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Descentralização e financiamento: desafios para a gestão pública da saúde

No documento SaudenoBrasil (páginas 57-63)

Transferência de responsabilidades e construção de capacidades gestoras

5. Descentralização e financiamento: desafios para a gestão pública da saúde

Para a melhor compreensão das tendências de mudanças nas responsabilidades gestoras so- bre o financiamento da saúde, dois indicadores financeiros ajudam a evidenciar o processo de des- centralização do SUS, vivenciado nos anos 90: (a) distribuição dos gastos públicos em saúde se- gundo origem de recursos e; (b) proporção de recursos federais transferidos diretamente do FNS aos fundos estaduais e municipais de saúde.

Em relação ao primeiro indicador, Faveret (2003) aponta para uma diminuição relativa do pe- so dos recursos federais nos gastos públicos totais em saúde. Estes recursos passam de mais de 70% em 1992 para 59% em 2000. Observa-se um aumento pouco expressivo da participação dos estados (14,8% em 1992 para 18,2% em 2000) e grande aumento da participação municipal (de 12,8% em 1998 para 22,8% em 2000).

Vale destacar que os municípios parecem estar, em média, no limite máximo de sua capacida- de de gasto (já gastam em média 13% de seus orçamentos próprios com a saúde). Os estados, por sua vez, ainda gastam em média cerca de 7% de seu orçamento próprio com saúde. Em seu estu- do, Faveret (2003) estima que o principal impacto da vinculação constitucional de recursos finan- ceiros, associada à aprovação da EC-29, será sobre as contas estaduais, cujos gastos em saúde de- verão crescer 71% até 2004. Para a União e os municípios, o aumento de recursos até 2004 será da ordem de 17 e 37%, respectivamente, resultando aumento total de 31% para as três esferas de governo.

No entanto, para além dessas estimativas, é preciso levar em consideração os efeitos da polí- tica econômica em vigor para o crescimento da receita fiscal, as perspectivas de mudanças decor- rentes da proposta tributária do novo governo federal e as possibilidades reais de aumento dos gastos em saúde nas três esferas de governo. Isso por três razões principais: (a) os patamares de gasto público em saúde, como somatório dos gastos nos três níveis de governo no Brasil, perma- necem baixos – se comparados a outros países, se levarmos em consideração as necessidades de saúde da população e o modelo de sistema de saúde pretendido na Constituição; (b) o maior apor- te de recursos para a área social interfere na repartição do gasto público em saúde entre as esfe- ras de governo e, conseqüentemente, no processo de descentralização do SUS e (c) o aumento dos gastos em saúde está condicionado a variáveis presentes no debate atual, que, por um lado, se relacionam diretamente ao cumprimento da regulamentação da saúde e, por outro, ultrapas- sam seu conteúdo específico.

Em relação ao montante global, dados comparativos dos gastos públicos em saúde em países selecionados, obtidos a partir do documento “World Health Organization. The World Health Report” de 2002, refletem uma situação brasileira bastante desfavorável. A Tabela 1 mostra que, em 2000, os indicadores de gasto no Brasil foram piores do que em alguns países da América Latina (Co- lômbia e Chile) que sofreram ao longo da década de 1990 reformas no sentido da privatização de seu sistema de saúde. Por outro lado, o Brasil possui um gasto público per capita que representa cerca de 14% do gasto apresentado no mesmo ano pelo Canadá, país da OCDE que possui um mo- delo de sistema de saúde público e universal já consolidado.

Tabela 1 – Gasto com saúde per capita (em US$) em países selecionados, 2000

Fonte: World Health Organization (WHO). The World Heath Report 2002: Reducing Risks, Promoting Healthy Life. Geneva: WHO, 2002. Annex, Table 5.

58 País Estados Unidos Canadá Colômbia Chile Brasil México Peru

Gasto público per capita

1.993,06 1.824,48 343,73 296,92 257,45 224,11 140,90

Se as comparações internacionais dão margem a dúvidas, devemos analisar se, com o volume atual de gasto público em saúde podemos e estamos garantindo os princípios que regem a orga- nização do SUS. Mattos (2003), ao refletir sobre a temática do financiamento do SUS defende que os gastos públicos totais em saúde no Brasil são insuficientes para cobrir as necessidades de saú- de da população. No seu artigo, aponta alguns exemplos que sustentam sua tese: em 2000, cer- ca de 78 mil brasileiros morreram sem assistência médica, sendo que na região Norte, esses óbi- tos corresponderam a cerca de 22% dos ocorridos ano. O autor sugere como uma das razões pa- ra os baixos patamares de gastos, a utilização de parâmetros calculados a partir de séries históri- cas de produção para definição do montante de recursos federais a serem transferidos para o cus- teio da assistência nos estados e municípios. A utilização de séries históricas tende a preservar o padrão de oferta de serviços vigente e termina por silenciar a demanda reprimida ao SUS.

