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Da contribuição “para uma mudança de paradigma na metodologia de formação

2.5 Concepções que modelam e condicionam o Letra e Vida

2.5.3 Da contribuição “para uma mudança de paradigma na metodologia de formação

O Letra e Vida anunciava uma concepção de formação de professores pautada no respeito aos saberes já construídos pelo grupo de cursistas e pelo professor individualmente ao longo de sua carreira. Como resultado, a metodologia de formação continuada proposta dava prioridade à resolução de problemas e à relação entre os aspectos teóricos e práticos, por meio de material escrito e videográfico especialmente preparado para o curso, além do estudo de conteúdos fundamentais na formação de alfabetizadores segundo a abordagem psicogenética.

A concepção de formação, respaldada na relação dialética entre teoria e prática, influenciou o desenho do programa: encontros semanais, com tarefas que os cursistas deveriam executar, muitas vezes com seus alunos, e cujos resultados seriam analisados e discutidos em encontro posterior. Objetivava-se, assim, estabelecer a dialética da ação- -reflexão-ação e incorporar a ideia de professor reflexivo como pressupostos de formação que são, inclusive, indicados em diversos modelos e teorias de formação continuada de professores. Aparentemente, essa concepção motivou a duração diferenciada do programa – um ano – em relação a outras propostas de formação da rede estadual.11

O programa dava prioridade a duas frentes de trabalho: as reflexões teóricas sobre como os processos de aprendizagem de leitura e escrita e as discussões sobre a didática da

alfabetização, ou seja, sobre a organização de situações de aprendizagem adequadas às

necessidades dos alunos.

O curso introduziu como inovação uma formação em via dupla: de formadores locais e de professores. Como explica a supervisora do Programa:

[...] É o seguinte: nós não tínhamos formadores locais. [...] Os municípios do país que não são as capitais, que não são as grandes cidades, não têm estrutura técnica nas Secretarias. Então, uma das coisas que o Programa queria era botar um formador dentro das Secretarias [...]. Para isso, nós montamos um programa que é, na verdade,

11 A primeira turma, iniciada em 2003, sofreu ajustes durante o processo, e o curso durou praticamente um ano e

meio, segundo alguns cursistas. Confrontada com essa informação, a supervisora do programa esclareceu que o desenho original previa um ano e meio, mas a SEE pressionou para que ele fosse condensado em um ano, em virtude da mobilidade dos professores da rede não só entre séries e escolas, mas também entre DEs.

um pacote, em que uma pessoa, sob supervisão, mas que não tenha um profundo conhecimento do assunto, funciona como mediador [...]. Quer dizer, é um programa em que você forma, ao mesmo tempo, o formador e os professores, porque o formador vai desenvolver os módulos do programa, mas, antes de ele fazer com os professores, ele tem um trabalho de estudo e supervisão com alguém que vem de fora e que tem formação para fazer isso. Ele forma, então, esse formador, e é um vai e vem, porque esse formador, quando vai trabalhar com os professores, as questões da formação dele mesmo vão se colocando e voltam para a supervisão. E isso era a qualidade desse trabalho. Num país destes, se você for esperar que meia dúzia de

iluminados consiga alcançar seis mil municípios, você não faz nada (Consultora da

SEE/SP, Apêndice B, grifo nosso).

Vale ressaltar que a organização dos encontros presenciais era detalhada no Guia do

Formador (Brasil, 2002), com orientações muito precisas sobre o que fazer com os cursistas,

como fazer, em que momento e por quanto tempo. Aparentemente diretiva, a forma de “formar os formadores”, inerente à própria natureza da formação, usava multiplicadores para acompanhar/formar os cursistas.

Essa estratégia pretendia concorrer para que fossem preparados, na base do sistema estadual de educação, quadros estáveis de profissionais capazes de desenvolver a formação continuada de professores alfabetizadores.

A coordenadora pedagógica do Programa também salientou as diferenças regionais entre as duas coordenadorias de ensino, a metropolitana e a do interior, outro condicionante para a organização das atividades da formação e para a análise dos resultados obtidos que não pode ser desconsiderado na avaliação de seus efeitos:

Na capital, na Cogesp, tudo se agrava. Porque [...] na Cogesp, a gente tem uma situação muito mais difícil com programas como o Letra e Vida, que são por adesão e fora do horário de trabalho. A vida é muito mais difícil; os professores têm um número maior de empregos, as distâncias para ir e vir, enfim, tudo muito mais complicado. Então, a disponibilidade para participar do programa era menor e, além disso, outro problema que também é mais grave na Cogesp é o fato de que os coordenadores de grupos são na maioria coordenadores de escola ou ATP, eles não tinham nenhum suporte... Quer dizer, se os professores tinham que trabalhar fora do horário do trabalho, eles [os coordenadores de grupo] acabavam tendo de fazer isso também, só que eles não podiam se desligar das funções que tinham; então, pra eles, num número bastante grande de diretorias, isso foi uma sobrecarga de trabalho. Então, o que aconteceu? Na Cogesp, a gente teve menos pessoas dispostas a assumir o trabalho de formação do que seria necessário. Nós tivemos uma demanda reprimida muito significativa aqui, porque não tínhamos formador (Coordenadora pedagógica do Programa na FDE – Apêndice C).

