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Da condição rural à espacialidade da agricultura familiar

Capítulo 2: A Geografia (rural), os termos de análise e os procedimentos de

2.2. Articulando a perspectiva e as categorias de análise

2.2.2. Da condição rural à espacialidade da agricultura familiar

De acordo com Gomes (2002), uma abordagem dialética pode nos ajudar a compreender fenômenos que se expressam por meio de oposições ou confrontos: tradicional e moderno, público e privado, sagrado e profano, rural e urbano, etc. Mesmo entendendo que esses diferentes registros ou estatutos não são exclusivos e nem tampouco fixos, é preciso perceber que cada um deles chama nossa atenção para certas formas, comportamentos, normas, valores, símbolos e imagens.

No que concerne ao registro ou estatuto “rural”, tão essencial ao presente estudo, vale enfatizar que é a existência de um “espaço rural” que legitima a pertinência de uma Geografia Rural. Entretanto, a resposta à questão sobre o que seja o espaço rural não é simples e nem imediata, sobretudo, porque se trata de um conceito polissêmico e porque são diversos os parâmetros de classificação do rural.5

Convém lembrar que só recentemente a tentação de tomar a morfologia (densidade populacional, padrão de ocupação residencial, uso do solo, atividades produtivas, etc.) como

uma referência objetiva e com fins classificatórios têm sido contestada pelos estudiosos do rural. Já afirmamos noutra ocasião que é preciso perceber o rural como uma categoria histórico-geográfica e, nesse sentido, o campo não é um lugar de formas extemporâneas, imutáveis, fossilizadas no tempo. Algumas abordagens assentadas nessa compreensão procuram tratar o rural também como uma abstração, uma construção social. Carneiro (1998), por exemplo, admite que as noções de rural e urbano, de ruralidade e urbanidade, assim como a dualidade que lhes é intrínseca, são representações sociais que expressam visões de mundo e valores distintos de acordo com o universo simbólico ao qual estão referidas, estando, portanto sujeitas a reelaborações e apropriações diversas.

Gomes (2002), apesar de se referir ao contexto urbano, dá plenas condições para inferirmos que muitas vezes quando estudamos o campo parece que tratamos de uma evidência que se apresenta diretamente aos nossos olhos. Trabalhamos com critérios de densidade ou com limites administrativos, como se esses não pudessem ser submetidos a uma análise que poderia nos conduzir a questionar a idéia de rural. Por isso, cometemos freqüentemente o equívoco de considerar o fato rural sob o ângulo único de uma morfologia e ao assim fazê-lo, perdemos a capacidade de compreender seu conteúdo ou, em outras palavras, escapa-nos a idéia mesmo de “vida rural” ou “ruralidade”. O campo é uma forma necessária a um certo gênero de associação humana e suas mudanças (materiais ou imateriais) são condições para que esta associação se transforme. Ainda nesse sentido, o mesmo raciocínio formulado (para a cidade) pelo autor em “A condição urbana”, pode ser transposto para o campo: a ordem espacial do campo, ou seja, sua disposição física unida à sua dinâmica sociocomportamental, são os elementos fundadores da condição rural.6

Tal formulação vai ao encontro das idéias de Kayser (1990) quando conclui que o “rural” é um modo particular de utilização do espaço e de vida social. Para esse autor, o estudo do rural pressupõe a compreensão das especificidades e das representações deste espaço rural, entendido, ao mesmo tempo, como espaço físico (referência à ocupação do território e às suas formas materiais), lugar onde se vive (particularidades do modo de vida e

6 O fato de estarmos refletindo – mesmo que de forma incipiente – sobre o rural utilizando

pressupostos formulados para a problemática urbana não deixa de ser uma evidência da possibilidade e da necessidade cada vez maior de diálogo entre Geografia Rural e Geografia Urbana.

referência identitária) e lugar de onde se vê e se vive o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção nas esferas mais amplas da sociedade). Também do ponto de vista sociológico, quando se fala em rural aponta-se para duas características fundamentais: relações específicas com a natureza e relações sociais (de interconhecimento) também diferenciadas. Destas relações (socioespaciais) resultam práticas e representações particulares acerca do espaço, do tempo, do trabalho, da família, etc (WANDERLEY, 2000; JEAN, 2002).7

Portanto, se admitirmos que são as inter-relações (materiais e simbólicas) entre uma população e seu meio que caracterizam o rural e a ruralidade, devemos considerar, dentre outras implicações teórico-metodológicas, que estamos tratando de categorias de natureza espacial (o mesmo se aplicando para a noção de urbano e de urbanidade).

