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Capítulo 1: Dimensões da questão rural hoje

1.2. A problemática em torno do desenvolvimento rural

1.2.1. Do enfoque setorial ao enfoque espacial

Uma das implicações teórico-metodológicas imposta pelas transformações em curso no espaço rural é o rompimento com a concepção “produtivista” tradicional, que identificou, por muito tempo, o desenvolvimento rural em termos setoriais, avaliando-o exclusivamente a partir da eficiência dos sistemas de produção agropecuários e por indicadores de mercado (economia de escala, melhoria da produtividade e competitividade dos produtos agropecuários). Cazella e Mattei (2002), observam que essas variáveis, embora importantes, não são suficientes para avaliar a atual dinâmica do desenvolvimento rural, que pressupõe a incorporação de indicadores que transcendem os aspectos meramente produtivos, com destaque para as condições de vida das populações, as relações de trabalho, o acesso aos meios de produção, a qualidade dos produtos, a conservação dos recursos naturais e das paisagens rurais, etc.

Logo, pensar o desenvolvimento rural apenas em função da dinâmica da atividade agrícola vem se constituindo, para muitos contextos, num enfoque reducionista e até mesmo retrógrado. Ainda que em muitos casos a agricultura ofereça o essencial das oportunidades de emprego e geração de renda em áreas rurais, é preferível não reduzi-las ao seu caráter agrícola e entender que a atividade agropecuária é um dos elementos constitutivos do espaço e do desenvolvimento rural.

4 Cientes de que o uso do conceito de “desenvolvimento (rural) sustentável” tem permitido toda

sorte de ocultações de natureza ideológica, levando à profusão de qualificativos e de significações que, comumente, é fonte de sobreposição conceitual e até de confusão, Caporal e Costabeber (2000), propõem a diferenciação dos discursos a partir das duas principais correntes de pensamento que se apropriam do enfoque da sustentabilidade: a ecotecnocrática, que busca resolver a equação entre crescimento econômico, sociedade e meio ambiente através da adoção de estratégias tecnológicas e artifícios econômicos via mercado; e a ecossocial, que se caracteriza por suas críticas incisivas ao modelo de desenvolvimento hegemônico e por

Abramovay (1999), acrescenta que mesmo nas regiões menos desenvolvidas, há crescente evidência de que os estabelecimentos rurais (agrícolas e não agrícolas) engajam-se em atividades econômicas múltiplas. Além disso, conforme as economias rurais se desenvolvem, tendem a ser cada vez menos dominadas pela agricultura. Por sua vez, Gomez (2001), considera que este fenômeno – que não é algo transitório, senão que tende a crescer e consolidar-se – se deve aos seguintes fatores: i) à modernização tecnológica que torna possível que a agricultura se torne uma atividade individual, dispensando o envolvimento direto da força de trabalho familiar; ii) ao crescimento da produtividade que leva ao incremento da renda dos agricultores que permanecem na atividade; iii) ao apoio e incentivo de políticas públicas para atividades não agrícolas; iv) à expansão do trabalho de tempo parcial e da pluriatividade que integra a lógica de funcionamento das unidades de produção familiares.

Emerge desta perspectiva o entendimento de que em vez de um enquadramento setorial das zonas rurais, seria mais coerente uma definição multisetorial e, sobretudo, espacial. Portanto, o foco deve recair menos sobre os sistemas agrários e atividade agropecuária e mais sobre as dinâmicas territoriais – sobretudo naquelas áreas de povoamento menos denso. Desse ponto de vista, estima-se que as estratégias de desenvolvimento devem estar ajustadas aos requerimentos, especificidades e potencialidades de cada grupo social e de cada região.

Tendo em vista que a realidade toma forma em um espaço heterogêneo que não é apenas físico, mas também econômico, social e político, cada vez mais adjetivações como regional e, sobretudo, local e territorial, são empregadas para qualificar o processo e as estratégias de desenvolvimento rural. Segundo Abramovay (1998b), até mesmo a área econômica, que sempre privilegiou as dimensões temporais (ciclos econômicos) e setoriais (agrobusiness, complexos agroindustriais) do desenvolvimento, tem demonstrado um interesse crescente sobre sua dimensão espacial.