Em artigo derivado de seu mestrado sobre formação continuada, que teve como objeto o Programa Letra e Vida, e como problema a análise do alcance do Programa na prática pedagógica de professores ex-cursistas, aprovados e certificados, no referido programa, atuantes nas séries iniciais, os resultados encontrados por Rigolon (2008) indicaram

dificuldades dos egressos do curso para conjugar os princípios nele propostos. Por meio de uma abordagem de pesquisa qualitativa que empregou diferentes procedimentos de coleta de informações, como entrevistas, observação in loco e análise documental, a pesquisa, circunscrita, a uma única diretoria de ensino da capital, situada na região Leste, indicou a grande dificuldade dos professores em conciliar os princípios propugnados pelo Letra e Vida, considerando os processos de formação continuada e as condições em que são implementados, revelado distorções entre a proposta e sua implementação. Além disso, a autora detectou dois pontos de estrangulamento do curso:

De acordo com os resultados obtidos, os depoimentos expressos acerca do processo formativo por que passaram essas professoras indicaram dois grandes aspectos: o despreparo dos formadores e o fato de as propostas de formação desencadeadas pelas políticas educacionais desconsiderarem as contingências reais (Rigolon, 2008, p. 460).

Gomes (2008), em seu mestrado, analisou a formação dos formadores que atuam nos programas de educação continuada, visando contribuir para o entendimento do alcance dos programas de formação em serviço na prática pedagógica dos professores das séries iniciais da rede pública de São Paulo. A partir de uma abordagem qualitativa de pesquisa, coletou dados por meio de entrevistas qualitativas concedidas por quatro formadoras de uma diretoria da zona leste da cidade de São Paulo. O estudo indicou que, mesmo sendo essenciais, o domínio teórico dos conteúdos do curso e a experiência dos formadores em alfabetização não foram suficientes para atender às expectativas, aos problemas ou às dúvidas dos cursistas que participavam do Letra e Vida. Assim, observa-se que o problema da qualidade dos formadores parece ser ainda de difícil solução: ou se atendem menos professores, com pessoal mais qualificado, ou, para expandir o atendimento da formação, corre-se o risco de submeter os cursistas ao despreparo dos formadores.

É forçoso realçar que parece que a organização da formação é insuficiente para atender às necessidades do público a que se destina. Hernandes (2008) sinalizou os limites da carga horária e do conteúdo para a garantia da compreensão, pelos cursistas, sobre como organizar boas situações de aprendizagem com base na psicogênese da língua escrita, em estudo de doutorado que buscou identificar os efeitos do Letra e Vida em salas de aula da região de Assis, a partir de uma abordagem de pesquisa-ação:

O formato de curso, distribuindo a sua carga horária de 180 horas em encontros presenciais e em momentos de reflexão sobre a prática, não foi, por si só, suficiente para que os pressupostos teóricos veiculados pelo Letra e Vida se traduzissem em práticas que contemplassem amplamente o referencial teórico e as propostas didáticas indicadas no Programa de Formação. Durante toda a pesquisa, pudemos perceber ainda a presença da concepção empirista direcionando muitas propostas de alfabetização das

professoras. Mas é preciso esclarecer que, como um programa de formação continuada, o curso lança bases importantes para a continuidade do processo de aprendizagem dos professores (p. 218-219).

Ao estudar o Profa, curso análogo ao Letra e Vida, Meira (2004) atestou que os cursistas consideraram boa a qualidade do material utilizado, assim como a forma de apresentação do curso e a metodologia de formação adotada, com destaque para as atividades de reflexão sobre a prática, a troca de experiências e a leitura para os professores. Também com base no Profa, Ferreira (2009) concluiu que ele foi um modelo bem sucedido de formação continuada de alfabetizadores para o contexto do Rio de Janeiro, distinguindo-se de outros cursos por algumas características: a duração prolongada, o respeito aos saberes dos cursistas, a consistência da base teórico-metodológica, a busca pela integração entre a teoria e a prática, o estímulo à reflexão do professor e a possibilidade de os participantes aplicarem previamente as situações de aprendizagem que iriam reproduzir na sala de aula.

De todo modo, apesar de ter apontado dificuldades para a concretização de alguns dos princípios propostos do Programa, Hernandes (2008) e mesmo Rigolon (2008) identificaram contribuições significativas para a aprendizagem da base alfabética pelos alunos das professoras cursistas.