Pelo lado das propostas de emenda constitucional da Reforma Tributária, é recorrente no de- bate o tema da desvinculação de gastos sociais da receita tributária da União e estados. O não cumprimento das vinculações constitucionais romperia com os princípios fundamentais do finan- ciamento da política de saúde e da descentralização do SUS e com os benefícios previstos com a implantação da EC-29.

No entanto, se a vinculação fez crescer a expectativa da estabilidade da receita na saúde, é preciso refletir sobre seus impactos sobre o financiamento federal. A EC-29 manteve a vinculação das receitas de estados e municípios, mas rompeu a dedicação das contribuições sociais à saúde, em nível nacional, fixando apenas o seu crescimento a variações do PIB. Essa associação quebra de vez a idéia de financiamento solidário contido no OSS e dificulta acréscimos superiores à vari- ação do PIB, em períodos de baixo crescimento econômico.

Além disso, outras medidas adotadas durante os anos 90, se não alteradas nos próximos anos, comprometem o financiamento do setor. Estudos demonstram que, desde a Constituição de 1988, o maior valor alcançado pela saúde como percentual da seguridade foi de 23,64% no ano de 1991 e que vários mecanismos de retirada de recursos do caixa da seguridade, adotados ao longo dos anos 90, contribuíram para uma política de desfinanciamento da saúde (Faria, 1997; Lessa & cols., 1997; Piola & Biasoto, 2001). Entre eles: (a) a incorporação dos Encargos Previdenciários da União (EPU), antes vinculado diretamente ao Tesouro, aos orçamentos de cada ministério; (b) a vincula- ção das contribuições dos trabalhadores à pasta da Previdência Social, a partir de 1993 e (c) a uti- lização dos recursos do CPMF como uma fonte substitutiva de outras fontes – Cofins e CSLL – e pa- ra o pagamento da dívida contraída pelo Ministério da Saúde junto ao Fundo de Amparo ao Tra- balhador (FAT).

Noronha (2003) ressalta que, desde l994, com a criação do ironicamente chamado Fundo So- cial de Emergência (posterior Fundo de Estabilização), foram subtraídos da seguridade 20% de sua arrecadação, que se mantiveram até hoje, agora sob a forma de Desvinculação de Receitas da Uni- ão (DRU). Esses recursos foram destinados em quase sua totalidade ao pagamento dos encargos financeiros da União. As medidas tornam a seguridade uma variável de ajuste do processo de es- tabilização, ao permitir que os gastos com amortização e serviços da dívida fossem remunerados com recursos que deveriam ser destinados à área social.

Por tudo isso considera-se que, se fossem cum- pridas as disposições previstas para implantação do OSS e não ocorressem desvios em relação ao finan- ciamento da área social, a totalidade das despesas da União com a previdência social (com todas as alegadas distorções), saúde e assistência social, te- ria sido custeada sem nenhum déficit pelas recei- tas das contribuições sociais. Em 2002, o superávit foi de 30 bilhões de reais e, neste ano, até maio, continua superavitária em 21,1 bilhões de reais. O orçamento de 2003 para o Ministério da Saúde po- deria saltar dos R$27 bilhões aprovados para mais de R$40 bilhões, se tomarmos a arrecadação em 2002 das contribuições sociais que foi de quase 200 bilhões (Brasil, Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde, 2003).

Destaca-se ainda que o incremento dos recursos municipais e estaduais para a saúde depende do aumento das transferências constitucionais dos fun- dos de participação10. Nos governos locais, a depen-

dência municipal de transferências desses fundos, típica dos pequenos municípios, se combina com o esforço fiscal e a dependência de sua própria arre- cadação, nas cidades de porte médio e grande. Es- sas transferências estão diretamente relacionadas à variação da receita originária dos tributos partilha- dos (Imposto de Renda – IR e Imposto sobre Produ- tos Industrializados – IPI)11. Pelo lado dos estados,

além do aumento das transferências constitucio- nais, é preciso elevar o patamar da arrecadação tri- butária rompendo com seus níveis crescentes de endividamento, observados na década de 1990.

Duas últimas questões também apontam problemas para o comprometimento efetivo de recur- sos com a saúde. A primeira delas está relacionada à negociação política em torno dos conteúdos da Lei Complementar que regulamentará a EC 29-2000. As diretrizes acerca da aplicação da Emenda fo- ram estabelecidas pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 316, de 4 de abril de 200212

que explicita tanto a base de cálculo para a definição dos recursos mínimos a serem aplicados em saúde, como descreve que tipos de ações e serviços de saúde podem ser considerados para efeito da aplicação da emenda constitucional, entre outras questões. Entretanto, o que se percebe no de- bate atual é que não há consenso a respeito. Pelo contrário, a pressão permanente dos governos pe- la maior autonomia na utilização de recursos incide diretamente nas definições postas sobre as ações e serviços públicos de saúde que serão utilizados para fins da vinculação dos recursos orçamentários. 60

