• Nenhum resultado encontrado

Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

2. Proposta de derivação e de valoração de traços-φ nas construções depictivas

2.2 Derivando construções depictivas de sujeito

Consideremos a seguinte sentença transitiva em (27), que contém um predicado secundário depictivo (cansado) orientado para sujeito (O João).

42 Sentenças com um argumento implícito, como Essa música não pode ser cantada bêbado, apresentada

no capítulo anterior, entrariam em outro paradigma (pareando com sentenças com sujeito indefinido, por suposição), que não estamos considerando aqui. Nosso interesse neste capítulo reside apenas nas construções em que a categoriza vazia que é sujeito da small clause possui um referente.

43 As sentenças em (26) foram elaboradas com base nas seguintes construções com gerúndio apresentadas

em Fong (2015: 110, 161) diante de diagnósticos de controle: (i) *Choveu caminhando no parque.

(ii) O João deixou o filho brincando e a filha também. (iii) A Mariai corre ouvindo música e o João também.

(iv) Somente o João corre ouvindo música.

Agradeço ao professor Jairo Nunes por me ajudar com a elaboração do dado em (26a) na ocasião da minha defesa. Gostaria também de observar aqui que teria sido interessante explorar a relação (e as eventuais similaridades) entre a análise que buscamos desenvolver neste trabalho e a proposta de Fong (2015) para as construções com gerúndio, o que não fizemos por uma questão de tempo.

Capítulo 3 — Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

184 (27) O Joãoi leu a carta cansadoi.

Como argumentamos ao longo deste trabalho, a derivação dessa sentença envolve a formação de uma SC na qual são gerados o DP [O João] e seu predicado, o depictivo

cansado. Voltemos nossa atenção para a derivação dessa small clause depictiva

primeiramente. O DP [O João] é retirado da Numeração e faz Merge com o adjetivo depictivo cansado.44 Ao fazer Merge com o adjetivo, o DP recebe um papel temático. Forma-se, assim, a projeção AP.45 Em seguida, um núcleo Asp é retirado da Numeração

e faz Merge com esse AP. O DP entra na derivação com um traço não-interpretável de Caso e com um conjunto de traços-φ interpretáveis (para gênero, número e pessoa). Asp, por sua vez, entra na derivação com um conjunto incompleto de traços-φ e com um traço [EPP]. Quando ocorre Merge de Asp, a derivação atinge o passo exemplificado em (28):

44 Observamos que o adjetivo não entra na derivação com os morfemas de gênero e número, mas vai adquiri-

los no curso da derivação (no movimento a Asp). Portanto, entenda-se que a palavra “cansado” aqui representa apenas a raiz do adjetivo, e não sua forma final flexionada.

45 A rigor, o AP não deveria possuir projeções vácuas (o nível A’), se seguirmos a lógica minimalista. Ao

ser representada da forma indicada, essa estrutura se conforma à small clause clássica de Stowell. Assim, talvez fosse mais adequado representar a projeção AP como [AP [DP O João] cansado] simplesmente.

Contudo, observamos que parece haver evidência empírica de que o sujeito de um predicado depictivo adjetivo se localiza na posição de especificador do predicado, e não como seu complemento, uma vez que os complementos de adjetivos no português são introduzidos por preposição, como mostram os seguintes exemplos: Chateado com ele. / Cansado de sofrer. / Feliz por você ter vindo (se assumirmos que esses elementos são, de fato, complementos do adjetivo). A esse respeito, remetemos o leitor ao trabalho de Cinque (1990). Também é possível, como sinalizamos anteriormente, que a projeção adjetival seja mais complexa do que o que estamos supondo aqui, envolvendo um núcleo funcional Pr ou a mediando a relação de predicação, de modo a tomar como complemento o AP, da seguinte maneira: [aP [DP O João ] [a’ a [ AP

cansado ] ] ]. De fato, essa é uma possibilidade; no entanto, não estamos adotando essa opção aqui por dois motivos: (i) essa análise exigiria um estudo mais aprofundado sobre a relação de predicação, o que não fizemos neste trabalho; (ii) precisaríamos motivar a postulação de uma projeção aP ou PrP, o que também implica um estudo mais detalhado. Para os propósitos desta dissertação, a small clause de Stowell basta, pois nosso foco é nas relações de concordância estabelecidas em uma construção depictiva e nos movimentos que aí ocorrem. O detalhamento da projeção adjetival e da natureza da relação de predicação fica para trabalhos futuros.

