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Observações preliminares ( I ): estruturas de controle e fatos de concordância

Representação sintática de construções depictivas no PB

2. A sintaxe dos depictivos no português brasileiro

2.1 Evidências de uma mini-oração depictiva [ec AP]

2.1.2 Estrutura interna das construções depictivas: constituência de [ec AP]

2.1.2.1 Observações preliminares ( I ): estruturas de controle e fatos de concordância

Antes de iniciarmos nossa exposição, que se apoia no raciocínio elaborado por Legendre (1997), é necessário ter em mente que a argumentação da autora tem o objetivo de defender as seguintes representações em (18) para as construções depictivas orientadas para sujeito e para objeto, respectivamente, sendo o sujeito da predicação depictiva identificado como PRO (e a projeção da mini-oração, GenP):

Desse modo, ao tratar da estrutura interna da predicação secundária, Legendre (1997) argumenta a favor da presença da categoria PRO como sujeito do predicado depictivo. Nós não estamos nos comprometendo com essa análise da autora nesse

(18) a. b.

Capítulo 2 — Representação sintática de construções depictivas no PB

95 momento; por esse motivo, estamos utilizando o rótulo genérico ec para nos referir ao sujeito do depictivo no interior da predicação secundária. Contudo, vamos apresentar os argumentos da autora e continuar citando a análise dela com PRO, por considerarmos que suas intuições podem ser levadas em consideração para aquilo que desejamos argumentar aqui — que é o fato de que o depictivo e o seu sujeito estrutural, uma categoria vazia, formam um constituinte mini-oracional.

Podemos, então, retormar o texto da autora. Para motivar a existência de PRO nas construções de predicação secundária, Legendre (1997: 52) aborda o fenômeno da concordância. A esse respeito, a autora afirma que a concordância é tradicionalmente entendida como um fenômeno local; contudo, nota que esse princípio parece ser violado em sentenças como (19), que manifesta, segundo a autora, uma espécie de “concordância a distância” entre o sujeito do verbo de controle (elles) e o particípio passado (assises):

Em (19), verifica-se que o sujeito elles e o particípio assises concordam em gênero e número, estando ambos no feminino e no plural (Legendre, 1997: 52). A autora afirma que (19) constitui um caso de concordância a distância porque considera que o sujeito

elles é gerado em uma oração distinta daquela em que se encontra o particípio (qual seja,

a oração encaixada delimitada em (19)). Conforme a autora, nessa estrutura de controle, PRO estaria desempenhando o papel de transmitir os traços de concordância de seu controlador para o particípio (Legendre, 1997: 52). A autora identifica um comportamento similar a esse tipo de sentença em construções de predicação secundária orientadas para sujeito, como (20): nesses casos, a autora afirma que o predicado depictivo (assise) também está separado do sujeito a que se refere (Marie), visto que pelo menos o predicado da oração principal intervém entre eles, mas ainda assim há concordância de gênero e número entre esses elementos (Legendre, 1997: 52):

(19) Ellesi voulaient [PROi être assisesi].

‘Elas queriam ficar sentadas’.

(Legendre, 1997: 52)

(20) Marie donne ses conférences assise. ‘Marie dá suas palestras sentada’.

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96 Diante dessa similaridade, a autora conclui que estender a análise de controle com PRO às construções de predicação secundária explicaria de maneira direta os fatos de concordância observados (Legendre, 1997: 52).17 A concordância, portanto, seria a

primeira motivação da autora para adotar a proposta com PRO em seu trabalho. Deixando um pouco à parte as especificidades da proposta de Legendre (1997), ou seja, a análise em termos de PRO e da categoria de gênero (Gen), atentamos para o fato de que o português brasileiro é uma língua similar ao francês, na medida em que o depictivo nessa língua também expressa morfologicamente a relação de concordância com o DP a que se refere. Isso já foi comentado por nós anteriormente, mas vamos reprisar essa informação. Em (21), reunimos alguns dados de construções depictivas no PB que ilustram a relação de concordância, isolando abaixo os traços-φ relevantes à discussão, que são partilhados pelo DP e pelo depictivo. Veja-se que ao menos as predicações secundárias orientadas para sujeito no PB manifestam casos de “concordância a distância”, assim como mencionado por Legendre (1997: 52) a respeito de (20):

17 Na ocasião da defesa deste trabalho, o professor Jairo Nunes observou que o argumento da concordância

utilizado por Legendre não é tão forte e não contribui muito para defender sua proposta (pelo menos não de modo óbvio). Dentre outras razões, apontou que o raciocínio não explica em que medida a concordância em (20) ocorre “a distância” e notou que, em (19), é evidente que há duas orações distintas. Em todo caso, optamos por manter as observações de Legendre com relação à concordância e às construções de controle por duas razões: (i) se comprovado que o depictivo é gerado uma mini-oração “à parte” da oração principal que contém o DP manifesto, o argumento da concordância a distância entre esse DP e o depictivo poderia ser analisado nesses termos; (ii) o paralelo entre construções de predicação secundária e estruturas de controle não é novo na literatura (propostas que utilizam PRO nas construções depictivas incluem trabalhos como Stowell (1983), Bowers (2001), Ikawa (1995), entre outros), o que contribui para que as observações de Legendre com relação às construções de controle sejam plausíveis, ao meu ver. No mais, creio que, no pior dos cenários, os argumentos de Legendre sobre concordância e controle podem até não favorecer explicitamente uma análise em termos de uma small clause, mas também não parecem depor contra ela.

