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Capítulo 2: A Geografia (rural), os termos de análise e os procedimentos de

2.1. Trajetória e tendências da Geografia rural

Para avaliarmos o impacto das transformações recentes do campo sobre a estrutura teórico-metodológica e temática da Geografia Rural, convêm efetuar uma digressão para levantar alguns aspectos da sua trajetória.

Segundo Teixeira e Lages (1997), quando a Geografia Humana moderna surgiu, na segunda metade do século XIX, o mundo ocidental era ainda amplamente rural e, nesse espaço, as atividades agrícolas eram preponderantes. Os geógrafos, portanto, se interessavam mais pelo campo do que pelas cidades e mais pela atividade agrícola que por qualquer outra. Logo, a Geografia – enquanto disciplina que estudava a relação entre o homem e o meio natural – era essencialmente agrária e preocupava-se particularmente com a morfologia da paisagem (agrária) e o habitat rural. Em outras palavras, a Geografia Rural se confundia com a Geografia Humana e vai permanecer assim até meados do século XX, quando passa a se constituir numa especialização devido ao fato de que a sociedade se tornava mais complexa em suas relações, consolidando os papéis conferidos pelos setores produtivos predominantes: campo/agricultura, cidade/industria. Nas décadas subseqüentes, enquanto as pesquisas em Geografia têm seu centro de gravidade deslocado para a cidade, mais precisamente para o desenvolvimento urbano-industrial, na Geografia Rural – que vai

1 Apesar da abordagem geográfica para o rural ser comumente referenciada como “Geografia

Agrária”, adotamos neste trabalho a denominação “Geografia Rural” por entendermos que a mesma se coloca como mais abrangente e adequada para o tratamento das diversas e complexas questões que perpassam o campo na atualidade.

sendo posta em segundo plano – os estudos começam a se ocupar com as transformações desencadeadas pelo processo de modernização da agricultura.

Partindo do entendimento de que os estudos rurais sob um ponto de vista geográfico foram e continuam sendo marcados pela dinâmica da sociedade, D. Ferreira (2002) chama a atenção para a inter-relação entre os fatores socioeconômicos e as mudanças paradigmáticas sofridas pela ciência geográfica em geral, permitindo assim, qualificar as principais fases da Geografia Rural brasileira:

ü A uma “Geografia Tradicional”, vigente do final do século XIX até meados do século XX, corresponde uma Geografia Rural ideográfica, descritiva e, até certo ponto, determinista e possibilista. Coerente com a hegemonia da agricultura como evento socioeconômico, político e como elemento organizador do espaço e dedicada a temas como a descrição de paisagens agrárias, caracterização, classificação e distribuição de produtos agrícolas, uso da terra, habitat rural, colonização.

ü A uma “Geografia Teorética-quantitativa”, iniciada na segunda metade do século XX, corresponde uma Geografia Rural modelizada, tipificada, de inspiração neopositivista e voltada para a aplicabilidade imediata dos conhecimentos e para a busca de normas que permitissem a previsibilidade e a intervenção planejada. Tal abordagem se constitui coerentemente com o domínio de um Estado autoritário, centralizador e intervencionista e com um período de modernização induzida do campo, de aceleração do processo de urbanização e de mudança do eixo econômico da agricultura para a indústria. Neste contexto, o temário inclui, principalmente, estudos classificatórios, modernização da agricultura, caracterização funcional e socioeconômica da agricultura, organização agrária, complexo agroindustrial (CAI), análise cartográfica e uso da terra.

ü A uma “Geografia Crítica”, atuante a partir da década de 1970, corresponde uma Geografia Rural ancorada no materialismo dialético e preocupada com as questões socioeconômicas da relação homem-terra e da relação dos homens entre si. Essa posição é coerente com uma liberdade de expressão ideológica conquistada após o

fechamento de fronteiras à apropriação de terras e com preocupações da ordem dos direitos humanos e do uso (e abuso) dos recursos naturais. Isso num mundo que se tecnifica, se imediatiza e se globaliza. Em face deste quadro, os temas candentes são: transformação do espaço rural, conseqüências da modernização da agricultura, relações de trabalho, desequilíbrios regionais, campesinato, (pequena) produção familiar, reforma agrária, desenvolvimento rural, agroindústria, etc.