Capítulo 3 — Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

185 Como se verifica em (28), os traços-φ não-interpretáveis de Asp e os traços-φ interpretáveis compatíveis do DP estabelecem uma relação sonda-alvo, visto que os traços relevantes do DP estão no domínio de c-comando dos traços de Asp que atuam como uma sonda. Como estão asseguradas as condições para o sistema sonda-alvo, a relação Agree pode ocorrer sem problemas. A representação em (29) exemplifica isso, mostrando que os traços-φ do DP funcionam como um alvo para os traços-φ de Asp, além de apontar que o DP pode se deslocar para [Spec, Asp] para satisfazer o traço [EPP] desse núcleo.46

Contudo, como dissemos, Asp possui um conjunto incompleto de traços-φ, uma vez que prescinde do traço [pessoa], e apresenta apenas os traços não-interpretáveis de [gênero] e [número]. 47 Assim, trata-se de uma sonda defectiva, incapaz de valorar e de apagar o traço não-interpretável de Caso do DP. Mesmo assim, na relação de concordância com os traços-φ do DP (especificados como masculino, singular e 3ª pessoa), Asp tem seu conjunto de traços-φ valorados (como masculino e singular). Com o movimento do DP para [Spec, Asp], o traço [EPP] é satisfeito. O DP deixa uma cópia em sua posição de origem. Nesse momento, a derivação atinge o estado em (30).

46 Seguindo uma sugestão feita pelo professor Jairo Nunes, poderíamos encontrar uma motivação para o

movimento do DP para a posição de [Spec, Asp] (i.e., uma motivação para “EPP”) por meio da análise do quantificador tudo em sentenças como a seguinte, assumindo-se que o quantificador tudo permaneceria encalhado em uma posição mais baixa:

(i) Eles comeram a carne tudo crua.

Observamos, no entanto, que não tivemos tempo de explorar esse argumento neste trabalho, de modo que fica pendente para trabalhos futuros desenvolver essa explicação para o movimento do DP.

47 Nesse tipo de derivação, é possível que o adjetivo (ou Asp) possua um traço não-interpretável de Caso,

visto que há línguas que exibem caso morfológico no depictivo (cf. Marušič, Marvin & Žaucer, 2003). No entanto, como o PB não apresenta morfologia de caso no adjetivo, não estamos assumindo isso aqui.

Capítulo 3 — Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

186 Em seguida, o adjetivo se move e se adjunge a Asp, vide (31). Esse tipo de movimento também pode ser entendido como uma instância de Copy e Merge.48 Estamos supondo que quando o adjetivo (melhor dizendo, a raiz do adjetivo) se adjunge a Asp, ele adquire a morfologia de concordância relevante por meio dos traços-φ valorados de Asp — no caso, a morfologia de gênero (masculino) e número (singular). Isso explicaria o fato de os adjetivos no PB concordarem com seu referente em gênero e número, mas não em pessoa. Além disso, estamos supondo que é por meio da adjunção ao núcleo desse sintagma aspectual que o adjetivo adquire a interpretação stage level típica dos predicados depictivos. Grosso modo, a projeção funcional AspP pode ser entendida como a realização sintática de um evento (cf. Felser, 1999; Rodrigues, 2006: 80).49,50

48 Boeckx, Hornstein & Nunes (2010: 86) explicam como o movimento de V-para-T ocorre sob a análise

de sideward movement. Estamos supondo que aqui ocorreria algo semelhante. Ademais, é possível fazer um paralelo entre o movimento de A para Asp e o movimento de V-para-T ou de V para v (cf. Adger, 2002: 137), mas não vamos fornecer explicações adicionais sobre isso.