(21) a. [A mãe]i trabalhou [irritada]i.

traços-φ:[FEM., SG.]

b. [O garoto]i fez a tarefa [cansado]i.

traços-φ: [MASC., SG.]

c. O rapaz comeu [a carne]i [crua]i.

traços-φ: [FEM., SG.]

d. Maria comeu [os salgadinhos]i [frios]i.

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97 Assim como Legendre (1997), também vamos argumentar que as construções depictivas são formadas por meio da adjunção da predicação secundária à predicação primária. Convém lembrar que a estrutura que estamos propondo provisoriamente é a que está ilustrada em (22). Diante da argumentação de Legendre a respeito do francês e diante dos fatos de concordância que o português apresenta, o que estamos sugerindo é que essa relação de concordância seja estabelecida de alguma maneira no domínio da small clause que contém o depictivo e seu sujeito, a categoria ec. Essa categoria, por sua vez, tem relação com o DP a que se orienta o depictivo, podendo ser analisada, em princípio, como um PRO controlado por esse DP, como um vestígio ou como uma cópia desse DP.

Os detalhes teóricos de nossa proposta não serão explorados neste momento, pois, para os propósitos desta subseção, basta que se tenha em mente que a estrutura em (22) é compatível com a conclusão alcançada (na subseção 2.1.1) de que o DP manifesto e o depictivo pertencem a constituintes distintos e também é compatível com a ideia de que a relação de concordância se estabelece localmente entre o predicado depictivo e o seu sujeito (ec) em uma mini-oração.18

Há, no entanto, como vimos, autores que argumentam contrariamente a uma proposta de mini-oração adjungida em construções depictivas, criticando inclusive a postulação de uma categoria vazia como PRO como sujeito dessa mini-oração. Lobato (2016: 76), por exemplo, defende que a análise dos adjetivos depictivos em termos de uma small clause com PRO seria menos econômica do que sua proposta de simples adjunção do adjetivo, além de ser supostamente redundante, por expressar duplamente a relação de predicação, i.e., por meio do domínio de predicação “PRO-adjetivo” e por

18 No Capítulo 3, vamos nos aprofundar na questão da concordância e tentar sugerir uma proposta de

derivação dessas construções por meio do movimento do DP de dentro da small clause para uma posição argumental no interior na predicação primária. A esse respeito, veremos que a derivação da construção depictiva de objeto vai resultar em alguns problemas e, assim, questionaremos a proposta de adjunção da SC depictiva de objeto ao VP.

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98 meio da adjunção (cf. Lobato, 2016: 75–77). Diante desses e de outros argumentos, a autora propõe as estruturas em (23) (repetição de (5)) para as construções depictivas:

Apesar de compreendermos as considerações da autora, principalmente aquelas a respeito da economia da derivação, sua proposta enfrenta algumas dificuldades, em nosso entendimento. Primeiramente, há a questão que acabamos de ver a respeito da concordância que se manifesta entre o predicado depictivo e seu sujeito (i.e., o fato de que o depictivo concorda com o DP manifesto): como a proposta de simples adjunção do depictivo explicaria esse fenômeno? Essa é uma questão que não é mencionada por Lobato (2016) e que ainda está em aberto para os proponentes de uma estrutura de simples adjunção. De fato, alguns trabalhos que propõem estruturas semelhantes a essas em (23) reportam dificudades em analisar a concordância que se verifica entre o depictivo e o DP ao qual se orienta. Foltran (1999), por exemplo, afirma que suas tentativas de realizar a checagem dos traços-φ (não-interpretáveis) do adjetivo, parte do mecanismo de concordância, foram frustradas (cf. Foltran, 1999: 96–97). Se considerarmos que a relação de concordância envolve localidade, uma relação Spec-núcleo (cf. Mioto & Foltran, 2007: 15) ou uma relação de c-comando entre os termos relevantes, uma estrutura de mini-oração parece ser mais vantajosa, do ponto de vista teórico, para lidar com algum

(23) a. b.

