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Perceção da classificação

2.2.2. Deficiência Mental? Ensaios e explicações

Quando confrontados com a questão: uma vez que fizeste a tua formação profissional numa instituição que dá resposta a pessoas com deficiência, na tua opinião, por que razão foste classificado(a) na categoria deficiência mental83?”, a maioria dos participantes procurou encontrar alguma explicação para as dificuldades que resultaram na atribuição do rótulo. Estas explicações podem agrupar-se em três grupos: i) causas externas; ii) características pessoais; iii) dificuldades de aprendizagem menos estigmatizantes.

Alguns participantes responsabilizam os fatores de natureza externa pelas suas dificuldades e consequente classificação. Um exemplo é a atribuição da explicação do insucesso escolar, feita por Igor, ao facto de o português não ser a sua língua materna. Não obstante a revelação de «que as coisas se começaram a logo complicar» na escola, ainda na Ucrânia, o seu país de origem porque «tinha dificuldades com a língua ucraniana e russa», mas terá sido quando chegou a Portugal que «a coisa começou a complicar-se porque não dominava a língua e não tinha capacidade para pensar em tantas línguas» (27 anos, ajudante de jardinagem, desempregado).

Também Mário atribui a inevitabilidade da classificação a causas externas, no seu caso à ineficácia pedagógica dos professores e à sua incapacidade para o ensinarem. Apesar de relatar a memória de sentir dificuldades na escola desde cedo, os professores são eleitos como os principais responsáveis por não conseguir aprender. Cansado de anos a tentar aprender os mesmos conteúdos, atribui o insucesso aos professores que teve

«É que é marrar com o mesmo assunto todos os dias. Eu chego ao final do dia e já não posso ver o assunto nem a professora. Gostava de aprender, mas ela [professora] não me ensina e se calhar já não vou aprender. (...) As professoras foram todas as mesmas, não deu nada» (Mário, 29 anos, operador de serviços de limpeza).

A sua explicação é pouco verosímil, tendo em conta a sua longa trajetória escolar e as probabilidades de só ter encontrado professores menos competentes serem muito reduzidas.

Esgotada a explicação orgânica, por inexistência de provas ao fim de uma longa bateria de exames clínicos, a classificação na categoria DI apresenta-se mais difícil de compreender como revela o discurso de Henrique: «Porque é que eu tinha aquelas dificuldades? (…) Nunca se descobriu nada, estava tudo a funcionar» (25 anos, vigilante de jardins).

É Ricardo, talvez porque conheceu a miséria por dentro na infância, que relaciona as suas dificuldades com causas de natureza etiológica e exógena, sendo notório no seu discurso uma

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multiplicidade de riscos como a fome, falta de estímulos que podem ter contribuído para as suas dificuldades, tal como defendido por autores como Schalock et al. (2012) e Luckasson et al., (2002).

«As dificuldades eram muitas lá em casa. Lembro-me da minha infância que não prestou para nada. (…) mas é… Passei fome, pedi esmola, pedi muita esmola. [Na escola] as minhas dificuldades começaram cedo e bem cedo. Eu nunca gostei da escola, sou franco. A capacidade não era muita e eu nem sabia o que era uma regra de casa. Eles [pais] alguma vez explicavam alguma coisa? Eles nem sabiam, nunca souberam» (Ricardo, 34 anos, empregado de manutenção).

Outros participantes, amiúde, vão revelando indícios reveladores da existência do consumo de álcool pelos progenitores ou da falta de apoio para o acompanhamento e realização das tarefas escolares, como refere Quim Moura:

«Dantes fazia muita matemática, agarrava em livros e punha-me sozinho a fazer as coisas. Sozinho porque os meus pais muita da matéria não percebiam. Os meus irmãos também não foram muito de ajudar. (…) Tivessem-me ajudado mais e se calhar podia estar melhor» (25 anos, ajudante de padaria)

Estes testemunhos que relacionam as condições de vida, nomeadamente de natureza social como a baixa escolaridade dos pais, a ausência de cuidados, regras e estímulos responsabilizando-as pelas suas dificuldades são muito interessantes porque confirmam a proposta de Mcdermott, Durkin, Schupf e Stein (2007) que sugerem evidências de que a variabilidade etiológica se prende com causas que podem ser orgânicas, genéticas e/ou sociais. Mas estas explicações também mostram uma capacidade de reflexão e relacionamento de acontecimentos, aspetos que exigem a mobilização de algumas de capacidades cognitivas (Gerber, 1990) e que lhes deviam estar vedados.