Por outro lado, ao enfocar a produção intelectual da década de 1990, D. Ferreira (ibid.) se depara com a dificuldade de categorizá-la, uma vez que não houve uma temática central que prevalecesse por todo o período, mas sim a profusão de diferentes temas (agricultura capitalista, questão da terra, produção agrícola, produção familiar, agricultura e meio ambiente, teoria da Geografia Agrária, organização agrária, relações de trabalho, agroindústria, colonização, papel do Estado, mercado, população, análise cartográfica e uso da terra, desenvolvimento rural, etc...), concretizados a partir de estudos de caso diversos e, em sua maioria, já presentes desde 1970. Em termos de referencial teórico-metodológico, também ocorreu uma certa continuidade na medida em que o emprego de conceitos e categorias sociológicas e econômicas se manteve de forma significativa nos estudos de Geografia Rural dos anos 90; isto é, a questão espacial foi suplantada pela socioeconômica. Nos termos formulados pela própria autora (ibid., p. 17-18):

A dinâmica da historiografia geográfica e da sociedade fez o objeto e o objetivo da Geografia diversificarem-se, seguindo uma trajetória, em geral, imposta para o conjunto das ciências. Essa diversificação, em alguns momentos, fez o geógrafo utilizar-se do aporte teórico de outras fontes científicas, comprometendo a identidade geográfica e perdendo, em muitos casos, a referência espacial.2

Portanto, mesmo que as transformações mais recentes clamem por mudanças na forma de abordar o mundo rural, a flagrante tendência à “insistência temática” e ao “uso mecânico de aporte extradisciplinar” nos estudos da década de 90, podem ser vistos como

2 Santos (1999), permite observar que em um texto “assassino”, Anthony Giddens também se

posiciona em relação ao empréstimo de formulações por parte da Geografia em geral. Mesmo reconhecendo que os conceitos geográficos poderiam ajudar os sociólogos a incorporar em suas análises a realidade espacial, Giddens considera que a falta de apetite dos geógrafos viria do fato de que estes se contentariam em acolher e utilizar a produção teórica dos sociólogos, responsável por avanços teóricos na Geografia.

indicadores da resistência da Geografia Rural brasileira no sentido da atualização de sua perspectiva analítica, ou melhor, na direção da assimilação de avanços teórico- metodológicos que vem sendo construídos por geógrafos preocupados com uma abordagem espacial que mantenha a identidade do olhar geográfico e que perpassa, obviamente, pelo diálogo com outros segmentos das ciências sociais.

2.2. ARTICULANDO A PERSPECTIVA E AS CATEGORIAS DE ANÁLISE

Entendendo que a Geografia Rural só pode pensar os fenômenos relacionados ao campo a partir de um referencial teórico conceitual, propomos, nesta seção, articular os pressupostos e categorias que inspiraram e orientaram a construção de nossa perspectiva de análise.

Entretanto, ao mesmo tempo em que um certo número de precisões torna-se necessário, procuraremos evitar nas reflexões em torno das categorias utilizadas no estudo, a pretensão de encontrar um sentido único, estabelecido de forma definitiva. Ou seja, haja vista que o estatuto de conceito exige uma formalização e uma precisão bem maiores, privilegiamos aqui o estatuto de noção.

2.2.1. Qualificando o espaço geográfico e sua abordagem

Indo ao encontro da abordagem espacial necessária ao presente estudo, é preciso registrar que em meio à bibliografia consultada, encontramos em “A natureza do espaço” e “A condição urbana”, publicadas por Santos (1999) e Gomes (2002) respectivamente, as formulações mais inspiradoras. Apesar desses dois autores, nas obras aqui referenciadas, comungarem o desafio de construir instrumentos analíticos comprometidos com a interpretação dos fundamentos da realidade socioespacial contemporânea, é possível