49 Ressaltamos que as referidas autoras, ao tratarem de Asp, lidam com configurações um tanto diferentes

das que estamos tentando delinear neste capítulo e focam em outro tipo de sentença (notadamente, sentenças com verbos de percepção). Apenas importamos das autoras a associação entre Asp e propriedades stage level e sinalizamos o fato de que tanto nossa análise quanto a das autoras lidam com uma projeção AspP. Nossa análise não tem a pretensão de ir além disso; na realidade, parece-nos bem evidente, a esse ponto, que precisamos explorar mais a fundo as propriedades aspectuais das construções depictivas e desenvolver melhor essa análise em termos da categoria Asp.

50 Se admitirmos uma linha de análise como a de Fong (2015), no caso de uma construção depictiva em que

o predicado secundário é um gerúndio (e.g., O João fez a tarefa chorando), o núcleo Asp seria realizado como o morfema {-ndo}. A respeito de Asp, observamos que esse núcleo tem sido utilizado em diferentes análises para lidar com fenômenos relativamente distintos (cf. Moutella, 1995; Lunguinho, 2011; Felser, 1999; entre outros). Diante disso, é possível que cada situação que conta com uma projeção AspP envolva a ativação de um subconjunto específico de traços de Asp, mas isso é apenas uma especulação de nossa parte. Um estudo detalhado sobre a natureza de Asp e sobre os seus traços fica pendente.

Capítulo 3 — Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

187 Nesse ponto da derivação, o DP não teve seu traço de Caso valorado, de modo que ele continua ativo para realizar movimento para uma posição-A e para participar de outras relações de concordância. Voltemos nossa atenção agora para a derivação da oração matriz, que contém o verbo ler. No caso dessa oração, ocorre primeiramente o Merge do verbo leu com o DP [a carta], ambos retirados da Numeração. Por meio desse Merge, que forma o VP, o DP, o argumento interno do verbo, recebe um papel temático.

Em seguida, um v é retirado da Numeração e faz Merge com o VP. O conjunto completo de traços-φ de v é uma sonda que procura em seu domínio por um alvo. Encontra o conjunto de traços-φ interpretáveis do DP (especificados como feminino, singular, 3ª pessoa), que são compatíveis com a sonda. O v e o DP entram uma relação de Agree, de forma que os traços não-interpretáveis da sonda são valorados e, como consequência da relação de concordância com v, o DP [a carta] tem seu traço de Caso valorado como acusativo. Uma vez que esse DP tem seu traço de Caso checado, ele não pode mais se mover. No entanto, v ainda tem outro papel temático a atribuir a um argumento externo em [Spec, v].

Estamos supondo que a necessidade de se atribuir/checar papel-θ pode ativar movimento; portanto, é justamente isso que vai disparar o movimento do DP [O João] da

small clause AspP para essa posição. O esquema em (32) ilustra essa possibilidade.

Capítulo 3 — Construções depictivas: concordância e esboço de derivação

188 Não há na Numeração um DP que possa checar o papel-θ remanescente de v. O sistema, então, faz uma cópia do DP [o João], que ainda está ativo para participar de movimento-A. Posteriormente, ocorre Merge dessa cópia com a estrutura formada pela derivação da oração matriz; ou seja, o DP em questão “se move” para [Spec, v]. Trata-se de uma instância de movimento lateral. Conforme exposto na seção anterior, um objeto não precisa se mover para um local que c-comande a posição de onde ele saiu. Assim, o tipo de movimento que ocorre aqui é compatível com os pressupostos teóricos que estamos assumindo. Esse “deslocamento” está exemplificado em (33). Em [Spec, v], o DP [O João] recebe um segundo papel temático, pois nesse local ele checa o papel-θ externo atribuído por v via Merge. Fica explicado, assim, de que modo um único DP recebe dois papéis temáticos em uma construção de predicação secundária.

Em seguida, ocorre Merge de AspP (a small clause) com o vP que foi formado após o Merge do DP [O João] em seu especificador. É por meio do Merge de AspP com

vP que a small clause se torna um adjunto de vP. É importante frisar que o Merge de AspP

ocorre após o movimento do DP [O João], i.e., antes de AspP se tornar um adjunto: isso (32)