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Capítulo 1: Dimensões da questão rural hoje

1.2. A problemática em torno do desenvolvimento rural

1.2.2. Estratégias e agricultura familiar no Brasil

Indo de encontro ao viés urbano que caracteriza nossa cultura, deve-se defender que o meio rural tem um papel estratégico no desenvolvimento brasileiro e que não interessa apenas aos habitantes das zonas rurais, uma vez que a própria dinâmica urbana vem demandando novos bens e serviços por parte do meio rural. É preciso assumir que “(...) o destino das áreas não densamente povoadas não é necessariamente o atraso e o abandono” e, sobretudo, que “O desafio consiste em dotar as populações vivendo nas áreas rurais das prerrogativas centrais da construção de novos territórios” (ABRAMOVAY, 1998b, p. 11).

Ao mesmo tempo em que no Brasil o poder de intervenção institucional (governamental ou não) sobre os usos do espaço rural e a produção agropecuária é relativamente limitado, o espectro de possibilidades e de iniciativas de desenvolvimento é bem mais aberto. Atualmente, o rural brasileiro é perpassado por diversas estratégias de desenvolvimento voltado à reprodução socioeconômica da agricultura familiar. Trata-se de iniciativas protagonizadas por diferentes instituições governamentais, ONGs e por entidades representativas dos agricultores (movimentos, sindicatos, associações).

No âmbito governamental, duas ações específicas têm se destacado no sentido de partirem do reconhecimento do rural como um espaço social heterogêneo e de estarem se colocando como vetores estratégicos do desenvolvimento rural: a implantação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar/PRONAF e a Política Nacional de Reforma Agrária, que por sua vez, vem consolidando a expansão de um “setor de assentamentos”. Na avaliação de Wanderley (2000b, p. 36), dentre as principais conseqüências dessas políticas está a legitimação da agricultura familiar como ator social e “(...) a revalorização do meio rural como lugar de trabalho e de vida, que se expressa na retomada da reivindicação

Em relação ao PRONAF, é preciso lembrar que até meados da década de 1990, os agricultores familiares careciam de uma política federal que lhes propiciasse acesso a recursos diversos mediante linhas de ação diferenciadas: financiamento da produção (crédito), capacitação (assistência técnica, extensão rural, pesquisa agropecuária, profissionalização de agricultores, comercialização, gestão social) e infra-estrutura e serviços nos municípios (PRONAF/SC, 2002). Mesmo cientes das limitações e debilidades do Programa (caráter economicista/produtivista dos critérios de seleção do público beneficiário, recursos públicos restritos, fragilidades na operacionalização institucional, burocratização e morosidade no repasse dos recursos pelas agências financeiras, resistência no sentido de atender categorias de produtores familiares “periféricos”, “pluriativos”, distribuição desigual dos recursos entre as regiões, estrutura organizacional pouco participativa, etc.), vários analistas concordam que eleger a agricultura familiar como protagonista da política orientada para o desenvolvimento rural, não deixa de ser um indicativo de mudanças – ao menos no discurso. Especialmente quando se leva em conta que há décadas essa forma social de produção e sua base fundiária, ainda que responsável por grande parte dos alimentos produzidos no país tem sido ignorada pelo Estado, que orientou as políticas de modernização (“conservadora”) em benefício da grande produção e da grande propriedade.

Mais recentemente, a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário/MDA e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável/CNDRS permitiu uma ação mais integrada ao reunir em sua estrutura as duas políticas referidas acima. Por sua vez, o referido Conselho, composto por representantes dos ministérios, de entidades da sociedade civil e de outras instituições, vem coordenando a formulação do “Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável”, que compreende quatro programas estratégicos: 1) Democratização do acesso à propriedade da terra; 2) Fortalecimento da agricultura familiar; 3) Renovação da educação rural; 4) Diversificação das economias rurais (CNDRS, 2002).

Note-se que estes programas não estão sintonizados apenas com o incipiente processo de recomposição do espaço rural brasileiro, mas também com certas tendências evidenciadas nos países de capitalismo avançado. No que concerne ao PRONAF, Carneiro

(1997) acrescenta que suas diretrizes têm como referência experiências européias – principalmente a da França – que elegeram a agricultura familiar como a forma social de produção alvo do processo de modernização do meio rural. Assim como na Europa, o padrão de produção privilegiado pelo Programa e a sua função no desenvolvimento econômico do país estão sustentados, implicitamente, nas noções de produtividade, competitividade e rentabilidade.

