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Durante grande parte do século XX nas sociedades ocidentais, a deficiência foi vista como um problema da pessoa, como algo que provoca a imperfeição do corpo e/ou da mente, e que torna os sujeitos dependentes da família, dos amigos e do Estado. De acordo com Mercer (1973), o modelo patológico desenvolvido pela medicina constitui-se como uma ferramenta conceptual para compreender e controlar as doenças e o mau funcionamento orgânico, focando-se na patologia e nos sintomas. As doenças são definidas pelos sintomas que as caracterizam realçando a correspondência entre “o normal = ausência de sintomas patológicos; anormal = presença de sintomas patológicos”, e, à luz deste modelo, “os processos que interferem com os sistemas de preservação são ‘maus’, i.e., patológicos, enquanto aqueles que melhoram a vida dos organismos são ‘bons’, i.e., saudáveis”, o que conduz à caracterização “em termos do que está errado com elas” (Mercer, 1973, p. 3).

Este modelo médico, também denominado modelo individual, é sustentado na crença de que a incapacidade da pessoa é um problema seu, consequência direta de doença, trauma ou outro problema e que requer assistência médica sob a forma de acompanhamento e prestação dos cuidados de saúde por profissionais, com o objetivo de promover a adaptação ou mudança de comportamento no indivíduo. Como referem Shakeaspeare e Watson (1998, p. 14), nesta perspetiva, a incapacidade corresponde “à raiz dos problemas das pessoas com deficiência”.

Esta associação à dependência foi apelidada de personal tragedy (Oliver, 1983) e teve impacto na organização das instituições educativas e assistencialistas por via da intervenção médica e psicológica. Como consequência, um grande número de indivíduos foi posto de lado (Barnes e Mercer, 2003) e enviado para instituições altamente segregadoras, com os argumentos de que seria para o seu próprio bem e que assim deixariam de representar um fardo para a sociedade (Goffman, 1990).

Na prática, estas instituições foram responsáveis pelo cárcere de um elevadíssimo número de pessoas com deficiência que aguardavam apenas o fim das suas vidas, levando autores como Ryan e Thomas (1980, p. 14) a declararem que a medicina tem sido o principal instrumento de exclusão das

pessoas com deficiência intelectual, representando “um estudo de caso de medicalização de um problema social”.

Foi com o modelo médico que floresceram as teorias da psicologia que valorizaram e sublinharam algumas características da DI, por oposição ao que seria considerado normal. Estas teorias enfatizaram a diferença e a inferioridade, em detrimento das semelhanças com os sujeitos sem DI (Ryan e Thomas, 1980), aspeto que, só por si, representa uma forma de exclusão. Efetivamente, ser visto como objeto de intervenção clínica realça muitos traços atribuídos às pessoas com deficiência, tais como fraqueza, desamparo, dependência e depreciação (Zola, cit. in Barnes e Mercer, 2003).

A tentativa de normalização, de acordo com Shakespeare e Watson (1998), mais não é que o reconhecimento de que a deficiência é um problema que precisa de ser remediado ou reparado.

O contexto social e histórico em que são divulgados progressos científicos nos trabalhos sobre o desenvolvimento humano, aumenta a pressão dos movimentos sociais de pessoas com deficiência física, com particular relevo para a UPIAS — Union of the Psysically Impaired Against Segregation —, no Reino Unido, onde se destaca o trabalho protagonizado por Michael Oliver que conduz à reconfiguração da deficiência. A partir da década de 70 do século XX, nasce o modelo social pela mão de movimentos reivindicativos da igualdade, emancipação e direito à plena participação das pessoas com deficiência.

É com este movimento que ganha visibilidade, em grande medida com o envolvimento de investigadores com deficiência físicas e sensoriais e cientistas sociais e da saúde (Barnes e Mercer, 2003), o modelo alternativo apelidado de modelo social (Rapley, 2004; WHO, 2011). Nesta perspetiva, a deficiência deixa de estar centrada no indivíduo, para colocar a tónica na sociedade e na forma como esta garante, ou não, a sua integração plena. A deficiência passa a ser observada como um produto da interação entre as pessoas com deficiência e as barreiras comportamentais e ambientais que impedem a sua participação plena e efetiva na sociedade, em condições de igualdade com as outras pessoas (Barnes e Mercer, 2003).

A DI já não descreve uma patologia ou característica individual, mas antes uma classificação aplicada a uma pessoa num determinado sistema social, sendo por isso uma condição relativa. Os indivíduos podem ter algumas funções mentais comprometidas, mas são as barreiras da sociedade, nomeadamente as atitudes e a ausência de recursos, que se impõem como incapacitantes e, por isso, deficientizadoras.

Este modelo estabelece uma distinção entre os termos deficiência e incapacidade15. Por deficiência entende-se uma diminuição ou perda numa ou mais funções e estruturas do corpo e por incapacidade entende-se uma limitação ou restrição que o indivíduo possa ter na execução de atividades, em resultado de uma desadequada organização social que não toma em linha de conta as pessoas com alguma deficiência física, conduzindo-os à exclusão da participação em atividades disponibilizadas para

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Tradução dos termos impairment e disability, respetivamente, da versão em língua portuguesa do documento Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) (OMS, 2004).

todos os outros (UPIAS, 1976, cit. in Barnes e Mercer, 2003). O termo incapacidade designa um conjunto complexo de condições resultante da interação entre as pessoas e o seu ambiente físico, social e atitudinal em que conduzem e vivem a sua vida (WHO, 2011).

Para o movimento que defende o modelo social, a deficiência resulta da discriminação e preconceito social, muito mais do que do seu perfil de funcionamento, sendo a maioria das dificuldades percebidas pelas pessoas com deficiência resultado do fracasso da sociedade para lhes proporcionar uma organização social e apoios que satisfaçam as suas necessidades.

