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caracterização do fenômeno e delimitação dos dados

3. Distinções entre predicações depictivas e outras construções

3.2. Depictivos e advérbios

Nesta subseção, nós nos limitamos a distinguir os predicados depictivos de advérbios, diante de possíveis alegações de que o adjetivo que ocorre em estruturas de predicação

63 Exemplos e respectivas traduções retirados de Barbosa (2008: 130).

(68) a. *Por você eu sangro eu mesmo seco. b. *Corte-o solto, agora!

Capítulo 1 — Predicação secundária depictiva: caracterização do fenômeno e delimitação dos dados

67 depictiva equivaleria a um advérbio. Discussões mais aprofundadas sobre essa nada simples distinção, que tomam por base uma perspectiva translinguística no estudo de depictivos e advérbios, podem ser encontradas em Schultze-Berndt & Himmelmann (2004) e Himmelmann & Schultze-Berndt (2005), por exemplo. Embora cientes da complexidade do assunto nesse tipo de análise tipológica, nós nos restringimos a pontuar apenas algumas características do inglês e do português brasileiro que indicam diferenças de ordem morfossintática e semântica entre as construções depictivas e as adverbiais, comumente analisadas como adjuntos.

Com relação a esse tópico, Rothstein (2006: 210) apresenta o conhecido fato de que, no inglês, a diferença entre depictivos e advérbios se manifesta morfologicamente. Nessa língua, advérbios contam com o sufixo –ly (que corresponde, grosso modo, ao nosso –mente, do português), ausente em predicados secundários depictivos. Isso é ilustrado no exemplo em (69) apresentado pela autora, que compara o depictivo “angry” com o advérbio “angrily”:

O contraste entre as interpretações das sentenças em (69) exemplifica aquele que é um dos principais fatores a distinguir predicados depictivos de advérbios, em uma primeira análise, de acordo com Himmelmann & Schultze-Berndt (2005: 4): a

orientação desses elementos. Conforme os autores, o predicado depictivo está

geralmente orientado a um participante da oração principal, como já mencionamos (cf. seção 2.3), ao passo que os advérbios são entendidos como orientados a eventos (Himmelmann & Schultze-Berndt, 2005: 4).

Em outras palavras, enquanto o advérbio atribui uma propriedade a um processo, o predicado secundário depictivo atribui uma propriedade a um participante do evento durante o processo, conforme explica Rothstein (2006: 210). Assim, quanto à sentença (69a), Rothstein (2006: 210) afirma que a veracidade de sua leitura depende de John estar efetivamente zangado no momento em que deixa a sala. Em contrapartida, quanto (69) a. John left the room angry.

‘John deixou a sala zangado / raivoso’.

b. John left the room angrily.

‘John deixou a sala de modo raivoso / raivosamente’.

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68 à leitura da sentença em (69b), Rothstein (2006: 210) afirma que é possível que John deixe a sala de modo irritadiço ou raivoso, mas sem estar de fato irritado.

Rothstein (2004b: 63-64) comprova a diferença semântica entre orientação a partipante e orientação a evento com relações de acarretamento. Com os exemplos em (70) a seguir, a autora afirma que as sentenças (70a,b) com o predicado depictivo “drunk” (‘bêbado’), implicam que alguém está bêbado (i.e., “John”), enquanto as sentenças (70c, d) com o advérbio “drunkenly” (‘bebadamente’) não acarretam alguém estar bêbado. Assim, em (70b) e (70d), a continuação “although he was sober” (‘embora ele estivesse sóbrio’), que aponta para o estado do participante, torna semanticamente infeliz a sentença com o depictivo, por indicar uma incoerência, ao passo que é perfeitamente compatível com a sentença com o advérbio:

Rothstein (2004b: 64) interpreta essa diferença em termos de atribuição de papel temático. Para a autora, um depictivo é um predicado e, como tal, atribui papel temático ao seu sujeito, ao contrário de um advérbio. Segundo Rothstein, isso se mantém até mesmo para os casos de advérbios orientados a participantes , como “enthusiastically” (‘entusiasticamente’) ou “reluctantly” (‘relutantemente’), exemplificados em (71a). Embora esses advérbios pareçam atribuir um papel temático a um agente do evento, a autora explica que eles, na verdade, não entram em uma relação de predicação, pois não atribuem uma propriedade a um participante, mas apenas descrevem o modo como esse agente participou no evento (i.e., de modo entusiástico ou de modo relutante) (70) a. John drove the car drunk

‘John dirigiu o carro bêbado’.

b. #John drove the car drunk, although he was sober.

‘John dirigiu o carro bêbado, embora ele estivesse sóbrio’.

c. John drove the car drunkenly.

‘John dirigiu o carro bebadamente / de forma bêbada’.

d. John drove the car drunkenly, although he was sober.

‘John dirigiu o carro bebadamente / de forma bêbada, embora ele estivesse sóbrio’.

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69 (Rothstein, 2004b: 64). Como evidência disso, a autora afirma que a sentença (71b) não representa uma contradição no inglês:

Com relação ao português brasileiro, a diferença entre depicitvos e advérbios parece se sustentar nos mesmos moldes do que acabamos de ver para o inglês. Bisol (1975: 24), por exemplo, considera incorreto equiparar o adjetivo que ocorre como predicado em uma construção depictiva no português a um advérbio. A autora apresenta as sentenças em (72) para mostrar que a substituição do adjetivo “feliz”, em (72a), e do adjetivo “humildes”, em (72b), pelos advérbios “felizmente” e “humildemente” em (72b) e (72d), respectivamente, resulta em orações sintática e semanticamente distintas (Bisol, 1975: 25):

O adjetivo na sentença (72a) se refere ao sujeito (“a menina”), segundo a autora, mas o advérbio em (72b) se refere à oração como um todo. Semelhantemente, Bisol (1975: 25) afirma que a sentença em (72c) significa que “eles estavam humildes ao escutar a queixa” (leitura depictiva), mas que a sentença em (72d) significa que “eles escutavam a queixa de uma maneira humilde” (leitura adverbial). Vê-se que essa análise corresponde ao que foi dito sobre a diferença entre orientação a participante e orientação a evento. Ademais, Bisol (1975: 25) afirma que há sentenças que admitem a presença do adjetivo, mas rejeitam o advérbio (vide (73) e (74)), e sentenças que rejeitam o adjetivo, mas permitem o advérbio (vide (75)):

(71) a. John greeted Mary enthusiastically/reluctantly

‘John cumprimentou Mary entusiasticamente / relutantemente’.

b. John welcomed Mary enthusiastically although he was not enthusiastic about welcoming her.

‘John recepcionou Mary entusiasticamente, embora ele não estivesse entusiástico /entusiasmado em recebê-la’.

(Rothstein, 2004b: 64)

(72) a. A menina chegou feliz. b. A menina chegou felizmente. c. Eles escutavam a queixa humildes. d. Eles escutavam a queixa humildemente.

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70 Como o adjetivo nos dados de predicação secundária apresentados não se comporta como um advérbio, concluímos que depictivos e advérbios nessas línguas são elementos de naturezas distintas, com propriedades semânticas, morfológicas e sintáticas tais que tornam incorreta a equivalência entre eles.64 Além disso, embora se possa alegar que ambos partilham uma natureza de adjunto em línguas como o português (cf. Schultze-Berndt & Himmelmann, 2004: 78), o adjetivo nessas estruturas é, em nosso entendimento, definitivamente um predicado e atribui um papel temático (seguindo Rothstein, 2004b), mas não poderíamos afirmar o mesmo a respeito dos advérbios.