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caracterização do fenômeno e delimitação dos dados

3. Distinções entre predicações depictivas e outras construções

3.3 Depictivos e modificadores atributivos

Nesta subseção, apresentamos algumas diferenças entre o adjetivo que ocorre como modificador atributivo de um nome e o adjetivo que ocorre como predicado secundário depictivo. Com relação ao português brasileiro, mostrar a diferença entre essas duas

64 Duas observações a respeito do português: (a) a distinção apresentada aqui não faz referência aos

adjetivos que se comportam como advérbios de modo (cf. Ele fala rápido vs. Ele fala rapidamente), diferindo destes quanto à presença do sufixo –mente; (b) a concordância é outro fator (de ordem morfossintática) que aponta uma distinção formal entre depictivos e advérbios nessa língua — de maneira geral e simplificada, depictivos no português permitem a concordância de gênero e número com seu sujeito (vide (i)), enquanto os advérbios são tipicamente caracterizados como invariáveis (vide (ii)):

(i) As meninasi chegaram cansadasi.

(ii) As meninas chegaram rápido / rapidamente.

A respeito desse suposto uso adverbial dos adjetivos, no entanto, convém mencionarmos o trabalho de Lobato (2008). Para a autora, não haveria, nesses casos, um uso adverbial do adjetivo, mas um uso adjetival. Agradeço ao professor Marcus Lunguinho e à professora Helena Guerra Vicente por me alertarem sobre essa proposta de Lobato.

(73) a. O cozinheiro estava limpo ao assar a carne. b. O cozinheiro assou a carne limpo.

c. *O cozinheiro assou a carne limpamente.

(74) a. A carta estava aberta ao chegar. b. A carta chegou aberta.

c. *A carta chegou abertamente.

(75) a. Maria morreu lentamente. b. *Maria morreu lenta.

c. *Maria estava lenta ao morrer.

Capítulo 1 — Predicação secundária depictiva: caracterização do fenômeno e delimitação dos dados

71 possibilidades do adjetivo se mostra especialmente relevante diante da ambiguidade de sentenças como (76), como coloca Foltran (1999: 27):

Foltran atenta para o fato de haver duas leituras possíveis para sentenças com a ordem linear como (76), associadas a duas estruturas sintáticas distintas (cf. também Franchi, Negrão e Müller, 1998; Lobato, 2016 [1990]). Conforme explica a autora, uma das interpretações possíveis é a chamada leitura (modificadora) atributiva, em que o adjetivo “quebrado” integra o sintagma nominal formado pela sequência [o carro quebrado]. A segunda leitura, de acordo com Foltran, equivale à leitura predicativa, em que o adjetivo “quebrado” não faz parte do sintagma nominal, mas forma um constituinte independente. A leitura depictiva corresponde a essa segunda interpretação.

Foltran (1999: 27) desfaz a ambiguidade do dado em (76) por meio de testes de movimento de constituinte (passivização, topicalização e clivagem), ilustrados em (77) e (78) (cf. também Bisol, 1975: 38). Segundo a autora, os dados em (77) mostram o adjetivo em uma leitura atributiva, nos quais se verifica o deslocamento do constituinte [o carro quebrado] como um todo, enquanto os dados em (78) mostram o adjetivo na leitura predicativa (depictiva), nos quais a sequência [o carro] se move como um único constituinte, excluindo o adjetivo, que não forma uma unidade com ela:

No caso do PB, pode-se dizer que muito da ambiguidade verificada em (76) decorre da circunstância de a posição pós-nominal do adjetivo na ordem linear ser compatível com as duas estruturas indicadas. No inglês, contudo, as duas interpretações sempre correspondem a sequências com ordens lineares distintas, visto que é (76) João comprou o carro quebrado.

(Foltran, 1999: 27)

(77) a. O carro quebrado foi comprado por João b. O carro quebrado, o João comprou-o. c. Foi o carro quebrado que o João comprou.

(78) a. O carro foi comprado quebrado por João. b. O carro, o João comprou-o quebrado. c. Foi o carro que o João comprou quebrado.