2.5.4 “Da contribuição para a ampliação do universo cultural dos formadores e dos cursistas”

Um dos objetivos declarados do curso era ampliar o universo cultural dos professores e formá-los como leitores. A análise das coletâneas de textos dos três módulos permite inferir a importância dos textos literários na concepção subjacente ao Programa – formar o professor leitor e escritor, para que pudesse ser um bom alfabetizador. Nas palavras da supervisora do Programa:

[...] Para trabalhar na linha que se propõe, o professor precisaria ser alguém leitor e alguém que saiba ler e escrever bem. Se você já leu algum relatório de professor, você sabe que não é isso. E isso é um problema enorme. Por exemplo, [n]o Profa e [n]o Letra e Vida, e mesmo [n]o que a gente continua fazendo, o Ler e Escrever, todas as reuniões começam com uma situação de leitura em voz alta. E você vai ampliando o repertório de textos literários, ou não literários, mas, enfim, de leitura do professor. O Profa tinha 150 textos e, nas 50 reuniões de formação previstas, o formador tinha sempre três textos, dos quais ele escolhia um para ler em voz alta, mas ele distribuía os três para os professores. Então, para muitos professores, foi a primeira oportunidade de leitura que eles tiveram. Eles nunca tinham lido um livro, nenhum livro que não fosse livro escolar (Consultora da SEE/SP, Apêndice B).

Esse destaque dado à formação cultural do professor alfabetizador era respaldado pelo planejamento dos encontros semanais, visto que em todos eles se fazia uma leitura compartilhada, na qual o formador apresentava aos cursistas um texto literário. Para tanto, previam-se de dez a vinte minutos para a fruição da leitura.

Estudando essa estratégia de formação à luz do Profa, Lima (2008) conclui que a leitura de textos literários no contexto de formação contínua foi importante não só por valorizar essa prática e melhorar os índices do ensino da leitura e da escrita, como também para a formação pessoal e profissional dos cursistas e para a aprendizagem dos alunos. Na visão da autora, esse benefício alcançou professores e alunos, contribuindo para o desenvolvimento da capacidade de compreender melhor o mundo.

De qualquer forma, o Letra e Vida introduziu uma dimensão que muitas vezes falta na formação do professor alfabetizador: a ampliação de seu universo literário. Nos próximos capítulos, procura-se inferir se essa dinâmica logrou induzir mudanças nas práticas pedagógicas de alfabetização.

Pela análise do conjunto de informações obtidas sobre o Programa, o que fica evidente é que se trata de uma ação que ambiciona implementar uma determinada concepção de alfabetização. Não tendo sido suficiente a formação em si, o Programa lançou mão de estratégias de intervenção na gestão e na organização pedagógica mais ampla da escola (planejamento, organização de temas de estudos para os professores, envio de material didático e de apoio às atividades de leitura, entre outros). Ainda que seus objetivos sejam pautados no direito de os alunos de se alfabetizarem e de os professores terem formação continuada de qualidade, resta saber se a aparente ortodoxia de um pressuposto teórico pode contribuir para melhorar os resultados educacionais e alcançar os objetivos do Programa, ou se apenas manterá as já crônicas dificuldades e carências em torno da alfabetização.

Mas, para avançar nessa discussão, é preciso relacionar os resultados de desempenho dos alunos e as variáveis relativas ao Programa, num exercício metodológico que, como visto no capítulo anterior, não é simples. No Capítulo 3, discutem-se as dificuldades metodológicas para avaliar os impactos do Letra e Vida no desempenho dos alunos e seus efeitos nas próprias concepções e práticas dos professores e se explicitam também as soluções encontradas

METODOLOGIA DA

PESQUISA

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CAPÍTULO 3

METODOLOGIA DE PESQUISA

A arte da pesquisa é o de tornar um problema solúvel por descobrir maneiras de chegar até ele [...] Muitas vezes a solução se transforma na elaboração de alguns meios de quantificar os fenômenos ou estados que previamente tinham sido avaliados em termos de “algo mais”, “um pouco menos” ou “muito” [...]. A quantificação como tal não tem mérito, exceto na medida em que ajuda a resolver problemas. Quantificar não é ser um cientista, mas, por Deus, ajuda.1

Medawar, 1979, tradução nossa

Neste capítulo, relatam-se os procedimentos adotados na avaliação dos possíveis efeitos do programa Letra e Vida sobre os resultados dos alunos de 1ª série do Ensino Fundamental em escolas públicas da rede estadual paulista. Explicitam-se os pressupostos metodológicos da pesquisa, bem como as formas de coleta e registro dos dados e as técnicas de seu processamento e análise, enfocando a criação de variáveis e indicadores a partir de bases de dados já existentes e o uso da regressão linear múltipla, do teste de médias e das árvores de decisão para a análise dos efeitos dos programas. Apresentam-se ainda as categorias de análise dos dados obtidos na pesquisa de campo e, finalmente, os limites metodológicos que não foram superados, a despeito dos recursos empregados na análise de impactos do programa de formação docente.

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