu verdadeiro teor. As narrativas da criação em que o mundo sai da mãe primígena, da vaca ou do ovo, são simbólicas em oposição à gênese judaica (HORKHEIMER & ADORNO, 1983, p. 99).

Temos, a partir de Anderson (2008), os sistemas culturais; nestes, os símbolos eram presentes nos ritos e nas imagens religiosas e dinásticas e, no caso da Polônia, o sarmantismo, como parte destes sistemas culturais e das representações discursivas. Assim, o sarmantismo - como uma cultura da nobreza pode se olhado em uma perspectiva evidenciada a partir de Martins (2007), em que “cultura é poder”. Dembicz & Kieniewicz (2001, p. 23), em relação ao mito que dava base ao sarmantismo, afirmam: “Nesse mito distinguia-se o sentimento da superioridade oriunda da condição estamental, mas não étnica ou religiosa”.

São demarcações que se seguiriam ao longo da história, ou de forma inquestionável pelo menos até o Iluminismo, quando se inseriram as ideias progressitas que tentariam dar mais amplitude e possibilidades de participação e intervenção política aos cidadãos, ao povo e à nacionalização das massas, e tratariam com desprezo o sarmantismo e seu viés conservador.

Diferente dos gregos e dos romanos, “a pré-história mítica da Polônia não originou nenhuma epopeia codificada”. Mas, “ela constitui um epos dividido nas inúmeras vozes de poetas e escritores que, ao longo dos séculos, testemunharam a necessidade de procurar

origens além da história, de ancorar o seu aqui e agora no chão sempiterno do mito” (SIEWIERSKI, 2000, p. 9).

Embora a distância do teor épico e mítico em relação às chamadas civilizações clássicas, não podemos desconsiderar a presença do mito na historiografia que trata do nascimento da Polônia como povo e como nação, cujo trabalho de poetas e literatos de uma camada letrada é efetivo nesta construção, evidenciando nesta memória das origens, traços simbólicos das identidades étnica, cultural e nacional imaginadas, e demais questões imbricadas à história da Polônia.

Hall (2013, p. 32), ressalta “o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado à nossas vidas e dar sentido à nossa história”. No entanto, não deixamos de atentar para o fato de que, para o autor:

Os mitos fundadores são, por definição, transistóricos: não apenas estão fora da história, mas, são fundamentalmente a-históricos. São anacrônicos e têm a estrutura de uma dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir. Mas funcionam atribuindo o que predizem à sua descrição do que já aconteceu, do que era no princípio. Entretanto, a história como flecha do Tempo, é sucessiva, senão linear. A estrutura narrativa dos mitos é cíclica. Mas dentro da história, seu significado é frequentemente transformado.

Assim, a narrativa mítica, rememorada e emergida através da oralidade, repassada de geração em geração, associada a outros elementos que compõem as culturas eslavas e polonesas, reverbera-se como suporte de possibilidades de significação. Para os escritores do romantismo, uma espécie de ontologia da nação que está presente nos contextos coletivos, durante o período tido como pré-histórico67 da Polônia e, posteriormente, retomada em outros

momentos e contextos em que se reafirma como traços de cultura.

Não perdendo de vista o acima mencionado e retomando Siewierski (2000), a narrativa mítica possui “sua continuidade como parte da história que acompanha o povo polonês até hoje”, e foi retomada após as suas primeiras veiculações na Idade Média e, depois, nos movimentos culturais, políticos e filosóficos (na ordem), como o Renascimento, o Barroco, o Iluminismo, o Classicismo, o Sentimentalismo e o Romantismo. Estas narrativas foram retomadas fortemente com a perda da independência e, após a reunificação, fizeram parte de uma série de medidas relacionadas à ação didática relacionada à identidade nacional e sua popularização, geralmente no entendimento essencialista de manutenção da cultura e da

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