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Representação sintática de construções depictivas no PB

2. A sintaxe dos depictivos no português brasileiro

2.1 Evidências de uma mini-oração depictiva [ec AP]

2.1.2 Estrutura interna das construções depictivas: constituência de [ec AP]

2.1.2.2 Observações preliminares ( II ): Teoria de Ligação

Nesta subseção e nas próximas, vamos nos valer de fatos relativos à Teoria de Ligação para argumentar a favor da hipótese de que as construções depictivas envolvem a

23 Estamos nos referindo à semelhança quanto ao aspecto do controle, e não às configurações sintáticas

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

101 formação de um constituinte que compreende o depictivo AP e o seu sujeito, uma categoria vazia. Lembramos que já concluímos anteriormente que o DP (manifesto) e o AP não formam um constituinte (cf. subseção 2.1.1 deste capítulo). Também mencionamos que a categoria vazia que é sujeito estrutural do depictivo pode ser analisada, em princípio, como um PRO, como uma cópia ou como um vestígio do DP a que se refere o depictivo. Como não é relevante discutir a fundo essas possibilidades de análise neste momento, vamos nos referir a essa categoria como ec, de forma neutra. De maneira simplificada, queremos argumentar a favor de uma estrutura como “[a carne]i

[eci cruai]”, como dito anteriormente.

Se vamos utilizar os princípios da Teoria de Ligação (cf. Chomsky, 1981, entre outros) em nossos testes, julgamos pertinente introduzir as noções teóricas que estamos pressupondo antes de adentrarmos nas evidências propriamente ditas. No modelo de Regência e Ligação, a Teoria de Ligação, associada ao estudo do comportamento de anafóricos, pronomes e expressões referenciais (ou expressões-R) nas sentenças de uma língua, contava com alguns princípios e definições, resumidos por Hornstein, Nunes & Grohmann (2005: 248) da seguinte maneira:24

24 Quanto a (27), “c-comando”, pode ser definido dessa forma: “α c-comanda β se, e somente se: (i) α é

irmã de β; ou (ii) α é irmã de γ e γ domina β” (tradução nossa de “αc-commands β iff (i) α is a sister of β; or (ii) α is a sister of γ and γ dominates β” (Hornstein, Nunes & Grohmann, 2005: 224)).

25 Tradução nossa, com algumas adaptações. No original: “Binding Theory / (i) Principle A: An anaphor

(e.g. a reflexive or reciprocal) must be bound in its domain. / (ii) Principle B: A pronoun must be free (not bound) in its domain. (iii) Principle C: An R-expression (e.g. a name, a variable) must be free (everywhere).

(25) PRINCÍPIOS DA TEORIA DE LIGAÇÃO (GB)

(i) Princípio A: Um anafórico (e.g., um reflexivo) deve estar ligado em seu domínio.

(ii) Princípio B: Um pronome deve estar livre (não ligado) em seu domínio. (iii) Princípio C: Uma expressão referencial (e.g., um nome, uma variável) deve estar livre.

(26) DOMÍNIO

α é o domínio de β se, e somente se, α é o menor IP (TP) contendo β e o regente de β.

(27) LIGAÇÃO

α liga β se, e somente se, α c-comanda β e porta o mesmo índice de coindexação que β.

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102 Para revisar o funcionamento geral da Teoria de Ligação, Hornstein, Nunes & Grohmann (2005: 248) apresentam os seguintes dados do inglês, em (28). A glosa com a tradução abaixo dos exemplos revela que o PB se comporta da mesma forma que o inglês.

