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Na maioria dos discursos e comportamentos observados descobre-se a importância do conformismo com a classificação legitimada pela aceitação de um padrão correspondente ao ritmo de aprendizagem e dificuldades em domínios específicos como atesta o testemunho de Carlos: «(…) os professores notavam que eu já tinha algumas dificuldades em relação às outras crianças» (Carlos, 25 anos, pintor). No seu caso, o conformismo resulta de uma atitude pragmática que alia o reconhecimento das suas dificuldades à necessidade de aproveitar as respostas que lhe permitissem aceder a uma vida melhor. Porém, este conformismo não impede o exercício de comparação social e a decisão de identificação ou rejeição com outros que frequentam a instituição, a quem reconhecem mais dificuldades:

«Aaahh… supostamente era mau. Tinha muitos deficientes, mesmo profundos» (Carlos, 25 anos, pintor).

Numa atitude pragmática, a classificação e a frequência de uma instituição orientada para pessoas com deficiência não lhe causou qualquer constrangimento, porque como expressa no seu comentário, o mais importante era encontrar uma solução que orientasse o seu futuro:

«O facto de ter deficiência no nome não me incomodou, nem tenho vergonha nisso. O que eu pensei foi que era importante que puxassem por mim para ter um futuro melhor» (Carlos, 25 anos, pintor).

Também Rafael, à semelhança de Carlos, tem um discurso que revela algum conformismo com o rumo que seguiu a sua trajetória escolar. No entanto, o que torna o seu testemunho particular é a identificação com a categoria, a comparação social com outros e, sobretudo, o reconhecimento da heterogeneidade da categoria e a sua estratificação.

É assim que relata o seu contacto com a deficiência, após a entrada na instituição de ensino especial:

«Quando cheguei à nova escola era uma instituição diferente, era especial. É aquilo que a gente sabe, aquela deficiência… pois! Ainda me lembro do princípio sim, né? Vejo tudo normal e depois vejo que há ali gente deficiente. Vá lá que eu tava numa sala que a deficiência era mais ou menos como eu, mais ou menos normais. As outras salas já eram com mais deficiência» (Rafael, 32 anos, chefe de armazém).

Ser enquadrado na categoria DI parece ser particularmente difícil por dois motivos: o primeiro decorre das limitações com que os participantes se confrontam que constituem barreiras objetivas nas práticas quotidianas e que fazem com que sejam encaminhados para soluções alternativas para

ultrapassar as dificuldades. Deste motivo decorre um segundo que se funda na censura social percebida pela associação que lhes é imposta por uma categoria estigmatizante e altamente desvalorizada, por vezes percebida erradamente como homogénea (Luckasson et al., 2002).

Estas circunstâncias fazem parte da experiência de quase todos os participantes, mas o relato de Susy é particularmente ilustrativo no que diz respeito à experiência das dificuldades e classificação, a que acrescenta o receio do peso social da classificação imposto pela identidade social atribuída ao rótulo:

«Mas a pessoa nunca se sente bem. Fica assim naquela, com vergonha e isso. Com medo que vão pensar, “que burra que tá aqui!”. Às vezes o meu namorado até costuma dizer: — Mas por acaso tu tens cara de deficiente? [risos] É que a pessoa não tem nada contra, mas fica assim… Tá a ver, não tá?» (Susy, 26 anos, ajudante de lar).

Do testemunho de João fica ainda uma pista que não confirma a tese sugerida por Beart, Hardy e Buchan (2005) que sugere que a categoria DI se assume como categoria dominante e se firma como a identidade primária dos indivíduos. Para João, a classificação na categoria DI é apresentada como um quase alívio na medida em que lhe permitiu aceder a uma instituição onde as diferenças da cor de pele e na aprendizagem são desvalorizadas, revelando não existir uma identidade dominante, mas antes concorrente, como ilustra o seu relato:

«Faz-me bem! Na instituição era mais fácil, porque antes [escola regular] as pessoas não se adaptavam com pessoas de cor e com os que não sabiam fazer [aprender e aplicar os conhecimentos] bem» (27 anos, jardineiro).