A referência à dinâmica espacial do desenvolvimento é verificada, sobretudo, nos países de capitalismo avançado, onde o evidenciamento da perda de vitalidade de áreas

tradicionalmente rurais vem provocando uma profunda reorientação nas políticas voltadas para o meio rural.5 Nesses países, a abordagem do desenvolvimento territorial vem se destacando

e tem como pressuposto o reconhecimento da necessidade de integração dos espaços e das populações marginalizadas aos processos de desenvolvimento macrorregional e nacional. A idéia central é que o território, mais que simples base física, constitui-se num tecido social e político complexo, feito por laços que vão muito além do espaço local (ABRAMOVAY, 1998b); cada território rural tem particularidades e um potencial que lhe são próprios, por isso as estratégias precisam estar adaptadas à realidade das diferentes zonas. Comumente, os objetivos de um programa de desenvolvimento territorial são definidos em torno de três princípios: aproveitar as oportunidades econômicas agrícolas ou não, assegurar o bem-estar das populações rurais e salvaguardar o patrimônio sociocultural das regiões rurais (LEADER, 1995).

Já na problemática do desenvolvimento latino-americano, França et al. (2002), sustentam ser possível identificar um deslocamento maior em direção ao local. Segundo esses autores, nos anos de 1990, simultaneamente ao processo de globalização econômica e ao fortalecimento de políticas de descentralização, a temática do desenvolvimento local desperta grande interesse e passa a motivar uma elevada diversidade de iniciativas que tendem a tomar o local como um espaço de efetiva atuação de diferentes sujeitos e segmentos sociais na busca do desenvolvimento. Segundo INDE (apud SCHMIDT et al., 2003), o incapaz de resolver todos os problemas, especialmente aqueles relacionados à equidade social.

5 Cazella e Roux (1999) consideram que no contexto europeu, a reforma da Política Agrícola

Comum/PAC, de 1992, ao mesmo tempo em que manteve o status quo da agricultura produtivista, adotou valores ambientais e de justiça territorial. Dentre os dispositivos de regulação territorial implementados, destacam-se: o Programa de Desenvolvimento Rural (PDR), para as regiões que apresentam limitações naturais à atividade agrícola, e a iniciativa Ligação Entre Atores do Desenvolvimento Rural/Leader, que financia ações inovadoras no meio rural. A partir de 1999, outras duas ações institucionais alimentaram a tendência de reestruturação do modelo de desenvolvimento até então dominante: a reforma da PAC, que adota medidas de correção das distorções entre as subvenções agrícolas e a proteção do meio ambiente e a Lei de Orientação Agrícola Francesa, que institui os chamados Contratos Territoriais de Estabelecimento/CTE. Segundo Remy (2003), esse último dispositivo constitui um conjunto de compromissos – assumido entre qualquer pessoa (física ou jurídica) que exerce uma atividade agrícola e a autoridade administrativa – relacionados à contribuição do estabelecimento na produção agropecuária (individual ou coletiva), no emprego e noutros aspectos sociais, na preservação dos recursos naturais e na ocupação e revitalização do espaço rural. Mais recentemente, o CTE foi substituído pelo Contrato de Agricultura Durável/CAD (ou sustentável).

desenvolvimento local deve ser compreendido como um processo de criação e/ou reconhecimento, de valorização e de apropriação das riquezas de um território, progressivamente controlado pelo conjunto dos atores.

