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O aspeto mais sensível da elaboração do guião e da realização das entrevistas foi o relacionado com os contexto e processos que no curso de vida conduziram à classificação na categoria deficiência intelectual, uma vez que esta acarreta uma carga social negativa e é rejeitada por muitos indivíduos que realizam esforços significativos para se demarcarem da mesma, como ilustra a investigação realizada por Edgerton (1967). Assim, a estratégia utilizada, sempre que os participantes evitavam o assunto, foi questionar como se sentiram quando entraram para uma instituição cujo nome identificava ter como destinatários pessoas com deficiência mental.

Os problemas articulatórios a par do discurso pouco fluente, exibido por alguns participantes, dificultaram a condução da entrevista por obrigarem a algum esforço de compreensão por parte da investigadora. Na tentativa de contrariar a dificuldade de compreensão recorreu-se a técnicas de reformulação das questões ou pedidos para repetirem o que não foi compreendido.

Como já constatado por outros investigadores, o vocabulário é, na generalidade dos casos, limitado e a construção frásica é muitas vezes elementar, apresentando algumas características comuns:

o Omissão de palavras no decorrer discurso;

o Reprodução de diálogos em substituição do relato com predominância do discurso direto, «e ele disse» ou «depois ela foi e disse-me» (Ricardo, 34 anos, desempregado);

o Frases curtas;

o Contradições no discurso como ilustra este exemplo do Ismael «Até hoje tenho notícias dele. Às vezes fala comigo, outras vezes não fala» (Ismael, 27 anos, desempregado);

o Alguma confusão com os tempos verbais como esta apresentada pelo João, «porque desde eu ser pequeno» (27 anos, ajudante de jardinagem);

o Avanços e recuos na descrição temporal e espacial dos acontecimentos;

o Dificuldade em mobilizarem as memórias das suas experiências expressas em frases semelhantes como: «Isso agora é que já não me lembro» (Henrique, 25 anos, vigilante de jardins).

Não obstante algumas destas idiossincrasias, considera-se que a riqueza dos discursos e testemunhos que resultam do entrosamento do conjunto de técnicas não ficou comprometida, tendo o resultado final cumprido o objetivo de “transformar a sua história vivida em história contada” (Ferreira, 2014, p. 985).

Em algumas ocasiões, os participantes também aproveitaram o contexto da entrevista para esclarecer dúvidas do seu quotidiano: «Atão, mas diga lá, como é que eu faço para…» (Luísa, 25 anos,

ajudante de cozinha) ou para pedir orientação e conselho, «e agora? O que é que acha que eu devo fazer?» (Mário, 29 anos, ajudante polivalente). Nestas situações a investigadora absteve-se sempre de se pronunciar recorrendo à estratégia de devolução da pergunta.

1.2.3. Seleção e atributos dos participantes

Tratando-se de um estudo qualitativo, sem preocupações de natureza estatística e representativa, considerou-se que a opção pela multiplicidade de casos que permitisse a recolha de dados junto de um grupo de participantes com itinerários biográficos diversificados seria a mais adequada. Encontrado o vigésimo participante, encerrou-se o processo de seleção de participantes, uma vez que este grupo apresentava a qualidade e profundidade da informação necessária para responder aos objetivos propostos. Alargar o número de indivíduos não foi considerado, uma vez que a riqueza dos dados atingiu o efeito de saturação teórica (Glaser e Strauss, 1967) e a acumulação de mais informação dificultaria o seu tratamento, correndo-se o risco do volume de informação dificultar a análise em profundidade. Esta não foi uma decisão fácil para a investigadora que, contagiada pelas dinâmicas do trabalho de campo, teve de gerir considerações pragmáticas como o conflito entre a vontade de continuar a explorar as configurações singulares dos cursos de vida, as suas limitações decorrentes da acumulação dos papéis de docente a tempo inteiro e de estudante, e os limites temporais conferidos institucionalmente a um trabalho desta natureza. Porém, uma vez que o que está em causa não é a generalização dos resultados, mas antes o aprofundamento do conhecimento sobre as realidades individuais mais significativas, a diversidade dos casos selecionados parece adequada aos objetivos propostos.

