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Da contribuição “para uma mudança de paradigma no que se refere à didática

2.5 Concepções que modelam e condicionam o Letra e Vida

2.5.1 Da contribuição “para uma mudança de paradigma no que se refere à didática

A concepção de alfabetização que subjaz ao Programa originou-se nos estudos de Emilia Ferreiro e colaboradores, que se basearam no marco conceitual da Psicologia Genética, de Jean Piaget, para compreender um processo de aquisição do conhecimento que ainda não havia sido explorado pela epistemologia genética: a aquisição da leitura e da escrita.

Uma das principais conclusões de Ferreiro é que os alunos, durante o processo de alfabetização, “ressignificam” a escrita. Sua pesquisa partiu da preocupação com a situação educacional dos países da América Latina que, segundo dados estatísticos da Unesco, divulgados na década de 1970, eram alarmantes devido ao grande número de analfabetos, multirrepetentes ou evadidos do sistema escolar.

Os resultados de seus estudos ensejaram uma mudança significativa na concepção de alfabetização, discussão que se deslocou dos aspectos metodológicos e das teorias de déficit cultural e social para a reflexão sobre como o aluno aprende. Para Ferreiro, aprendizagem e domínio da linguagem escrita vão além da codificação e decodificação do código, impondo a necessidade de:

[...] uma série de processos de reflexão sobre a linguagem para passar a uma escrita; mas, por sua vez, a escrita constituída permite novos processos de reflexão que dificilmente teriam podido existir sem ela (não se conhecem exemplos de reflexão gramatical em povos carentes de escrita, por exemplo). À semelhança das progressões histórica e psicogenética, teria que se buscar numa análise dos obstáculos que devem ser superados – cognitivamente falando – para alcançar uma tomada de consciência de certas propriedades fundamentais da linguagem (Ferreiro; Teberosky, 1985, p. 280).

No Brasil, a psicogênese da língua escrita conceituada por Ferreiro foi incorporada à ideia mais ampla de “construtivismo”, e ambos os referenciais embasam as propostas de ensino do Letra e Vida. O material de estudos entregue aos cursistas incluía diversos textos teóricos que esclareciam o posicionamento teórico do programa:

[...] De uma perspectiva construtivista, o conhecimento não é concebido como uma cópia do real incorporada diretamente pelo sujeito: pressupõe uma atividade, por parte de quem aprende, que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes. Isso vale tanto para os alunos quanto para o professor em processo de transformação. [...] Para se acomodar a essa teoria [empirista], o processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo para reconhecimento das famílias silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos (Weisz, 2003, p. 3).

No âmbito do Programa, concebe-se a língua escrita como um objeto complexo de aprendizagem, devendo por isso mesmo ser ensinada em contextos de uso real, tal como aparece na sociedade, e não a partir de textos elaborados para “ensinar a ler”, que a simplificam.

Dentre muitas outras coisas, o Programa supõe que os alunos em idade de alfabetização aprendem a ler, lendo e a escrever, escrevendo, assim como que podem cumprir as propostas de leitura e escrita antes mesmo de dominar o código.

Outro aspecto a destacar é o fato de os alunos lerem uma variedade de tipos textuais – clássicos da literatura infantil, material impresso presente no cotidiano como jornais, revistas, folhetos e rótulos de diversos produtos – e o trabalho com textos memorizados como cantigas de roda, parlendas, letras de música e quadrinhas, entre outros. Essas atividades são consideradas relevantes na proposta do Letra e Vida, que procura promover a interação dos com a cultura escrita. Esses aspectos diferenciam a proposta do Programa do trabalho baseado em métodos de alfabetização mistos ou ecléticos, que partem do pressuposto de que é preciso ensinar o alfabetizando a codificar e decodificar a escrita.

Pesquisas anteriores têm reportado resultados positivos dessa teoria para a qualidade da alfabetização dos alunos. Por exemplo, Hernandes (2008), ao estudar efeitos do Letra e Vida em escolas da região de Assis, identificou efeitos relacionados a mudanças nas práticas didáticas dos professores, a saber:

Os efeitos mais evidentes estão relacionados:

1) à utilização de avaliações para identificar o conhecimento sobre as hipóteses que os alunos constroem no seu processo de aquisição da base alfabética da escrita;

2) ao reconhecimento de que crianças que ainda não leem ou escrevem de forma convencional podem e devem fazê-lo em situações planejadas para que consigam obter sucesso;

3) ao abandono parcial de algumas práticas anteriormente utilizadas, pautadas na concepção empirista de aprendizagem;

4) à utilização do registro das avaliações em Mapas da Classe;

5) à circulação de textos de diferentes gêneros no trabalho de alfabetização (Hernandes, 2008, p. 211).

No entanto, os achados de Silva (2008), em sua dissertação de mestrado, diferem desses. A partir de uma investigação que analisa o registro do planejamento das atividades dos professores, considerando dez propostas de atividades específicas de produção textual,

realizadas por professores que participaram do Programa, para a produção de textos escritos pelos alunos, a autora argumenta que, apesar do investimento na formação de professores, em sala de aula apenas 30% das propostas analisadas correspondem aos referenciais teórico- metodológicos ensinados por meio do Letra e Vida. Apesar da natureza qualitativa do estudo e sua pequena abrangência, a autora sugere que se façam avaliação, supervisão e acompanhamento permanentes nas escolas, como estratégia necessária para as ações chegarem à sala de aula mais eficientemente.

Vale ressaltar que autores como Mortatti (2006), Morais (2006) e Piatti (2006) acreditam que, embora o discurso da alfabetização baseado na teoria construtivista venha se tornando hegemônico, a prática dos professores permanece eclética. Seja como for, a introdução do construtivismo é considerada um marco na discussão sobre alfabetização e seus pressupostos deslocam crescentemente os debates sobre a forma de alfabetizar, ampliando-o para além dos métodos.

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