Sendo atribuído ao meio-envolvente um papel crucial no desenvolvimento e comportamento humano, a solução passa por investir na remoção de barreiras físicas e atitudinais, promovendo as modificações necessárias para anular ou reduzir as barreiras à participação plena das pessoas. Neste sentido, a incapacidade é, do ponto de vista ideológico, uma questão política que exige alterações atitudinais e mudanças sociais profundas de forma a garantir os direitos humanos de todos os cidadãos. Morris (cit. in Barnes e Mercer, 2003, p. 12) ilustra a forma como este modelo reinterpreta as barreiras sociais:

uma impossibilidade de andar é uma deficiência, enquanto uma impossibilidade para entrar num edifício, porque a entrada apresenta uma série de degraus é uma incapacidade. Uma impossibilidade de falar é uma deficiência, mas uma impossibilidade de comunicar, por não estarem disponíveis as ajudas técnicas adequadas é uma incapacidade. Uma impossibilidade para mover o corpo da cama é uma deficiência, mas uma impossibilidade para sair da cama porque não existe ajuda física disponível é uma incapacidade.

Se este exercício poderia ser levado à exaustão no que diz respeito às deficiências motoras e sensoriais, onde existem ajudas técnicas e recursos que favorecem as acessibilidades, parece tratar-se de uma atividade mais difícil se a tentarmos aplicar à DI, onde as ajudas técnicas existem para facilitar a operacionalização de algumas atividades, mas são inexistentes para compensar as limitações cognitivas16. No que à DI diz respeito parecem ser as mudanças nas atitudes e nos comportamentos da sociedade que podem fazer toda a diferença.

Por outro lado, parece equilibrada a posição de alguns autores quando defendem que esta nova abordagem não pode ser exagerada, na medida em que não se pode pretender fazer crer que todas as limitações podem ser compensadas pelos fatores ambientais (Barnes e Mercer, 2003). Ou, como argumenta French (1993), a maioria dos problemas vividos pelas pessoas com deficiência serão difíceis, senão mesmo impossíveis de resolver através da introdução de alterações nos fatores ambientais (French, cit. in Rapley, 2004). Parece então que o maior enfoque deve ser colocado na promoção de políticas inclusivas, promotoras de igualdade de oportunidades.

Outros autores, como Corker e Shakespeare (2002, p. 66), sublinham que ambos os modelos procuram explicar a incapacidade de forma universal excluindo dimensões importantes da vida das

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Por exemplo, uma máquina de calcular pode revelar-se de extrema utilidade para realizar operações e calcular trocos, mas não substitui a seleção e decisão da operação adequada a realizar.

pessoas com deficiência e os seus conhecimentos, sugerindo que “a experiência das pessoas com incapacidade é demasiado complexa para se circunscrever a um único modelo”.

Em síntese, contrariamente ao modelo médico, o modelo social tende a promover alterações nos contextos de vida e nos contextos ambientais em alternativa à localização do(s) problema(s) no indivíduo. A deficiência passa a ter um estatuto adquirido, devido à forma como a sociedade avalia os comportamentos de determinado indivíduo e espera que ele se comporte dentro de um quadro definido como característico.

Shakespeare e Watson (1998) referem mesmo que os indivíduos enquadrados nesta categoria são um grupo social distinto, à semelhança dos negros e das lésbicas e gays, sugerindo que a deficiência é o produto de uma relação estrutural entre os indivíduos e a discriminação social. Esta tese leva um conjunto de autores a defender que, numa perspetiva socio antropológica, a deficiência pode ser vista como uma construção social (Rapley, 2004; Taylor, 2000; Whyte e Ingstad, 1995), uma vez que, à semelhança de outras formas de desvio social, o que apelidamos de deficiência não constitui uma condição objetiva, mas antes um conjunto de conceitos subjetivos atribuídos pelos responsáveis pela classificação (Bogdan e Taylor, 1994). A deficiência é efetivamente uma experiência em mudança social, decorrente da forma como a sociedade a estabelece, a organiza e a valoriza (Abberley, 2002), verificando-se que a sua conceptualização apresenta contrastes na história e de sociedade para sociedade (Barnes e Mercer, 2003).

Do reconhecimento das limitações de ambos os modelos surge um terceiro modelo, designado por modelo biopsicossocial que nasce das críticas ao modelo social, como resposta para melhorar as condições de vida das pessoas com deficiência. Do coro de críticas, emerge a reconceptualização da deficiência como forma de opressão, por “não considerar as experiências de dor, sofrimento e privação que podem estar associadas à condição física da pessoa com deficiência” (Portugal, 2011, p. 28). Implícita nesta crítica observa-se a necessidade de afirmar que a experiência de dor é objetiva e não apenas uma construção social.

Engel (cit. in CRPG/ISCTE, 2007) identifica este modelo como uma abordagem sistémica e interdisciplinar de interpretação do funcionamento humano, composto pela interação complexa entre múltiplos fatores: orgânicos, psicológicos e sociais. Para responder a esta nova perspetiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) propôs a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) que defende corresponder a uma síntese entre o modelo médico e o modelo social, consubstanciada numa abordagem biopsicossocial capaz de oferecer “uma visão coerente das diferentes perspetivas de saúde: biológica, individual e social” (OMS, 2004, p. 22). De acordo com esta visão, a noção de deficiência assenta em três visões estruturantes: i) funcionamento do corpo, nomeadamente das funções fisiológicas e psicológicas, e da estrutura, que se refere às partes anatómicas; ii) atividades e participação; e iii) fatores ambientais que podem limitar a participação

(OMS, 2004). No ponto 1.1.2. será desenvolvida, mais em detalhe, o papel da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e o seu contributo para a classificação da DI.