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Expressão anafórica “uns os outros”: evidência a partir de Legendre (1997)

Representação sintática de construções depictivas no PB

2. A sintaxe dos depictivos no português brasileiro

2.1 Evidências de uma mini-oração depictiva [ec AP]

2.1.2 Estrutura interna das construções depictivas: constituência de [ec AP]

2.1.2.4 Expressão anafórica “uns os outros”: evidência a partir de Legendre (1997)

Outra evidência utilizada por Legendre (1997: 54–56) para argumentar a favor da representação das construções depictivas por meio de uma small clause [PRO AP] diz respeito ao comportamento da expressão anafórica les uns... les autres (‘uns... os outros’) em construções de predicação secundária no francês. A esse respeito, a autora afirma que esse sintagma anafórico concorda com o seu binder em gênero e número, revelando morfologicamente se os princípios da Teoria de Ligação estão sendo violados ou não (Legendre, 1997: 54). Os dados em (45) a seguir foram elaborados pela autora para mostrar o comportamento dessa expressão em contexto de sentenças encaixadas:

44 Novamente, destacamos que o argumento só é válido se a coindexação da ec com o DP relevante for

derivada independentemente ou estipulada. Agradeço ao professor Jairo Nunes por ser incisivo quanto a essa observação.

45 Diante de um conceito mais flexível de “domínio”, outra possibilidade de análise que poderia ser

investigada, caso não se adotasse a proposta de SC adjungida, é a de tomar o VP ou vP como domínios de alguma forma. As consequências desse tipo de análise, no entanto, não foram exploradas por nós.

46 Essa observação foi feita pelo professor Jairo Nunes, a quem agradeço por comentar atenciosamente

essas questões. Seguindo uma sugestão do professor, poderíamos postular uma categoria vazia nessas construções como consequência da visão do depictivo como uma função fregeana.

(45) a. Les garçons voudraient que les filles soient assises les unes derrière les autres. ‘Os garotos gostariam que as garotas se sentassem / estivessem sentadas umas atrás das outras’.

a. *Les garçons voudraient que les filles soient assises les uns derrière les autres. ‘*Os garotos gostariam que as garotas se sentassem / estivessem sentadas uns atrás dos outros’.

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

113 Sobre o dado em (45a), a autora observa que sua gramaticalidade decorre do fato de o anafórico concordar em gênero com o seu binder dentro do domínio (a oração encaixada), ao contrário do que ocorreria em (45b), em que haveria violação do Princípio A pelo fato de o binder (masculino) dessa expressão anafórica estar fora do domínio (Legendre, 1997: 55).47 Partindo dessas considerações a respeito do comportamento da

expressão anafórica em questão, a autora verifica sua distribuição em contexto de predicações secundárias. Os dados em (46) são instâncias de construções depictivas orientadas para objeto, enquanto os dados em (47) ilustram depictivos orientados para sujeito.48

A conclusão de Legendre (1997: 55) a respeito dos dados em (46) e (47) é que o anafórico concorda em gênero e número com o predicado secundário e com o DP a que se refere esse predicado. Observamos que a tradução em português abaixo dos dados é equivalente, em termos de gênero e número, ao que se observa no francês: a expressão masculina e plural les légumes em (46) deve concordar com o predicado secundário (o adjetivo masculino e plural crus) o com anafórico (que só pode ser les uns...les autres, masculino e plural, e não o feminino les unes...les autres); em (47), a expressão feminina

47 Como a expressão les autres inserida dentro do depictivo pode ser traduzida para o masculino ou para o

feminino no PB, estamos traduzindo esse termo nas glosas para o masculino quando ele ocorre com les uns (masc.), e para o feminino quando ocorre com les unes (fem.). Contudo, supomos que a melhor saída seria encontrar uma expressão equivalente neutra, como o inglês the other(s), para evitar possíveis problemas de interpretação dos dados do francês. Lembramos que todo o anafórico les uns / les unes...les autres deve ser lido como referente ao predicado secundário.

48 A respeito dos dados discutidos nessa subseção, ressaltamos que a expressão anafórica supostamente se

refere ao DP relevante e também ao predicado secundário voltado a esse DP, o que tem relação com a agramaticalidade de (46b), (47b), por exemplo.

(46) a. Les filles mangeront les légumes crus les uns après les autres. ‘As garotas comerão os legumes crus uns após os outros’.

b. * Les filles mangeront les légumes crus les unes après les autres. ‘*As garotas comerão os legumes crus umas após as outras’.

(47) a. Les filles mangeront les légumes assises les unes derrière les autres. ‘As garotas comerão os legumes sentadas umas atrás das outras’.

b. *Les filles mangeront les légumes assises les uns derrière les autres. ‘*As garotas comerão os legumes sentadas uns atrás dos outros’.

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

114 e plural les filles também deve concordar com o predicado secundário (o particípio

assises) e com o anafórico (que só pode ser les unes...les autres, e não les uns...les autres).

A respeito dos dados com predicados secundários, Legendre (1997: 56) argumenta que não há razão para a agramaticalidade de (46b) e (47b) se considerarmos que o DP e o predicado secundário são ambos gerados sob o VP, dentro do mesmo domínio (IP). Trata-se de uma crítica às propostas de Roberts (1988) e Rizzi (1990) apresentadas anteriormente: se os binders (os NPs les légumes e les filles) estão no mesmo domínio (IP) que os anafóricos (les uns / les unes), não deveria haver problemas de ligação. A autora afirma que a sua proposta não apresenta esse impasse, pois prevê corretamente os fatos observados: as estruturas em (48) e (49) forneceriam um domínio de ligação diferente do IP, que é a small clause como um todo. Nessa análise, (48a) e (49a) seriam gramaticais porque o binder do anafórico (PRO) está contido no domínio, enquanto (48b) e (49b) seriam agramaticais porque o binder do anafórico (les filles e les légumes, respectivamente) está fora do domínio (cf. Legendre, 1997: 56).