Uma vez que se pretendia uma seleção intencional, procedeu-se ao estabelecimento de critérios que favorecessem a compreensão do fenómeno em estudo. Como estratégia de seleção dos participantes a investigadora recorreu à memória dos seus ex-formandos dos cursos de reabilitação profissional e à instituição de reabilitação profissional onde desenvolve a sua atividade como formadora externa, como contexto privilegiado de recuperação dos contatos dos potenciais participantes. Esta instituição revelou- se particularmente útil já que apoia ou apoiou indivíduos que beneficiaram de uma ou mais medidas de reabilitação profissional: formação profissional, apoio à colocação e acompanhamento pós-colocação, formação contínua e readaptação ao mundo do trabalho.

Na seleção dos participantes foram tidos em conta sete critérios cumulativos: o não ter nascido com uma condição de deficiência conhecida;

o ter sido classificado na categoria DI sem deficiência orgânica conhecida; o ter idade superior igual ou superior a vinte e quatro anos;

o ter frequentado um curso de formação do sistema de reabilitação profissional;

o ter entrado no mundo do trabalho por via das medidas de apoio enquadradas nas políticas de reabilitação;

o ter a experiência de contrato(s) de trabalho — emprego54

— num período temporal mínimo de doze meses;

o garantir uma representação equilibrada dos dois sexos.

A preocupação de considerar apenas candidatos ao estudo classificados na categoria DI de etiologia não orgânica, justifica-se pela necessidade de compreender o efeito de uma classificação estigmatizada atribuída mais tarde. Sublinhe-se, a este propósito, que o processo de classificação foi prévio e alheio a esta investigação. A garantia de pertença à categoria é assegurada pela frequência de um curso de reabilitação profissional cujo público-alvo é constituído por indivíduos classificadas na categoria DI com um perfil funcional considerado preditivo de algum sucesso na esfera laboral.

A opção quanto ao intervalo etário a considerar constituiu outro aspeto relevante na seleção dos participantes, acabando-se por privilegiar indivíduos com idades entre os 24 e os 41 anos. A idade foi considerada em virtude de marcar as oportunidades de acesso à escola regular, mecanismos de apoio e acesso ao emprego. Refira-se que na altura de seleção dos participantes se ensaia a hipótese de os percursos serem influenciados pelas oportunidades contextuais. A título de exemplo, o percurso escolar dos indivíduos nascidos antes de 1984 e que, por isso, entraram na escola antes do enquadramento das políticas de integração escolar, pode ter sido marcado por experiências diferentes daqueles que atingiram a idade mínima após a sua entrada em vigor55.

Uma vez que o emprego ainda constitui um dos marcadores mais importantes da adultícia, não só porque confere um sentido de identidade, mas também porque permite o acesso à independência financeira, saída de casa da família e estabelecimento de relações adultas (Riddell, 1998), procurou assegurar-se que, após a entrada no mercado de trabalho, existiu um tempo que permitiu que a remuneração auferida pudesse ter efeitos na independência financeira e, simultaneamente, para que se estabilizasse a condição de trabalhador de forma a ser possível observar as transformações produzidas nas condições de vida destes indivíduos.

Os participantes foram, ainda, selecionados em função dos critérios de género, garantindo uma representação paritária de ambos os sexos com a justificação da necessidade de analisar as diferenças ou semelhanças nas trajetórias para a vida adulta. Foram entrevistados 11 participantes do sexo masculino e 9 do sexo feminino. A ligeira sobre representação de entrevistados do sexo masculino foi desvalorizada por estar de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (AAP, 2002; 2013) que estima que a deficiência intelectual é mais frequente entre os sujeitos do sexo masculino, numa proporção aproximada de 5 homens para 1 mulher.

Não se considerou pertinente a variável origem social uma vez que a esmagadora maioria das pessoas com DI que participam neste estudo, e que espelham o universo das pessoas identificadas nesta

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Recorre-se ao termo emprego com o significado de “emprego livre” descrito por Soriano (2006, p. 4) como “trabalho aberto a qualquer potencial empregado (com ou sem necessidades especiais) que apresente as necessárias competências, conhecimentos e qualificações exigidas pelo empregador e sempre sujeito aos requisitos, condições e obrigações usuais”.

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categoria, têm origem social nas classes mais desfavorecidas, como é evidenciado pelo estudo realizado por Veiga (2006).