Além das iniciativas governamentais da esfera federal, é importante lembrar o potencial representado pelo processo de constituição, verificado nos últimos anos, de centenas de Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural e de Secretarias Municipais de Agricultura – mesmo sabendo que os planos e ações desenvolvidos por essas instituições estejam contaminados por práticas clientelistas e burocratizadas. Abramovay (1999), entende que apesar de sua já visível precariedade, aqueles Conselhos vêm dando lugar a um processo de formação de dirigentes voltados para o aproveitamento dos recursos locais e regionais cuja escala não pode ser subestimada.

Na realidade, este contexto de montagem institucional e de implantação de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, mesmo que ainda insuficiente, é resultado da demanda de uma série de movimentos sociais – Movimento dos Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimentos das Mulheres Agricultoras (MMA), dentre outros, inclusive o “novo sindicalismo rural” – que surgem no meio rural brasileiro a partir de meados da década de 1980. Trata-se de formas de organização social – muitas delas motivadas por ONG’s, entidades eclesiais de base e por entidades representativas dos agricultores – que além de contestar o padrão de agricultura e de desenvolvimento hegemônicos e de reivindicar a participação do Estado na promoção das mudanças necessárias, vem colocando em prática uma série de iniciativas de desenvolvimento que, no geral, têm uma dimensão coletiva ou associativa e constituem, no nosso entendimento, a expressão mais emblemática do processo de diversificação e revitalização do espaço rural brasileiro.

associativismo, que nas últimas décadas vem se destacando como um dos principais fóruns de formulação de estratégias para a agricultura familiar e que tem sido crucial não somente para o encaminhamento de demandas ligadas à produção e à comercialização – vitais à viabilização econômica desses grupos – mas também para o desenvolvimento de novas formas de relacionamento social, construção de identidades, formação de novas lideranças políticas e colocação de novos problemas na pauta de reivindicações dos agricultores familiares (PINHEIRO, 2001).7

Visando o aproveitamento do potencial representado pela demanda por alimentos de qualidade e/ou pela constituição de nichos de mercado, a ecologização do sistema de produção

agrícola, representada pela incorporação de técnicas de manejo ou de sistemas agrícolas de

base ecológica (agricultura orgânica, ecológica, natural, biológica, biodinâmica, permacultura, agroecologia, etc.), tem se convertido em uma alternativa cada vez mais utilizada por agricultores familiares para fazer frente à exclusão socioeconômica e à degradação ambiental (COSTABEBER, 1998; COSTABEBER e MOYANO, 2000). Segundo Darolt (2002), já em 2001 estimava-se que no Brasil mais 100 mil hectares distribuídos em 4.500 estabelecimentos eram manejados organicamente, sendo que a maior parte dos produtos destinava-se à exportação. Aproximadamente 70% da produção brasileira encontra-se nos estados do sul e sudeste, sendo que nos últimos anos o crescimento das vendas chegou a 50% ao ano.

Para além daquelas estratégias ligadas à (re)organização dos produtores e da produção primária, a industrialização rural de pequeno porte vem sendo promovida numa conjuntura onde cada vez mais o processamento descentralizado dos produtos da exploração familiar tem sido referido como um importante instrumento de desenvolvimento, especificamente por seu papel no aumento da renda das famílias pela agregação de valor aos produtos agropecuários e pela geração de postos ou ampliação das

7 Favero (1998), permite lembrar que o associativismo constituiu-se numa estratégia para diferentes

atores. Com o fim da ditadura militar, emerge a partir do campo uma diversidade de formas organizacionais: se do lado da agricultura familiar, o Movimento dos Sem-Terra (MST) é a expressão maior do que passou a ser chamado de novo associativismo rural ou comunitário, do lado patronal, foi criada a União Democrática Ruralista (UDR), uma organização truculenta que passou a aglutinar os setores mais reacionários da agricultura brasileira.

oportunidades de trabalho no meio rural. Direta ou indiretamente, isso se deve a melhorias no ambiente institucional devido à criação de políticas públicas a partir de meados da década de 1990 (PRONAF, principalmente) voltadas ao financiamento, implantação e gestão de agroindústrias de pequeno porte (OLIVEIRA et al., 2000).8

Com o intuito de ampliar o domínio dos produtores familiares sobre as etapas à jusante da cadeia produtiva, a comercialização coletiva – representada por estratégias de distribuição e de venda cooperadas, associadas ou coletivas – tem sido promovida por sua capacidade de ampliar os espaços mercantis destinados aos segmentos menos capitalizados da agricultura familiar, bem como por oferecer uma maior estabilidade/resistência às crises conjunturais, sobretudo em contexto de mercados imperfeitos e relações mercantis assimétricas. Nesse sentido, faz-se conveniente lembrar, como faz Moreira (1999), que as formas sociais de trabalhadores por conta própria e que operam com lucro-zero – como é o caso de muitas categorias de agricultura familiar – não têm poder de mercado para romper com as amarras que a competição intercapitalista lhes coloca e, portanto, os espaços mercantis que ocupam são muito restritos. De acordo com Montoya e Guilhoto (2001), a presença de oligopólios a montante e a jusante da exploração familiar associada à estrutura de mercado atomizada parecem explicar a assimetria das relações mercantis.