Conhecendo a origem socioeconómica e educacional dos progenitores, os testemunhos dos participantes também dão razão à tese de autores como Englund, Luckner, Whaley e Egeland (2004) e Epstein, (1991)84, que apontam o nível socioeconómico e educacional dos pais como preditor do envolvimento parental na escola, estabelecendo uma associação positiva entre envolvimento parental na escola e desempenho académico. O que estes relatos sugerem é que cumulativamente, pela origem social e pelo afastamento dos pais em relação à escola, à partida estes participantes já transportariam um conjunto de desvantagens, tão bem descritas pelos autores que se interessaram pelas dinâmicas da reprodução social.

Seabra (2009) dá conta da inexistência de qualquer investigação que tenha contradito as conclusões de Floud, Halsey e Martin (cit. in Seabra, 2009) que detetaram uma relação estreita entre o sucesso escolar e os níveis de escolaridade dos pais, nomeadamente as condições culturais favoráveis, como as atitudes e preferências dos progenitores.

Outro grupo de participantes procura ensaiar explicações para as dificuldades exibidas escola e que acabaram por ser responsáveis pela classificação na categoria DI com traços de comportamento socialmente mais aceites e menos estigmatizantes. É o caso de Rafael que procura encontrar

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Estes autores assinalam ainda a existência de um ciclo de afastamento, relativamente às famílias em situação social mais vulnerável, por se depararem com dificuldades acrescidas para se envolverem na escola, nomeadamente a falta de recursos, preocupações com questões de sobrevivência, perceção de baixa competência para tratar de assuntos relacionados com a escola e memórias negativas relacionadas com a sua própria experiência e com o valor que atribuem à escola.

explicações para a classificação na categoria DI na recordação de «quando era pequenino era muito nervoso e não parava quieto e quando chegava ao pé de uma pessoa fazia disparates (…) podia até bater» razões que o levaram a ser acompanhado «no centro de saúde mental, porque era muito nervoso e tomava remédios» (Rafael, 32 anos, chefe de armazém).

Por seu turno, Quim Moura esforça-se por repetir que «era mais a falta de atenção do que outra coisa. Falta de… era pouco estudo» e que se não fosse a sua «falta de interesse» e «se tivesse estudado mais» não teria dificuldades na escola.

Também Luís atribui as suas dificuldades a aspetos relacionados com as suas características pessoais: «às vezes devia ser mais determinado e não fui, não sei. Por ter dificuldades, ser tímido, não sei» e ao facto de ter começado «a falar um bocadinho tarde» (35 anos, ajudante de motorista).

Outro conjunto de explicações é dado por Ana e por Carlos que se apoiam na convicção de que a sua classificação na categoria DI resultou de uma perturbação que identificam como dislexia.

Ana apesar de responsabilizar a incompetência da «professora da escola primária» que «era má» sublinha que a «principal razão de não ter conseguido aprender» e que só mais tarde a mãe lhe explicou que tinha dislexia85. Esta participante acrescenta, ainda, que «desmaiava quando era pequenina» porque a sua dislexia dava-lhe para desmaiar86.

Este autodiagnóstico apropriado pelos próprios ou pelos familiares, foi sendo realizado a montante, quando começaram a ser divulgados, pela comunicação social, os traços da dislexia e se começaram a identificar com os sinais exibidos pelos disléxicos. À semelhança dos indivíduos identificados por Zetlin e Turner (1984) no grupo “vacilação”, também estes reconhecem algumas dificuldades e limitações que não são suficientes para que sejam classificados na categoria DI. Em sua substituição referem diagnósticos, mais benignos em termos de aceitação social e menos estigmatizantes, o que parece proporcionar-lhes algum conforto.

Mas as narrativas dos participantes e a forma como fazem a apresentação de si, também revelam o efeito descrito por Dubar (2006) sobre o recurso a termos e expressões diferentes das que resulta da classificação atribuída e respetiva identificação social, reveladores dos ‘mundos sociais’ que habitam as suas respostas à experiência de classificação na categoria deficiência intelectual.

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A dislexia é uma perturbação da leitura e da escrita. De acordo com o DSM-V a dislexia é uma das perturbações mais comuns da aprendizagem caracterizada por dificuldades na leitura, «problemas no reconhecimento preciso ou fluente de palavras, problemas de descodificação e dificuldades de ortografia» (AAP, 2013, p. 111).

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