Com base nos princípios e definições apresentados, Hornstein, Nunes & Grohmann (2005: 249) explicam que a sentença (28a) é agramatical porque o anafórico

herself não está ligado em seu domínio. Conforme explicam os autores, o domínio desse

anafórico seria o TP encaixado, que é o menor TP contendo herself e seu regente (que pode ser a preposição of ou pictures, a depender da análise). Dessa forma, o antecedente do anafórico, Mary, não está contido em seu domínio, o TP. Trata-se, portanto, de uma violação do Princípio A. Com relação à sentença em (28b), os autores explicam que ela é gramatical porque respeita o Princípio B: o pronome her está livre em seu domínio, visto que seu antecedente, Mary, está fora do TP encaixado. Por fim, a sentença (28c) seria agramatical, conforme os autores, porque a expressão referencial Joe está ligada a um pronome, o que viola o Princípio C.

É pertinente observar que Hornstein, Nunes & Grohmann (2005) estudam o fenômeno da ligação sob a ótica minimalista, de modo que seu livro possui a intenção de revisar muito do aparato da GB diante de considerações desse novo viés teórico (cf. Chomsky, 1995, 2000, 2001, entre outros), livrando-se de estipulações desnecessárias ou desmotivadas, por exemplo. Diante desse fato e de outros argumentos, os autores apresentam uma versão modificada dos princípios da Teoria de Ligação, a partir de Chomsky & Lasnik (1995), que dispensa, por exemplo, a noção de índice (Hornstein, Nunes & Grohmann, 2005: 272). Essa versão reformulada está apresentada em (29), que

/ Domain / α is the domain for β iff α is the smallest IP (TP) containing β and the governor of β. / Binding / α binds β iff α c-commands and is coindexed with β” (Hornstein, Nunes & Grohmann, 2005: 248).

(28) a. *[ Maryi said that [TP Joe liked these pictures of herselfi ] ]

‘*Maryi disse que Joe gostou dessas fotos dela mesmai / de si mesmai’.

b. [ Maryi said that [TP Joe liked these pictures of heri ] ]

‘Maryi disse que Joe gostou dessas fotos delai’.

c. *[ Hei said that Mary likes these pictures of Joei ]

‘*Elei disse que Mary gosta dessas fotos de Joei’.

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103 mencionamos apenas a caráter informativo. Para os nossos propósitos, tanto os princípios e definições enunciados anteriormente quanto estes, formulados em (29), vão convir.26

Estamos agora em condições de analisar construções depictivas à luz da Teoria de Ligação. Com relação ao português brasileiro, especificamente, o trabalho de Carreira (2008) já se propôs a analisar esse tipo de construção e a verificar as relações de c- comando que se estabelecem nessas estruturas. Convém, portanto, comentarmos esse trabalho brevemente antes de passarmos às evidências discutidas por Legendre (1997) com relação ao francês e antes de tecermos nossas conclusões a respeito do português brasileiro. Sobre esse tópico, Carreira (2008: 61) constrói o seguinte dado em (30) para verificar como uma sentença com predicado secundário no PB se comporta diante do Princípio C da Teoria de Ligação.

Nessa sentença, a expressão-R é “a Fernanda”, que está teoricamente contida no predicado secundário, e o pronome “ela” está coindexado com essa expressão-R. Como a sentença em questão é agramatical, Carreira (2008: 62) conclui que o DP objeto do predicado matriz c-comanda os elementos dentro do AP predicativo. Isso supostamente decorreria do Princípio C, que enuncia que uma expressão-R deve estar livre. Portanto,

26 Observamos que a apresentação da Teoria de Ligação nesta subseção foi bastante resumida. De fato, o

assunto é complexo e percorreu uma gama de reformulações e considerações ao longo de anos de pesquisa na teoria gerativa. Para mais detalhes e discussão, remetemos o leitor a Chomsky (1981, 1986), a Roberts (1997), a Hornstein, Nunes & Grohmann (2005), dentre outros.

27 Tradução nossa, adaptada. No original: “Binding Theory / (i) Principle A: If α is an anaphor, interpret it

as coreferential with a c-commanding phrase in its domain. / (ii) Principle B: If α is a pronoun, interpret it as disjoint from every c-commanding phrase in its domain. / (iii) Principle C: If α is an R-expression, interpret it as disjoint from every c-commanding phrase.” (Hornstein, Nunes & Grohmann, 2005: 271).

