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caracterização do fenômeno e delimitação dos dados

3. Distinções entre predicações depictivas e outras construções

3.4 Outras distinções relevantes

Nas subseções anteriores, apresentamos a diferença entre construções depictivas e estruturas semelhantes que estão fora do nosso recorte, conferindo atenção especial ao caso dos resultativos, dos advérbios e dos modificadores atributivos. Apenas por uma questão de rigor, pontuamos brevemente a seguir outras três estruturas que diferem das construções que são o foco de nossa pesquisa.

A primeira dessas estruturas é a chamada construção de alçamento com o verbo “parecer” (“seem”). Schultze-Berndt & Himmelmann (2004: 65) mencionam o comportamento de predicados que aparecem nessas construções, identificando o adjetivo que aí ocorre como um tipo de subject complement (‘complemento de sujeito’). Com os dados em (82), os autores observam que o adjetivo que ocorre nessas construções não pode ser excluído da sentença, à semelhança dos predicados em small

clauses complemento (cf. seção 2.2):

Os autores consideram o adjetivo em (82) como um elemento que integra a grade argumental do predicado primário, o que explicaria sua obrigatoriedade e sua análise como complemento. Essas construções, portanto, diferem dos predicados depictivos, que são opcionais e adjuntos, conforme explicam os autores. Concordando com esse entendimento e excluindo tais construções de nosso estudo, acrescentamos também que, por hipótese, o verbo de alçamento não atribui papel temático ao sujeito da oração, o que revelaria mais uma diferença entre essas construções e as estruturas em que o depicitvo aparece, nas quais um NP é duplamente theta-marcado. Admitir uma distinção entre essas duas estruturas nos leva a discordar do posicionamento de autores como Irimia (2012), que considera haver um predicado secundário em sentenças como (82a).

Outro caso distinto das estruturas com predicados depictivos é o das construções de small clauses livres, estudadas em detalhes por Sibaldo (2009a, 2009b) (cf. também (82) a. Louise seemed tired.

‘Louise parecia cansada’.

b. *Louise seemed. LIT.: ‘Louise parecia’.

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75 Kato, 2007). O autor, interessado em discutir mais aprofundadamente os dados do português brasileiro, define as small clauses livres como construções em que ocorre justaposição de um predicado e seu sujeito, sem morfologia verbal ou de tempo expressa, como exemplifica (83a) (Sibaldo, 2009b: 125). Pode-se dizer que esse segundo aspecto, i.e., o ambiente não finito, aproxima as small clauses livres de construções depictivas. Contudo, algumas propriedades das SC livres apresentadas por Sibaldo (2009b: 126, 127) diferem essas estruturas das predicações depictivas, tais como: ordem fixa “predicado + sujeito”, o que explica a agramaticalidade de (83b); sujeito altamente específico e referencial, razão pela qual (83c) seria agramatical; predicados graduáveis e que expressem uma propriedade individual level, de onde se obtém a agramaticalidade de (83d) e (83e). Construções depictivas não apresentam essas restrições, divergindo, assim, das SCs livres, que estão fora de nosso estudo.65

Por fim, mencionamos a diferença entre o tipo de predicação depictiva que é objeto de nosso trabalho e as construções copulares complexas, estudadas, por exemplo, por Rodrigues & Foltran (2013). São exemplos dessas construções em português as sentenças em (84a) e (85a), apresentadas pelas autoras. Rodrigues & Foltran argumentam que essas duas estruturas têm em comum o fato de possuírem uma cópula “ser” que seleciona uma small clause, mas diferem em alguns aspectos, conforme as autoras: (i) a sentença em (84a) é parafraseada como (84b), indicando que o adjetivo “chato” predica de uma situação denotada pela SC [a Maria bêbada], enquanto a sentença em (85a), excluindo-se a possibilidade de interpretação do adjetivo “bêbada” como modificador atributivo, seria parafraseada como (85b), mostrando que os dois adjetivos em questão predicam do DP “a Maria”; (ii) a sentença (84a) apresenta uma

65 Comparar as referidas propriedades das small clauses livres com as seguintes características das

construções depictivas: possibilidade de inversão da ordem sintática entre sujeito e predicado (cf. Pedro comeu [a carne]i cruai vs. Pedro comeu cruai [a carne]i); possibilidade de um sujeito não específico (cf.

Pedro comeu [uma carne qualquer]i cruai); predicado que denota propriedade stage level, e não

individual level (cf. Pedro comeu [a carne]i cruai vs. *Pedro comeu [a carne]i bovinai, agramatical na

leitura depictiva).

