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Perfil dos participantes

1.3. Protagonistas e enredos

A designação foto-grafias atribuída às narrativas individuais justifica-se por se tratar exatamente de um exercício de redação (grafia) que procurou desvendar as singularidades individuais produto da imagem (foto) que cada um dos participantes quis dar a conhecer. Adotando a sugestão de Lalanda (1998, p. 876), também se assume que “estas narrativas correspondem ao discurso do ator, onde este se conta, sem ser forçosamente autobiográfico”. Onde, num exercício de relato retrospetivo, na primeira pessoa, da “vida já vivida”, os participantes “dão forma e sentido” às suas experiências (Nico, 2011, p. 14).

Para além da informação recolhida nas entrevistas, estas foto-grafias construídas de forma mais biográfica, incorporam também as anotações de campo que se consideraram pertinentes, como a abordagem aos participantes para integrarem a investigação, o modo como decorreu a entrevista e as contradições encontradas entre o discurso produzido e a observação em contexto real.

Se as imagens, constituídas pelos comportamentos exibidos e informações que os participantes quiseram dar não constituem informação factual, mas antes “uma rememoração reflexiva que implica a interpretação subjetiva sobre os episódios narrados” (Garcia, 2000, in Ferreira, 2014, p. 984), inevitavelmente também estas foto-grafias representam o olhar igualmente subjetivo da observadora/investigadora que procurou captar e registar, à semelhança de um fotógrafo, a realidade como a viu, valorizou, reinterpretou e relacionou. Nelas procura-se, para além da caracterização de cada um dos participantes, dar conta das suas trajetórias de vida, até à conclusão do trabalho de campo, realçando os pontos de viragem que contribuíram para marcar momentos significativos das transições que carimbam o seu curso de vida, sem descurar “o passado incorporado dos atores” (Lahire, 2004, p. 21) na análise da sua ação, comportamentos e oportunidades objetivas do tempo em que as suas vidas se desenrolaram.

Em coerência com a moldura metodológica “curso de vida”, existiu uma preocupação em enquadrar as histórias individuais nos contextos em que se foram desenrolando, valorizando o passado biográfico e a pertença a uma geração na tentativa de aceder à compreensão da forma como “as experiências individuais podem ser utilizadas como recursos biográficos, quando relacionadas com os recursos estruturais, na explicação de uma transição biográfica” (Lalanda, 1998, p. 877).

A procura de manutenção de alguma uniformidade na redação, através da construção de um guião orientador e equilíbrio do número de carateres só foi, excecionalmente, interrompida nos percursos cujas histórias revelam maior diversidade de experiências. Ocultá-las constituiria uma lacuna para se compreender o curso de vida destes participantes.

Susana

Tem vinte e quatro anos e é a terceira filha de uma fratria de três irmãs, com trinta e dois e trinta e um anos, respetivamente. É solteira e vive na casa arrendada pelos seus pais com as irmãs e com a avó materna, a cada seis meses, já que a avó passa meio ano em casa de cada uma das filhas. O pai é ajudante de motorista e a mãe é doméstica, fazendo ocasionalmente alguns trabalhos de limpeza na propriedade onde moram e onde o pai está empregado. A mãe completou «a quarta classe», mas o pai «saiu cedo da escola» e as suas competências escolares são mínimas, já que, segundo a Susana, ele «só assina o nome».

Ao contrário das irmãs, não teve qualquer experiência na escola regular, entrando aos três anos para um colégio de ensino especial onde ficou até aos 16 anos. Apresenta dificuldades na articulação de algumas palavras, o que dificulta a compreensão do seu discurso, motivo que acredita ter dado origem à decisão da mãe de a colocar num colégio de educação especial, aqui designado por colégio Amarelo. Conta que era com alguma inveja que observava os «meninos na paragem do autocarro para irem para as escolas deles». A irmã mais velha concluiu o secundário, mas a do meio, «que também tem problemas», acabou por lhe fazer companhia no mesmo colégio. Ambas trabalham em hotelaria.

Quando saiu do colégio, apesar de aspirar à integração numa escola secundária, acabou por ficar em casa cerca de dezoito meses. Com dezoito anos, foi frequentar um curso de reabilitação profissional na área de hotelaria, numa instituição de ensino especial. Durante o curso fez algumas experiências de estágio profissional, e guarda com muito carinho a recordação do tempo em que desempenhou a função de auxiliar num jardim-de-infância porque «gostava mesmo de trabalhar com crianças».

Após um período de estágio, é contratada como ajudante de limpeza numa empresa familiar de prestação de serviços de jardinagem e organização de eventos. Este contrato, do qual guarda más recordações, constituiu a sua única experiência de trabalho remunerado. Queixa-se de muito trabalho, falta de respeito pelo seu horário de trabalho e, por fim, terem deixado de lhe pagar o salário, estando esta situação entregue à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT). À data do primeiro encontro/entrevista, Susana encontrava-se desempregada, a receber o subsídio de desemprego e a frequentar um curso de formação «Novos Empregos, Novas Oportunidades» numa instituição de reabilitação profissional, parceira de um Centro Novas Oportunidades. O seu grande objetivo era conseguir atingir o 9º ano, o que veio a acontecer seis meses após a primeira entrevista. À data da conclusão do trabalho de campo, Susana encontrava-se a frequentar outro curso de reabilitação profissional, desta feita na área de jardinagem, numa outra instituição. Está muito feliz porque tem amigos e já não passa os dias «de pijama fechada em casa».

Começou recentemente a namorar com Henrique59 que conheceu enquanto frequentava o CNO, namoro que acontece nos dias úteis quando ele a vai buscar à instituição e a leva à paragem do

59

autocarro. Este é o único momento em que Susana vive alguma liberdade, sem supervisão e controle da família ou técnicos da instituição.