O que parece inovador nestas abordagens (espacializadas) do desenvolvimento rural é o fato de que os recursos sociais e naturais locais/regionais passam a ser priorizados como fatores que favorecem o processo, inclusive em sua dimensão econômica. Note-se também que o desenvolvimento tende a ser concebido como um processo construído socialmente, de “baixo para cima”, onde os diferentes atores são os sujeitos do empreendimento. Trata- se de substituir um modelo vertical por uma concepção mais horizontal de desenvolvimento.6 Há um certo consenso de que esse processo deve implicar no

aprimoramento da autonomia relativa (individual e coletiva), o que propicia uma base de respeito ao direito de cada coletividade de estabelecer o conteúdo concreto e sempre mutável do desenvolvimento: as prioridades, os meios, as estratégias (SOUZA, 1996). Aliás, é preciso ter em mente que um dos traços mais significativos destas abordagens é o papel que desempenham as ações coletivas e/ou as formas associativas enquanto instrumento capaz de dinamizar e potencializar os recursos humanos e materiais existentes, especialmente no âmbito de programas de desenvolvimento voltados para zonas rurais desfavorecidas.

Para Abramovay (1998b), mais importante que vantagens competitivas dadas por atributos geográficos (recursos naturais, localização) e setoriais, é o fenômeno da proximidade social que permite formas de ação cooperativas – que incluem, evidentemente, a conquista de bens públicos como educação, saúde, informação – e a construção de instituições capazes de valorizar o ambiente em que atuam e de convertê-lo em base para empreendimentos inovadores. Ainda segundo o autor (ibid., p. 2), este processo de enriquecimento vai ao encontro de uma outra vertente de análise que tem seu eixo na noção

6 Benevides (1997), posicionando-se criticamente observa que de uma forma ou de outra, o processo

de desenvolvimento se dá dentro de uma lógica que atende ao modelo dominante. Para o autor, um dos maiores equívocos das concepções localistas refere-se à geografização da análise dos fenômenos políticos, por associar a redução da escala como condição para ampliar os espaços de participação democrática, desconsiderando, desse modo, o peso dos micropoderes na constituição das relações sociais de dominação. Nesse caso, deve-se buscar reconhecer a existência de interesses distintos e conflitos latentes como

de “capital social”, definida por Robert Putnam como sendo as “(...) características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas”.

Num balanço das iniciativas de desenvolvimento local/territorial, duas questões merecem ser destacadas: a primeira é a enorme quantidade de experiências que constam nas fontes ou bancos de dados existentes, a segunda é a grande diversidade de tipos de experiências que estão sendo implementadas, sendo que na maioria das regiões e localidades as diversas iniciativas não se encontram integradas, apesar de serem potencialmente complementares. De uma certa forma, essa grande quantidade-diversidade constitui um indicativo de que a temática não ficou restrita ao campo das idéias, traduzindo-se numa efetiva atuação dos atores locais na elaboração e implementação de iniciativas voltadas ao desenvolvimento, caracterizando o que Silveira (2002) denomina de “experimentalismo difuso”.

Torna-se conveniente ainda, fazer referência à “multifuncionalidade” enquanto abordagem que procura romper com o enfoque setorial e também valoriza a dimensão espacial do desenvolvimento rural. Segundo Carneiro e Maluf (2003), lançada no debate público há poucos anos, principalmente no âmbito da união européia e mais especificamente da França, essa visão procura ampliar o campo das funções sociais atribuídas à agricultura, que deixa de ser entendida apenas como produtora de bens agropecuários (alimentos e fibras). Porém, se o enfoque sobre as múltiplas funções da agricultura não é novo, o que muda, advertem os autores, são as funções valorizadas na atualidade: ela se torna responsável também pela conservação dos recursos naturais (água, solo, biodiversidade e outros), do patrimônio natural (paisagens) e pela qualidade dos alimentos. Desse modo, a multifuncionalidade da agricultura permite recolocar os termos em que a agricultura é inserida na problemática do desenvolvimento sustentável, ao mesmo tempo em que oferece as bases para que sejam repensadas as políticas agrícolas em vigor no tocante às transferências sociais de benefícios aos agricultores.

Por último, não seria precipitado concluir, que mesmo sob diferentes adjetivações o enfoque espacial do desenvolvimento vem favorecendo a inter-relação entre o rural e a

agricultura familiar, sobretudo devido ao esforço de romper com o enfoque setorial e de levar em conta a natureza e as especificidades dos espaços ocupados pela agricultura familiar, apesar da grande diversidade ou heterogeneidade existente.