(29) PRINCÍPIOS DA TEORIA DE LIGAÇÃO (REFORMULADOS)

(i) Princípio A: Se α é um anafórico, interprete-o como correferencial a um sintagma que o c-comanda em seu domínio.

(ii) Princípio B: Se α é um pronome, interprete-o como disjunto de cada sintagma que o c-comanda em seu domínio (i.e., como não correferencial). (iii) Princípio C: Se α é uma expressão referencial, interprete-a como disjunta de cada sintagma que a c-comanda.

(Hornstein, Nunes & Grohmann, 2005: 271; adaptado)27

(30) *O Pedro contratou [ela]i [AP feliz pelo nascimento do filho d[a Fernanda]i].

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104 para o autor, se a sentença é agramatical, é porque haveria c-comando entre o elemento na posição de objeto do predicado primário e o predicado secundário (e tudo que há dentro dele) (Carreira, 2008: 62).

Nesse ponto, é necessário fazer uma pequena observação a respeito dessa conclusão: a agramaticalidade de (30) não necessariamente indica que o DP manifesto c- comanda o depictivo. Na realidade, julgamos que esse tipo de resultado é inconclusivo, pois ele não nos garante que o DP manifesto esteja, de fato, c-comandando o predicado secundário.28 No entanto, gostaríamos de, mesmo assim, propor uma representação que seja compatível com a agramaticalidade de (30), verificada por Carreira (2008). Para nós, que estamos supondo haver a formação de um constituinte small clause [ec AP], ocorreria uma relação de c-comando entre o sujeito da SC e o predicado secundário. Isso vale para os depictivos de sujeito e de objeto, como se vê em (31). Assim, os dados agramaticais em (31) são compatíveis com duas conclusões: (i) o sujeito (ec) do depictivo orientado para sujeito o c-comanda (vide (31a)); (ii) o sujeito (ec) do depictivo orientado para o objeto direto também c-comanda esse predicado secundário (vide (31b)):29

As estruturas em (32) e (33) a seguir foram repetidas para facilitar a visualização do que estamos argumentando. Nessa proposta, o sujeito do depictivo (ec) porta o mesmo índice que o DP manifesto, e o depictivo está sendo c-comandado por essa categoria ec.

28 Agradeço ao prof. Júlio Barbosa e ao prof. Jairo Nunes por me apontarem esse fato. Os professores

observaram que o teste em questão se mostra inconclusivo quanto à questão do c-comando diante de sentenças agramaticais em que o DP relevante está encaixado em um PP (e não c-comanda a expressão-R contida fora do PP), como *A mãe delei ama o Joãoi ou *A mãe delai ficou feliz pelo nascimento do filho

da Fernandai. Vê-se, com isso, que a agramaticalidade de (30) não nos permitiria concluir que o DP

manifesto c-comanda o predicado secundário, nem nos permitiria concluir que o DP não o c-comanda.

29 No entanto, essa proposta sofre do fato de que a coindexação do DP com a ec teria de ser estipulada,

especialmente no caso das construções depictivas de objeto (ver também o Capítulo 3).

(31) a. *Elei contratou a Maria [SC eci felizi pelo nascimento da filha d[o Pedro]i].

b. *O João contratou elai [SC eci felizi pelo nascimento da filha d[a Maria]i].

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

105 Nesta subseção, introduzimos alguns conceitos e princípios relativos à Teoria de Ligação, que servirão de base para o raciocínio desenvolvido na próxima subseção. Vimos também que a proposta de small clause que estamos defendendo, na qual o DP manifesto está coindexado (por estipulação) com a categoria ec, que c-comanda o predicado secundário no âmbito da mini-oração, é compatível com um dado agramatical retirado de Carreira (2008).