Em meio ao desafio de buscar alternativas econômicas, vem se destacando o turismo

rural – que inclui várias modalidades de atividades, serviços e empreendimentos

(restaurantes e cafés típicos, hotel fazenda e fazenda hotel, pousadas, fazenda-escola, chácaras de recreio e condomínios rurais, pesque-pague, artesanato, fazendas de caça, visitação a unidades produtivas e agroindustriais, atividades de lazer associadas ao campo e à natureza, turismo em rios e represas, leilões e exposições agropecuárias, complexos hípicos) e que já ocupavam, no final da década de 1990, aproximadamente 230 mil pessoas (SILVA

8 Até a década de 1990, observa Mior (2003), estes empreendimentos, além de não terem visibilidade

socioeconômica e de estarem inseridos num contexto político-jurídico desfavorável, eram enquadrados como clandestinos, precisamente por não estar de acordo com o serviço de inspeção para produtos de origem animal ou com a legislação fiscal e ambiental, no caso dos produtos de origem vegetal. Esse autor lembra ainda, que um dos fatores que leva à vinculação entre agroindustrialização de pequeno porte e ações coletivas é o fato de que a partir do momento em que os agricultores passam a produzir produtos com algum nível de

et al., 1998) – e, mais especificamente, o agroturismo, enquanto um conjunto de atividades desenvolvidas por agricultores familiares e relacionadas à recepção e/ou hospedagem de pessoas em suas propriedades. Nesse caso, por se tratar de uma atividade complementar ao exercício agrícola, ela deve ser entendida como parte de um processo mais amplo, pelo qual se busca viabilizar econômica e socialmente essas propriedades familiares através da agregação de valor aos produtos, da geração de novas fontes de renda e de novas oportunidades de trabalho (SCHMIDT et al., 2003; TORESAN et al., 2003).

Contudo, é preciso observar que em função das muitas limitações apresentadas pelo PRONAF, os agricultores familiares continuam buscando e realizando formas alternativas de financiamento com o intuito de viabilizar as estratégias acima referenciadas. Aliás, para os segmentos menos capitalizados, o cooperativismo de crédito rural tem representado o único meio disponível aos agricultores familiares na busca dos recursos necessários às alternativas de reprodução socioeconômica. Segundo Burigo (2003), até 1999, existiam no Brasil cerca de 377 cooperativas de crédito rural. No sul do país, precisamente, vem se destacando o Sistema de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária/CRESOL. Trata-se de uma estrutura em rede onde cada cooperativa tem como espaço de ação o município, restringindo a constituição de postos de atendimentos em localidades vizinhas. Nas estimativas de Schmidt et al. (2002), são mais de 40 cooperativas e 17.000 associados, através de seis bases regionais de serviços que atendem 128 municípios.

Embora seja óbvio, deve-se considerar que os instrumentos aqui elencados não esgotam a fonte de alternativas de desenvolvimento que vem saciando a sede dos diversos agentes que elegeram a agricultura familiar como ator principal deste cenário de diversificação e revitalização do espaço rural que começa a ser evidenciado no Brasil. Na verdade, priorizamos uma caracterização breve dessa classe de estratégias porque corresponde ao conjunto dos instrumentos de desenvolvimento que serão objeto de análise através do estudo de caso aqui proposto.

Finalmente, é conveniente lembrar que os atuais contextos de inovação (em termos de formas de organização, estratégias, parcerias etc) vêm acompanhados, comumente, de um processo de fragilização de certos atores, sobretudo naqueles espaços onde os

agricultores familiares não contam com formas organizativas que permitam fazer frente aos agentes (políticos, industriais, comerciais) definidores da lógica socioeconômica local e regional (FAVERO, 1998). Ao mesmo tempo, outros dois aspectos podem se apresentar como entrave à obtenção de retornos positivos: o fato da maioria das iniciativas terem sido implementadas recentemente e, sobretudo, as restrições impostas pelo ambiente macroeconômico e político-institucional predominantes na maioria dos países como o Brasil.