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Este tipo reúne a maioria dos participantes nesta investigação (Ana, Aníbal, Carlos, Igor, Ismael, Joana, João, Leopoldina, Luísa, Morena, Quim Moura, Rafael, Ricardo e Susy). Estes indivíduos não internalizaram a classificação “deficiência intelectual” atribuída porque acreditam que esta decorreu de dificuldades situacionais (Mercer, 1973) que, em algum momento da sua vida escolar, os impediu de responder às exigências académicas, como era socialmente expectável. Assim, a classificação assume apenas uma relevância instrumental, na medida que lhes permite, de forma camaleónica, beneficiar de medidas de apoio para resolver as dificuldades de aprendizagem e o acesso ao emprego e beneficiar de apoios para responderem às suas necessidades quotidianas.

Em comum, estes indivíduos parecem adotar uma visão mais consistente com o modelo social da deficiência na medida em que as dificuldades exibidas ou percecionadas podem constituir barreiras possíveis de serem superadas com a mobilização de apoios adequados. Por exemplo, as condições especiais de frequência escolar, a frequência da formação profissional e o acesso ao emprego no âmbito da reabilitação profissional são percecionadas como medidas de apoio que os ajudaram a superar as suas dificuldades. Resolvidas as dificuldades, dissociam-se da classificação que procuram que fique suspensa no passado, uma vez que acreditam que o seu desempenho está à altura de muitos dos desafios do quotidiano.

À semelhança das conclusões de Jahoba (2010), também este grupo de participantes evidencia nos seus discursos, nos seus comportamentos e escolhas alguma tensão no processo identitário que opõe a identidade pessoal à identidade social ou, como refere Valentim (2008), oscilam num antagonismo

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entre as identidades pessoal e social. Mas esta tensão entre a identidade atribuída (por Outro) e a identidade reivindicada (por Si) (Dubar, 2006) não parece suficiente para que se verifique um choque biográfico. Em alternativa, estes participantes parecem adotar uma multiplicidade de “eus” (Gonçalves, 1995) que mobilizam de acordo com as circunstâncias e contextos, reveladora de uma assinalável fluidez identitária (Singly, 2003).

É assim que conscientes do estigma acoplado à categoria DI (Dexter, 1958; Goffman, 1990; Zetlin e Turner, 1984; Todd e Shern, 1997) e das situações sociais que ameaçam a sua exposição social (Gerber, 1990) se esforçam por esconder as suas limitações (Perske, 2005; Zetlin e Turner, 1984), desvalorizando a categoria atribuída, através do recurso a estratégias para reconstruírem a sua autoestima danificada. É o caso de Susy que, por opção, decidiu esconder dos sogros qualquer ligação à deficiência intelectual porque:

«(...) a pessoa nunca se sente bem, fica assim naquela com vergonha e isso. Mais a mais os outro vão sempre pensar que fizemos isto ou fizemos aquilo porque, lá está, porque temos um problema» (Susy, 26 anos, ajudante de lar).

Neste sentido, pode falar-se de uma identidade ficcionada que procura esconder as suas dificuldades e a sua ligação à categoria DI, como se tivessem uma identidade dupla. Esta fluidez leva-os a desenvolver estratégias que podem passar pela ocultação das suas dificuldades, da categoria atribuída (Edgerton, 1967), pelo evitamento e afastamento social e institucional de todos os aspetos relacionados com a deficiência, numa tentativa de passar por normal (Edgerton, 1967) ou, recorrendo à expressão de Sacks (1984) doing being ordinary. É este mecanismo a que recorre o Igor quando dá explicações vagas sobre a sua formação aos amigos que desconhecem a sua ligação à classificação DI.

«(...) quando me perguntam da minha formação digo que ando assim, a aprender no Montijo» (Igor, 27 anos, ajudante de jardinagem, desempregado).

Ou a estratégia de Ana para parecer que domina a contagem do dinheiro e consegue confirmar os trocos quando realiza transações com dinheiro:

«Eu sei o valor das coisas, sei quanto é que, mais ou menos custam, o problema é saber que entrego isto e tenho de receber tal… às vezes fico ali, bloqueio mesmo. Às vezes não consigo e venho-me embora, depois em casa pergunto ao meu namorado ou à minha mãe se tá certo e eles, depois dizem-me se tá certo ou não» (Ana, 26 anos, trabalhadora auxiliar, serviços gerais).

Refira-se que muitos destes participantes adquiriram habilitações escolares e competências profissionais superiores às do seu núcleo familiar e ambiente social em que circulam, o que provocou uma mudança de estatuto reconhecida nos ambientes em que vivem. Nalguns casos pode dizer-se que as relações de poder na família se inverteram, deixando o papel de dependentes e alvo de cuidados para assumirem o papel de cuidadores e responsáveis pelas famílias. Este aspeto será desenvolvido no capítulo IV.

Este tipo de identidade foi apelidado de “identidade intermitente” porque os indivíduos reconhecem a diminuição da capacidade ou incapacidade, mas apenas circunscrita ao desempenho de algumas

atividades. Para resolver estas dificuldades recorrem estrategicamente a apoios e instituições que acreditam poder contribuir para as ultrapassar, fugindo do insucesso com que se confrontaram noutras ofertas regulares. Superadas as dificuldades, através de mecanismos de apoio nos diferentes domínios das exigências quotidianas, a identidade DI é abandonada. Todavia este abandono não é permanente uma vez que, em qualquer momento, face a novas dificuldades, de forma pragmática estes participantes não hesitam em voltar a procurar apoio e a recorrer a instituições e medidas destinadas à população classificada na categoria deficiência intelectual.

«(...) quando preciso de ajuda vou ao CRP. Ainda agora tinha uma conta esquisita do telemóvel e teve que ser o Dr. Pedro a ajudar. Assim, conseguiu que vou pagando» (João, 27 anos, jardineiro).

Também Carlos, sem outro adulto em quem confiar para o ajudar a resolver um problema, recorreu, por sua iniciativa, ao técnico de serviço social da instituição para resolver umas «dividas às finanças e segurança social arranjadas», segundo ele, «pelo padrasto» e pela «mãe que se aproveitaram» dele (Carlos, 25 anos, pintor).

Esta identidade intermitente encontra resposta na caracterização apresentada por Singly (2003), nomeadamente nos atributos que lhe conferem fluidez, resultante da tensão entre liberdade e estabilidade e a multidimensionalidade. São estes atributos identitários que podem explicar a coexistência identitária num esforço individual de adaptação aos contextos em que se movem e aos papéis que desempenham. Neste sentido, é como se assumissem uma identidade dupla. A categoria DI pode ser predominante no contexto formativo ou profissional, porque lhes permite aceder a ofertas e medidas de apoio diferenciadas, mas terminado o horário da formação ou trabalho é suspensa, dando lugar a uma identidade onde a DI não tem lugar, uma vez que se movem em meios pouco exigentes culturalmente, o que lhes permite responder às mesmas exigências no seio do seu grupo doméstico ou social.

À semelhança das conclusões a que chegaram autores como Finlay e Lyons (2000) ou Szivos-Bach (1993), as comparações sociais descendentes são comuns em relação aos membros da categoria DI, revelando estes participantes uma autoperceção mais favorável em comparação com outros com mais dificuldades. Quando se comparam com indivíduos não classificados na categoria DI, oscilam entre comparações laterais, em que se assumem como iguais, e comparações sociais ascendentes, em que revelam uma autoperceção diminuída em comparação com os ditos “normais”.