Passando a pensar na relação entre agricultura familiar e espaço rural, torna-se necessário antes de qualquer coisa, efetuar algumas considerações em torno daquela noção. Visando uma conceituação geral e que mais se aproxima de um esquema de análise, Lamarche (1993, p. 15), definiu que a “exploração familiar” “[…] corresponde a uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família.” Ao enfatizar que a agricultura familiar ocupa um espaço próprio e significativo em todo o mundo – haja vista estar presente nos mais diferentes sistemas sociais, culturais, econômicos e políticos – o autor sugere que ela é, antes de tudo, uma realidade multiforme, ou seja, em qualquer escala de análise é forçoso encontrar uma grande diversidade de situações ou categorias.

Obviamente que a exploração familiar que se reproduz nas sociedades modernas representa um novo agente social. Diferentemente do campesinato tradicional ela apresenta- se integrada, em algum grau e sob formas diversas, aos mecanismos de mercado, aos

7 Em decorrência desta reflexão, reforçamos nosso entendimento de que as tipologias baseadas

exclusivamente em características morfológicas e/ou estatísticas e que definem oficialmente o rural e o urbano precisam ser revistas, uma vez que não refletem a dinâmica socioespacial contemporânea, bastando lembrar que a urbanização de elementos do modo de vida rural e a ruralização de certos aspectos da vida urbana ao mesmo tempo em que evidenciam a complexidade subjacente à realidade atual reforçam as limitações dos critérios e ambigüidade daquelas classificações adotadas. Teixeira e Lages (1997, p. 19) além de concordarem com esta “androgenia” rural-urbano, fazem uma observação curiosa quando argumentam que no Brasil “Os milhões que migraram para a zona urbana nem sempre terminaram por urbanizar-se,

processos de reprodução do capital e aos padrões de consumo e modos de vida modernos. Logo, adverte Wanderley (1998b, p. 44), o entendimento da problemática da agricultura familiar moderna deve levar em conta sua complexidade: “Por um lado, pela sua própria existência, ela legitima a permanência de uma esfera específica, interna, referente à forma de organizar a produção, cujo funcionamento tem como referência a própria estrutura familiar da unidade de produção. Por outro lado, os fatores que regem o funcionamento interno da unidade familiar de produção assumem novos conteúdos.”

Do ponto de vista do agricultor, acrescenta a autora, suas estratégias de (re)produção nas condições modernas se baseiam, em muito, na valorização dos recursos que ele dispõe e que asseguram a sobrevivência da família no presente e no futuro. E não se trata apenas de recursos materiais. O “patrimônio sociocultural” por exemplo, definido por Lamarche (1993) como sendo um sistema de conhecimentos, valores e representações herdado, constitui-se numa referência aos elementos imateriais ou simbólicos que desempenham um importante papel na organização da exploração familiar moderna.

Assim é que de muitas maneiras, os estudiosos desta forma social de produção reconhecem que sua lógica continua sendo mais ou menos nutrida pela interdependência entre os fatores propriedade, trabalho e família. Woortmann e Woortmann (1997), por exemplo, sugerem que entre os homens do campo há um feixe de significados (originados de sua ancestralidade camponesa) fundador de uma ética e de um modo de vida montado sobre esse tripé.

A partir deste ponto de vista, interessa-nos destacar, primeiramente, a importância do estabelecimento agrícola como categoria nucleante da espacialidade do agricultor e sua família. Ainda hoje, o espaço construído no interior da propriedade tende a estar em razão mais ou menos íntima com as relações de trabalho e com as diferentes atividades produtivas, com os hábitos comportamentais, alimentares e de higiene, com a composição e tamanho da família, com o tamanho da propriedade e com os recursos disponíveis etc. (TEDESCO, 2001).

Em segundo lugar, deve-se observar que para além das fronteiras do estabelecimento agrícola, a localidade ou bairro rural continua a colocar-se como uma outra importante

dimensão da experiência socioespacial direta. Mesmo com as transformações engendradas pela modernização no modo de vida rural e/ou por mais precária que seja em termos de infra-estrutura (igreja, escola, salão, venda, bar, cemitério, etc...), a localidade continua sendo um campo indispensável à socialização (relações interpessoais, identidade, obrigatoriedade, conhecimento, religiosidade, moralidade, solidariedade, lazer, conflito etc). Enfim, trata-se de um sistema de objetos, relações e atividades que não se restringe à dimensão econômica e que também integra o dia a dia do agricultor familiar.

Por outro lado, embora a espacialidade do agricultor e sua família seja plasmada pelas relações, atividades e objetos, pelas formas materiais e simbólicas inter-relacionadas no âmbito da propriedade e da localidade rurais, ela não é algo estanque e isolada, isto é, cada vez mais, devido ao crescente (embora desigual) processo de mundialização, sua estrutura está em correspondência com as formas e conteúdos externos ou superiores à escala do cotidiano e do local.

Em resumo, a agricultura familiar enquanto forma social de produção corresponde a um determinado modo de se apropriar e significar o espaço rural, ou melhor, pressupõe uma certa espacialidade.