Novamente, podemos verificar que o português brasileiro se comporta da mesma forma que o francês com relação a essa evidência (como revelado pela própria glosa dos exemplos anteriores) e que é possível estender a análise de Legendre (1997) aos dados do PB. As sentenças em (50) e (51) a seguir são similares às apresentadas pela autora. Os dados em (50) exibem predicados secundários orientados para objeto e os dados em (51) contêm depictivos orientados para sujeito: em ambos os casos, verifica-se o mesmo

(48) a. Les fillesj mangeront les légumesi [SC PROi crusi les unsi après les autres]

‘As garotas comerão os legumes crus uns após os outros’.

b. * Les fillesj mangeront les légumesi [SC PROi crusi les unesj après les autres]

‘*As garotas comerão os legumes crus umas após as outras’.

(49) a. Les fillesj mangeront les légumesi [SC PROj assisesj les unesj derrière les

autres]

‘As garotas comerão os legumes sentadas umas atrás das outras’.

b. *Les fillesj mangeront les légumesi [SC PROj assisesj les unsi derrière les

autres]

‘*As garotas comerão os legumes sentadas uns atrás dos outros’.

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

115 comportamento notado por Legendre quanto à distribuição dos anafóricos inseridos em predicados secundários. Aqui, as expressões anafóricas equivalentes a les uns après les

autres e les unes après les autres seriam “uns após os outros” (masculino e plural) e

“umas após as outras” (feminino e plural), respectivamente, enquanto os equivalentes a

les uns derrière les autres e les unes derrière les autres seriam “uns atrás dos outros”

(masculino e plural) e “umas atrás das outras” (feminino e plural), respectivamente.49

Assim como no francês, verifica-se que o anafórico “uns... os outros” no PB deve concordar em gênero e número com o predicado secundário e com o NP ao qual esse depictivo está orientado. Nesse ponto, assumimos, com Legendre (1997), que essa diferença pode ser explicada em termos da Teoria de Ligação e que as estruturas propostas por Roberts (1988) e Rizzi (1990) não explicam a agramaticalidade de (50b) e (51b). Seguindo o raciocínio da autora, se o IP for o único domínio compreendendo os NPs

binders “as meninas” e “os feijões” e os anafóricos em questão, não haveria razão para a

agramaticalidade que se verifica nessas sentenças. A proposta de uma SC como domínio para os anafóricos, diferentemente, explica os dados em questão. Isso está ilustrado em (52) e (53), que são essencialmente as estruturas apresentadas por Legendre (1997: 56), com a substituição de PRO por ec.50

49 O professor Jairo Nunes observa que a sentença (50b) é gramatical em sua avaliação. A esse respeito,

gostaríamos de ressaltar que a expressão anafórica nessa sentença supostamente deve se referir ao depictivo e ao DP do qual esse depictivo predica, de onde resulta a agramaticalidade observada. Assim, não estamos nos referindo a uma leitura em que a expressão anafórica não se refira ao predicado secundário.

50 Seguindo Legendre (1997), utilizo os índices i e j nesses exemplos para representar concordância de

masculino e de feminino, respectivamente.

(50) a. As meninas vão comer os feijões crus uns após os outros.

b. *As meninas vão comer os feijõescrusumas após as outras.

(51) a. As meninas vão comer os feijões sentadas umas atrás das outras. b. *As meninas vão comer os feijões sentadasuns atrás dos outros.

(52) a. As meninas vão comer [os feijões]i [SC eci crusi [uns após os outros]i ]

b. *[As meninas]j vão comer [os feijões]i [SC eci crusi [umas após as outras]j ]

(53) a. [As meninas]j vão comer [os feijões]i [SC ecj sentadasj [umas atrás das outras]j]

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

116 A análise da SC como um domínio de ligação para o anafórico segue a definição de “domínio” proposta por Chomsky & Lasnik (1995), conforme explicado na subseção anterior. Nessa linha de raciocínio, as sentenças em (52b) e (53b) seriam agramaticais porque a small clause em questão é um domínio, i.e., um CFC que poderia satisfazer, em princípio, as condições de ligação do anafórico e que contém um binder potencial (a ec) para esse anafórico. Como os binders dos anafóricos nessas sentenças estão fora do domínio, ou seja, fora da SC, as sentenças violam o Princípio A da Teoria de Ligação, o que explica sua agramaticalidade.51

Nesta subseção, vimos o argumento de Legendre (1997) a favor de uma small

clause [PRO depictivo] que utiliza evidências da expressão anafórica em francês les uns...les autres, que concorda com o predicado secundário e com o NP relevante em

contexto de construções depictivas. Vimos que a proposta da autora, aliada a pressupostos da Teoria de Ligação, é capaz de explicar estruturas depictivas do francês que contêm essa expressão anafórica, ao contrário de outras análises para predicados secundários depictivos. A partir da argumentação da autora, observamos que o português brasileiro se comporta da mesma maneira que o francês e que a análise dessas estruturas por meio de uma small clause do tipo [ec AP] explica corretamente os dados apresentados. Para tanto, assumimos que a SC é um domínio para o anafórico que ocorre nessas expressões, seguindo essencialmente o raciocínio de Chomsky & Lasnik (1995).