Também no caso de Ricardo, a orientação sexual homossexual concorre com a classificação na categoria DI, parecendo até ter maior peso identitário. No seu discurso, a identificação com a categoria DI é aceite como uma evidência decorrente «dos seus problemas em aprender», enquanto a orientação sexual foi um processo de descoberta que levou tempo a aceitar e que, ainda hoje, só assume num círculo reservado de pessoas íntimas como atesta o seu discurso e comportamento:

«Foi muito difícil porque eu tinha nojo de mim. Eu já tinha descoberto como era, mas nunca… Pensei muito e… era a minha tendência, era» (Ricardo, 34 anos, empregado de manutenção).

Durante o trabalho de campo, nos variados contextos sociais com outros colegas dele, Ricardo tirou a aliança, mentiu sobre o local onde vivia e desenvolveu sempre estratégias para não revelar aos outros colegas a sua orientação sexual ou indícios da sua vida conjugal. Como ele diz, tem alguns cuidados porque tem medo da reação das pessoas. Por exemplo, sempre que precisa que Maria o ajude com qualquer procedimento no seu telemóvel, Ricardo elimina o contacto do seu companheiro, identificado como “Amor”, evitando que ela suspeite que ele tem uma relação com outro homem.

«Eu tiro sempre, sempre a aliança. (…) Quando a Maria faz coisas no telemóvel, me ajuda, eu tiro sempre o número dele [companheiro] por que está lá gravado “Amor”» (Ricardo, 34 anos, empregado de manutenção).

Concomitante com a classificação na categoria DI, é a existência de uma desvantagem nas funções ou estrutura do corpo, que remete para uma deficiência de natureza mais objetiva, que parece favorecer a familiarização com a classificação na categoria mais genérica deficiência, sem nunca

particularizarem a categoria mais específica DI. Morena e Leopoldina são disso exemplo: A primeira com uma dificuldade na linguagem e a segunda com uma paraplegia falam da deficiência de uma forma que parece bem resolvida, talvez porque centradas na deficiência de natureza física, menos estigmatizante, consigam expurgar o peso que envolve a categoria DI.

A experiência relatada por Morena dá conta da sua preocupação em aceder a terapias que podem contribuir para melhorar as dificuldades, contribuindo para aligeirar o caráter permanente associado à deficiência, como se observa na sua afirmação:

«O meu problema é isto, a fala. Quando estava a trabalhar andei numa terapeuta da fala, fui eu que procurei. (…) Resolvi ir quando já podia pagar. Ficava perto do trabalho e ia lá na hora de almoço. Melhorou mais ou menos» (Morena, 41 anos, auxiliar administrativa, desempregada).

Para Leopoldina, o tempo que passou sem frequentar a escola e a inexistência de qualquer outra resposta para as suas limitações parecem ter tornado inquestionável, e quase uma bênção, a integração na instituição destinada a dar resposta a indivíduos com DI, como mostra o repetido desabafo: «devo tudo à instituição!»

Estes participantes podiam posicionar-se na categoria “situacionais”, criada por Mercer (1973), na medida em que reconhecem ter dificuldades em determinadas atividades, mas a sua trajetória mostra serem capazes de desempenhar papéis produtivos e de responsabilidade social.

A aceitação das dificuldades e a falta de oportunidades da escola regular em oferecer respostas alternativas é que os leva a anuir à inevitabilidade da classificação na categoria DI como única forma de acederem a ofertas escolares, formativas e de promoção de emprego. Todavia, os seus discursos mostram alguma reserva na forma como se demarcam do resto da população, conduzindo-os a uma preocupação em marcarem a distinção da população cuja visibilidade da deficiência é mais evidente, procurando situar-se sempre noutro patamar, onde se diferencia o Eu, do Eles “deficientes”.