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72 característico do inglês que o adjetivo modificador atributivo preceda o nome dentro do sintagma nominal. Por essa razão, a diferença entre os dois tipos de interpretação fica mais clara quando comparamos dados ambíguos do português a sentenças do inglês. Isso pode ser verificado com as sentenças em (79):

Os dados em (79) também ilustram a diferença de constituência observada entre essas construções, devido à representação de colchetes conferida por Schultze-Berndt & Himmelmann (2004: 60). A esse respeito, os autores observam que modificadores atributivos fazem parte do NP, por especificarem a referência da expressão nominal, enquanto os depictivos seriam geralmente analisados como integrantes do VP, por estarem ligados ao tempo expresso pelo predicado principal (cf. Capítulo 2, para a discussão sobre a representação sintática dos depictivos). Desse modo, os autores afirmam que modificadores atributivos e depictivos, embora se assemelhem pelo fato de expressarem uma propriedade de um participante da oração principal nesses casos, são diferentes quanto à questão da dependência temporal: o depictivo denota um estado do participante com relação ao tempo indicado pelo verbo principal, mas o atributivo não teria essa ligação temporal com o verbo matriz, segundo Schultze-Berndt & Himmelmann (2004: 60).

Relações de acarretamento são úteis para diferenciar essas duas possibilidades do adjetivo dentro desse entendimento, como aponta Rothstein (2004b: 63). Nesse sentido, a autora apresenta os dados em (80), do inglês, mostrando que a sentença em (80a), com um modificador atributivo, não é contraditória, enquanto a sentença em (80b), com um depictivo, é semanticamente incoerente. Com relação a esse contraste, Rothstein afirma, à semelhança do que dizem Schultze-Berndt & Himmelmann (2004: 60), que a propriedade denotada por um adjetivo atributivo não está ancorada no tempo expresso pelo verbo matriz, diferentemente do que ocorre com o predicado secundário (79) a. Carol drinks [black coffee]NP.

‘Carol toma café preto’. (leitura atributiva)

b. Carol [drinks [her coffee]NP black]VP.

‘Carol toma seu café preto’. (leitura predicativa)

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73 depictivo, que atribui uma propriedade que perdura durante o tempo indicado no predicado principal (Rothstein, 2004b: 63).

Adicionando mais uma evidência que contribui para a compreensão da diferença de interpretação a que nos referimos, Carreira (2008: 12) trata da possibilidade de pronominalização, o que é interessante pelo fato de um pronome sempre substituir um sintagma nominal como um todo. O autor apresenta o dado em (81a) do português, que também é ambíguo entre uma leitura depictiva, equivalente a algo como “Pedro encontrou a mulher quando ela estava grávida” (ou em “estado de gravidez”, nas palavras do autor), e uma leitura atributiva, equivalente a uma interpretação restritiva (i.e., “dentre um grupo determinado de mulheres, o Pedro contratou a grávida”) (cf. Carreira, 2008: 12). Na interpretação depictiva, o autor mostra que apenas o sintagma [a mulher] é substituído pelo pronome (vide (81b)), o que revela que o adjetivo não faz parte do sintagma nominal quando é um predicado depictivo. Na segunda interpretação, todavia, todo o sintagma [a mulher grávida] seria substituído pelo pronome, o que se vê com o dado em (81c), que apresentamos aqui por uma questão de completude:

Essas são, assim, algumas maneiras de distinguir depictivos de modificadores atributivos que já foram identificadas na literatura. Diante do que foi exposto, pode-se concluir que predicados depictivos são semântica e sintaticamente distintos de modificadores atributivos. A respeito disso, o mais importante a ser salientado é que o depictivo não forma um constituinte nominal com a expressão a que se refere, o que não é o caso para modificadores atributivos.

(80) a. I met the drunk man again, but this time he was sober.

‘Eu encontrei [o homem bêbado] de novo, mas dessa vez ele estava sóbrio’.

b. #I met the man drunk again, but this time he was sober.

‘Eu encontrei [o homem] [bêbado] de novo, mas dessa vez ele estava sóbrio’.

(Rothstein, 2004b: 63)

(81) a. O Pedro contratou a mulher grávida. b. O Pedro contratou ela grávida c. O Pedro contratou ela.

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