(83) a. Muito bonita a sua roupa! b. *A sua roupa muito bonita!

c. *Muito bonita uma roupa qualquer! d. *Grávida essa mulher!

e. *Disponíveis os bombeiros!

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76 concordância neutra default do adjetivo “chato”, o que as autoras relacionam à análise do sujeito como uma mini-oração, enquanto (85a) apresenta concordância marcada do adjetivo “chata” com relação ao DP “a Maria”; (iii) o adjetivo “bêbada” em (85a) estaria funcionando como predicado secundário do DP “a Maria”, sujeito da small clause [a Maria chata], fenômeno que não ocorreria em (84a):

Concordando, a princípio, com a descrição e a análise das autoras, excluímos o tipo de construção ilustrada em (84a) do nosso recorte, porque ela não representa uma instância de predicação secundária. Estruturas como (85a) também estão fora de nosso estudo; contudo, como elas contêm um predicado secundário, segundo a análise de Rodrigues & Foltran, é necessário tecer algumas observações adicionais sobre elas. O tipo de predicado secundário que figura em construções como (85a) é analisado pelas autoras como um predicado secundário circunstancial. Tal classificação se baseia nas considerações presentes em Himmelmann & Schultze-Berndt (2005), que dividem os predicados depictivos em depictivos propriamente ditos (ou “depictivos em sentido estrito” ou “típicos”, na tradução de Rodrigues & Foltran) e circunstanciais.

Os depictivos propriamente ditos são aqueles que vimos e descrevemos ao longo deste trabalho. Os circunstanciais, que ainda não havíamos mencionado, estão exemplificados nas sentenças em (86). Himmelmann & Schultze-Berndt (2005: 15–17) isolam esses dados como exemplos de circunstanciais a partir dos estudos de Halliday (1967) (que trata de condicionais, em sua abordagem), Nichols (1978) e Simpson (2005). Com relação às sentenças em (86a) e (86b), os autores notam que os predicados circunstanciais em questão expressam um significado condicional. Isso também é observado nas sentenças correspondentes em português, presentes na glosa (cf. Eu não

consigo trabalhar se eu estiver faminto; Você não pode comê-los se estiverem crus):

(84) a. A Maria bêbada é chato. b. A Maria estar bêbada é chato.

(85) a. A Maria bêbada é chata

b. A Maria é chata quando está bêbada.

(Exemplos de Rodrigues & Foltran, 2013: 497, 498)

(86) a. I can’t work hungry.

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77 Assim, do ponto de vista semântico, Himmelmann & Schultze-Berndt (2005: 17) afirmam que tanto os depictivos típicos quanto os circunstanciais estão em uma relação de sobreposição temporal (temporal overlap) com o predicado principal, mas os circunstanciais se diferenciam porque expressam, adicionalmente, outras informações semânticas sobre o evento denotado pelo predicado primário, como condição, concessão e tempo. Além disso, Himmelmann & Schultze-Berndt (2005: 17) mostram que há também aspectos formais que distinguem essas duas construções, tal como o comportamento desses predicados diante da negação. Segundo os autores, os circunstanciais não estão no escopo da negação sentencial, i.e., em (87a), seria possível negar o predicado primário sem negar o circunstancial “cold”; os depictivos, diferentemente, estão sempre no escopo da negação, i.e., em (87b), não seria possível negar apenas o predicado primário e não negar o depictivo “outraged”:

Entendendo que os circunstanciais parecem apresentar um comportamento distinto dos depictivos, nós os excluímos dos propósitos desta pesquisa, deixando para trabalhos futuros um estudo mais aprofundado sobre esse tipo especial de predicado depictivo. Também deixamos para pesquisas posteriores uma investigação mais detalhada acerca de small clauses complexas como (85a), que supostamente contam com um predicado circunstancial, na análise de Rodrigues & Foltran (2013) (cf. a esse respeito, cf. também Carreira, 2015). Assim, com essa exposição, finalizamos a lista de estruturas que gostaríamos de comparar às sentenças com predicados depictivos (típicos), embora cientes de que não cessa aqui o inventário de construções que poderíamos descrever e sistematizar em um trabalho que tratasse mais amplamente do tópico da predicação (a esse respeito, cf. Rothstein, 2004a; Irimia, 2005; entre outros).

b. You can’t eat them raw.

‘Você não pode comê-los crus’.

(Himmelmann & Schultze-Berndt, 2005: 16)

(87) a. This food is not supposed to be nice cold. ‘Essa comida não deve ser boa fria’.

b. They didn’t leave outraged (they left happy). ‘Eles não saíram ultrajados (eles saíram felizes)’.

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