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99 desses pressupostos, pois já estabeleceria uma relação de c-comando entre sujeito e predicado. Por outro lado, veja-se que uma representação como (23a), por exemplo, teria dificuldade nesse aspecto, visto que o sujeito do depictivo nessa estrutura não o c- comanda.19,20

Outra possível dificuldade enfrentada por Lobato (2016) diz respeito à sua alegação de que a proposta de mini-oração com PRO seria redundante e indesejável por expressar a mesma relação de predicação por meio da adjunção e por meio do domínio de “PRO-adjetivo”. Há dois problemas com esse argumento. O primeiro deles reside no fato de que não parece tão óbvio o pressuposto de que a adjunção resulte em predicação, o que requer alguma explicação adicional.21 O segundo problema está no fato de que há, no português, outros exemplos de predicações que são tradicionalmente classificadas como adjuntas e que partilham do mesmo sujeito da oração principal. Os dados em (24) ilustram alguns desses casos, de forma que estão coindexados o predicado da oração adjunta e seu respectivo sujeito. A questão que estamos colocando é a seguinte: se o argumento da redundância basta para descartarmos uma estrutura de mini-oração com uma categoria vazia em construções depictivas, o que diríamos a respeito dos dados em (24), que se comportam basicamente da mesma forma que essas construções com relação a esse aspecto, i.e., também apresentariam predicações adjuntas, cujo predicado é controlado por um sujeito em outra oração?22

19 Nesse momento, estamos pressupondo que o sujeito do depictivo o c-comanda.

20 A esse respeito, gostaria de apresentar aqui uma observação bastante pertinente apontada pelo professor

Jairo Nunes: tanto em (23a) quanto em (23b), o depictivo c-comanda o DP relevante, o que poderia ser interpretado como uma configuração sonda-alvo e, assim, fornecer um caminho para explicar o mecanismo de concordância dentro da análise de Lobato. Concordo que esse é um caminho possível, desde que se assuma que o adjetivo, uma categoria lexical, pode funcionar como uma sonda. Não investiguei as consequências dessa alternativa; em todo caso, gostaria de sinalizar que o esboço de análise de concordância que procuramos desenvolver no Capítulo 3 é interessante pelo fato de estabelecer um paralelo entre a relação de concordância que ocorre na predicação depictiva e a relação de concordância na predicação verbal. Na análise que buscamos desenvolver aqui, para a predicação depictiva, a sonda é o conjunto de traços-φ não-interpretáveis de uma categoria funcional Asp, assim como os traços-φ da categoria funcional T, no âmbito da predicação verbal, funciona como uma sonda para o alvo relevante.

21 Agradeço ao professor Jairo Nunes por apontar esse problema. Sobre esse tópico, gostaria de notar que

Lobato (2016 [1990]) assume que o adjetivo em posição de adjunto atribui um papel temático ao DP relevante, o que pode ter relação com o fato de a autora considerar que a relação de predicação resulta da adjunção. Contudo, essa análise ainda assim enfrenta dificuldades, pois embora se possa dizer que o adjunto participe de uma relação de seleção com algum elemento da oração matriz, normalmente não se assume que essa seleção seja argumental

22 Agradeço ao professor Marcus Lunguinho por apontar esses dados e por discutir comigo essas ideias.

(24) a. [Ao sairi de casa], Joãoi apagou a luz.

b. Pedroi percebeu que havia esquecido algo [quando pensoui em sua mãe].

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100 Em nosso entendimento, portanto, não é ilógico pensar que uma predicação possa ser adjungida, visto que há dados abundantes na língua que atestam essa possibilidade. Qualquer que seja a análise conferida aos dados em (24), pode-se afirmar que as estruturas depictivas receberiam um tratamento semelhante.23 De fato, a presença de PRO em

construções de predicação secundária surge desse raciocínio, como vimos: como as estruturas em (24) podem ser analisadas em termos de controle, com um PRO na posição de sujeito da oração adjungida, é natural estender esse tratamento às construções depictivas, que são similares a elas — como faz Legendre (1997), conforme discutido anteriormente. Uma dificuldade da proposta de Lobato (2016), assim, é que ela não capta essa correlação que parece haver entre construções depictivas e estruturas de controle. É claro que as críticas independentes que se fazem à categoria PRO têm razão de ser; contudo, se se deseja eliminá-la de uma teoria, parece coerente e desejável que as estruturas depictivas sejam reformuladas de forma semelhante ao que se venha propor para as construções de controle (cf. Marušič, Marvin & Žaucer, 2003).

Em resumo, o que vimos nesta subseção é que uma estrutura de small clause adjunta com uma categoria vazia parece possuir a aparente vantagem teórica de explicar mais facilmente os fatos de concordância observados do que uma proposta de simples adjunção do adjetivo, embora ainda não tenhamos nos aprofundado nessa questão da concordância propriamente. Além disso, vimos haver um paralelo entre as ditas estruturas de controle e as construções depictivas que a análise de Lobato (2016) e outras propostas de simples adjunção do depictivo parecem não captar. Uma análise de predicações secundárias em termos de uma mini-oração com uma categoria vazia como sujeito, por outro lado, captaria essa correlação, visto que as estruturas de controle também poderiam ser analisadas em termos do mesmo tipo de categoria. Essas são, contudo, apenas algumas especulações teóricas; nas próximas subseções, vamos apresentar evidências de que as construções depictivas envolvem uma mini-oração com uma categoria vazia na posição de sujeito, i.e., de que há a formação de um constituinte do tipo [ec APdepictivo].