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No caso de Susana, o atraso na fala e as dificuldades que exibia na articulação e que comprometiam a comunicação oral, levaram a mãe a antecipar que ela não conseguiria fazer as aprendizagens numa escola regular, assumindo tacitamente que a filha teria alguma deficiência só possível de encontrar resposta numa escola de ensino especial. É desta forma, confiando no seu relato, que não tem oportunidade de frequentar um infantário e aos três anos passa a frequentar um estabelecimento particular de ensino especial.

«Eu queria ter uma escola, uma escola normal e queria aprender a fazer umas coisas e assim, mas andavam a meter medo à minha mãe» (Susana, 24 anos, ajudante de limpeza, desempregada).

Já na «escola especial», lembra-se de ter apoio da psicóloga com quem «fazia uns desenhos, fazia tipo cópias e ler também» e da terapeuta da fala que a ensinou a «falar melhor». Susana cresceu e fez a

sua trajetória escolar a acreditar na identidade social atribuída, que era diferente e que isso não lhe permitia aceder às ofertas escolares dos outros «meninos que encontrava na paragem» do autocarro.

Para os restantes participantes foram as dificuldades com que se confrontaram ao longo do seu percurso escolar que fizeram “soar o alarme” da diferença conduzindo-os a uma classificação na categoria DI, apesar de alguns dos mais novos passarem pela classificação intermédia NEE. Para estes indivíduos, foi a partir do momento em que as dificuldades em adquirir e aplicar os conhecimentos se manifestaram que a escola respondeu de acordo com a conceção dominante na época e dentro das opções legislativas disponíveis no âmbito das políticas educativas.

Como se desenvolverá no capítulo III, dedicado às políticas de educação e formação, ao longo dos tempos as respostas educativas oscilaram entre a retenção repetida, o encorajamento da desistência, a orientação para avaliação clínica, o encaminhamento para instituições de ensino especial ou a aplicação de medidas de apoio à integração e diferenciação curricular.

Em qualquer um dos casos, a experiência escolar culminou na atribuição de uma classificação apoiada muitas vezes em diagnósticos clínicos, mas o que os testemunhos realçam são experiências individuais onde imperam a perceção das dificuldades sentidas e a comparação com os outros.

Por exemplo, para Joaquina a quem ninguém explicou o que é a DI, o seu entendimento desta categoria é semelhante ao da maioria dos participantes, para quem a característica distintiva é o facto de as aprendizagens académicas se terem revelado uma tarefa difícil: «sinto-me especial assim por causa das minhas dificuldades na aprendizagem. É difícil!» (25 anos, ajudante polivalente, desempregada).

Da mesma forma, também João não sabe bem explicar o que é DI, e por mais que os outros lhe digam, nomeadamente os irmãos, «tu não tens esses problemas! (…) tu não tens nada disso de deficiências e dessas coisas», aquilo que sabe é que é no seio do grupo de colegas da instituição de ensino especial, do endogrupo, que se sente bem, reconhecendo que precisa de «uma forma diferente de ensinar» para conseguir aprender (27 anos, jardineiro).

No seu caso, à semelhança da maioria dos participantes, a perceção da diferença resulta da comparação com os colegas da turma, nomeadamente da perceção de um ritmo mais lento de aquisição das aprendizagens e/ou a incapacidade para realizar algumas aprendizagens do currículo regular, que o distancia dos outros.

«Dantes era muito difícil estar lá, ser acompanhado pela professora a dizer aquilo e para fazer aquilo e eu não dizia, não fazia. Não fazia muitas coisas, não queria e não conseguia. As avaliações que os professores faziam diziam que eu era capaz, que eu sou esforçado, mas prontos, tinha que fazer melhor e ser mais avaliado. Eu pensava: — com tempo chegarei lá e vou fazer o que ele fazem» (João, 27 anos, jardineiro).

Enquanto no seu tempo as dificuldades acentuadas em acompanhar o currículo comum e, nalguns casos a não realização de aprendizagens comuns para o seu grupo etário, confere uma aproximação àquilo que é socialmente percebido como DI, para a maioria dos participantes o paralelo que

estabelecem entre o seu ritmo de aprendizagem e o dos outros, bem como do fracasso para realizarem as aprendizagens expectáveis para a sua idade, não é percebido como uma categoria marcante na sua identidade, mas tão-somente como problemas circunscritos a uma dificuldade identificada e limitada. É esta a experiência de Ana que afirma ter uma «deficiência menos grave, só ali no ler e escrever» (26 anos, trabalhadora auxiliar, serviços gerais). No seu caso, as dificuldades identificadas não apresentam uma ameaça à sua identidade (Breakwell, cit. in Finlay e Lyons, 2000).

É também esta crença que contribui para a desconformidade entre a autoperceção dos participantes e a perceção social conferida pelo rótulo. É o que se observa no testemunho de Maria que rejeita liminarmente a classificação na categoria DI, sustentando a sua convicção na recordação das palavras da mãe que lhe contou que

«a técnica que lá a atendeu [no CRP] disse-lhe: — Olhe, a sua filha não é deficiente só que o problema que ela tem aqui é mesmo só da aprendizagem, que é para depois… Não sei já explicar muito bem» (Maria, 33 anos, assistente operacional).

Pode afirmar-se que são as exigências académicas as responsáveis pela classificação numa categoria estigmatizante, seja ela NEE ou DI. A Escola parece assumir-se com a instituição que sinaliza as diferenças não percebidas até à sua frequência, pelos participantes e pelas suas famílias. Pode, portanto, afirmar-se que sendo a escola a primeira instância de sinalização, classificação e categorização, é a instituição deficientizadora por excelência, já que as suas práticas contribuem para a discriminação dos alunos que se afastam culturalmente das expetativas (Mercer, 1973; 1977), favorecendo a sobre representação destas no universo dos indivíduos classificados com NEE. Em consequência, a classificação na categoria DI acaba por surgir quando tiverem necessidade de recorrer a ofertas no âmbito das medidas de formação e apoio ao emprego destinadas à população com deficiência e incapacidade.