Susana respondeu ao repto de se fazer acompanhar de fotografias de ‘momentos da sua vida’ e a primeira entrevista contou com este adereço que serviu de pano de fundo à sua condução. As fotografias selecionadas por Susana retratam momentos captados em família (eventos como a sua comunhão, passeios em família e casamentos de familiares) e de momentos de convívio decorrentes da sua experiência no decurso dos estágios profissionais.

Henrique

Tem vinte e cinco anos e é o mais novo de cinco irmãos. Tem dois irmãos mais velhos que «já casaram e fizeram as suas vidas». Até há cerca de um ano viveu com os pais, numa casa que estes têm arrendada a cerca de sete quilómetros da cidade, numa zona rural não servida por transportes públicos. Henrique tem de se deslocar cerca de 1,5 km a pé até à paragem do único autocarro que serve a zona. Na casa dos pais vive também um irmão solteiro com «quarenta e tal anos» que «tem problemas e não trabalha por causa de problemas com a bebida» e uma irmã que aguarda vaga numa instituição para pessoas com deficiência, com «trintas e tais» que ele caracteriza como tendo «muitos problemas e ataques e por isso nunca sai». Os pais não sabem ler nem escrever e Henrique não faz ideia se chegaram a frequentar a escola. O pai encontra-se reformado da atividade profissional de «construir postes de eletricidade». A mãe é trabalhadora agrícola e trabalha numa propriedade dedicada à produção de vinho.

Henrique tem alguma dificuldade em situar os acontecimentos no tempo, em recordar datas e eventos porque, segundo diz, «a cabeça já não é a mesma…e, não me lembro lá muito».

Frequentou um infantário e entrou numa escola de 1º CEB com seis anos, começando logo «os problemas na escola primária» o que fez que tivesse beneficiado de apoio de um professor «para ver se melhorava». Com 13 ou 14 anos, não se lembra a idade certa, foi frequentar o 5º ano, numa escola de 2º ciclo, com um currículo alternativo distribuído entre a frequência de algumas disciplinas e o restante tempo numa sala assegurada por um docente e auxiliar de uma instituição de ensino especial60. Aos dezoito anos frequenta um curso de reabilitação profissional, passando pela formação nas áreas de carpintaria e jardinagem. Após um período de estágio numa Junta de Freguesia, acabou por ser contratado como «vigilante de jardins», trabalhando em jardinagem e limpeza. À data da primeira

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Antes de a escolaridade ser obrigatória para todos os alunos, algumas instituições e escolas de 2º CEB, estabeleciam projetos de parceria, autorizados pelo Ministério da Educação, que procuravam contrariar a saída precoce dos jovens para as instituições de educação especial.

entrevista tinha saído de casa dos pais para ir viver para a residência autónoma61 de uma instituição. Com este suporte vive do seu salário e contribui mensalmente com uma quantia para casa, apoio significativo para a economia doméstica com poucos recursos.

Os seus relatos revelam dificuldade na gestão do dinheiro, a qual parece estender-se à gestão da economia doméstica da responsabilidade dos progenitores. Durante o trabalho de campo debateu-se com um conjunto de dívidas à empresa de fornecimento de eletricidade que vieram a resultar na interrupção de fornecimento. Mostrou-se surpreendido com esta situação, até porque tinha entregado, em casa, o dinheiro para o pagamento destas contas e não contava que os pais desviassem esta verba para fazer face a outras despesas, como lhe justificaram. Confrontado com a situação inesperada, que nem os progenitores nem ele parecem ser capazes de resolver, acaba por solicitar o apoio de adultos de confiança da instituição de reabilitação profissional. Foi assim possível negociar o pagamento fracionado da dívida e a reposição de fornecimento. Acautelando a possibilidade de esta situação se repetir, a conselho dos técnicos envolvidos, passou a fazer o pagamento destas despesas por transferência bancária.

Durante o trabalho de campo, Henrique esteve envolvido no processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, da responsabilidade de um Centro de Novas Oportunidades, mas o seu objetivo de ver certificado o 9º ano saiu gorado, conseguindo apenas, com grande frustração, a certificação do sexto ano de escolaridade. Foi durante este processo, de certificação de competências, que conheceu e se enamorou de Susana. Esta relação vive de encontros ao final do dia, quando Henrique a vai buscar ao centro de reabilitação profissional para a conduzir ao autocarro, uma vez que moram longe um do outro.

Henrique considera que o seu testemunho e o das outras pessoas como ele deve ser estudado e objeto de peças jornalísticas para «ensinar às outras pessoas que a gente [pessoas classificadas com deficiência] não somos fracos, somos guerreiros. A gente não somos nenhuns estúpidos, nenhuns parvos. (...) temos aquelas dificuldades porque Deus quis assim». Seis meses após a sua primeira entrevista Henrique tinha optado por voltar a viver em casa dos pais porque acredita que essa decisão lhe oferece maior liberdade.

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A Residência Autónoma é um projeto que visa acolher pessoas com deficiências e incapacidades que, mediante apoio, possuam capacidade de viver autonomamente, sendo, para tal, trabalhadas algumas competências pessoais e sociais, com vista a uma melhor integração na sociedade. Todas as atividades são supervisionadas por Ajudantes de Ação Direta que orientam os jovens na realização das tarefas e no processo de autonomia. A equipa conta ainda com a presença de Coordenação Técnica que, diariamente, acompanha e orienta os utentes na gestão do seu quotidiano e na adaptação a um novo projeto das suas vidas, assim como promove um trabalho próximo com as famílias.