10 Por meio dos fundos de participação, são transferidos aos municípios 22,5% da receita do imposto de renda e do imposto sobre produtos in- dustrializados, de acordo com critérios populacio- nais e pelo inverso da renda per capita municipal, por meio de coeficientes de rateio, o que torna as transferências automáticas. Tais critérios privilegi- am claramente os municípios do interior com po- pulação abaixo de 156.216 habitantes e provoca- ram a intensificação de uma tendência à urbani- zação dos pequenos municípios já presentes na década de 60 (Dain, 1995). As capitais recebem apenas 10% da receita do Fundo, embora hoje, suas regiões metropolitanas concentrem mais de 35% da população brasileira.

11 A previsão de aumento da participação das ins- tâncias subnacionais nos fundos de participação não se efetivou, decaindo, entre 1988 e 1996, de 21% para 15% a sua participação na receita tribu- tária da União, uma vez que os tributos partilhados (Imposto de Renda – IR e Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI) não acompanharam a evolu- ção desta receita (Viana &cols., 2002). 12 Esta Resolução é fruto de amplos debates so- bre a implementação da Emenda Constitucional, particularmente: (1) das discussões realizadas pe- lo grupo técnico formado por representantes do Ministério da Saúde, do Ministério Público Fede- ral, do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Co- nass), do Conselho Nacional de Secretários Muni- cipais de Saúde (Conasems), da Comissão de Se- guridade Social da Câmara dos Deputados, da Co- missão de Assuntos Sociais do Senado e da Asso- ciação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon); (2) dos seminários sobre a “Operacio- nalização da Emenda Constitucional nº 29”, reali- zados em setembro e dezembro de 2001, com a participação de representantes dos Tribunais de Contas dos Estados, dos Municípios e da União, do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Sa- úde e do (Conasems). A Resolução pode ser en- contrada no endereço eletrônico:

http://conselho.saude.gov.br/docs/RES316.doc. Acesso em 10/2003.

A segunda questão refere-se às repercussões no setor da saúde da implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em maio de 2000. Esta Lei define vários limites ao Poder Exe- cutivo local e estadual, especialmente às despesas de pessoal, que não podem ultrapassar 54% das suas receitas correntes líquidas. Caso isso ocorra, as penalidades são significativas. Há uma pre- ocupação dos gestores relacionada à contabilização de gastos com a contratação de profissionais para os programas de saúde família e de agentes comunitários de saúde como gastos de pesso- al, visto que esse critério tem sido adotado por alguns Tribunais de Conta. A questão foi abordada no seminário promovido pelo Ministério da Saúde sobre “A operacionalização da Emenda Consti- tucional nº 29”, realizado em setembro de 2001 em Brasília e ainda merece aprofundamento, não havendo consenso para a implementação de medidas reguladoras sobre a questão. Alguns muni- cípios, por exemplo, insistem que o limite da Lei deveria ser aplicado somente aos recursos dire- tamente arrecadados e às transferências constitucionais regulares e não aos incentivos aos Progra- mas vinculados ao PAB variável.

Feitas as considerações acima, cabe destacar que o peso dos recursos federais no financiamen- to da saúde é e permanecerá grande nos próximos anos. Neste sentido, cresce de importância o segundo indicador – proporção de recursos federais transferidos diretamente do fundo nacional pa- ra os fundos estaduais e municipais – para a avaliação do grau de descentralização da gestão. No que diz respeito aos recursos federais da assistência, observa-se a tendência de crescente substi- tuição do pagamento federal direto aos prestadores pelas transferências diretas e automáticas do fundo federal para os fundos estaduais e municipais, que passam de 24,1% em 1997 para 66,9% em 2001 (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Distribuição dos Recursos Federais para o Custeio da Assistência, por Modali- dade de Pagamento – Brasil, 1997 a 2001.

Fonte: 1996 a 2001: TABNET/Datasus e 1994 e 1995: SAS/MS. Disponível no site:

http://dtr2001.saude.gov.br/sas/ddga/RelacoesNiveisGov_arquivos/frame.htm. Acesso em 10/2003. 61 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1994

Transferências a Municípios Transferências a Estados Pagamentos por Produção de Serviços

Independente do progressivo aumento das transferências federais diretas para os fundos es- taduais e municipais, uma questão importante a ser aprofundada diz respeito às condicionalida- des por vezes estabelecidas para a aplicação desses recursos. Até 2002, observa-se uma tendên- cia crescente de o Ministério da Saúde vincular os recursos transferidos a determinadas políticas ou programas definidos no âmbito nacional, como por exemplo: recursos para a atenção básica; aumentos nos tetos em função de aumentos nas tabelas de remuneração voltados para a estru- turação de redes de referências em áreas específicas; recursos do Faec; entre outros tipos de in- centivos.

Como já assinalado, se por um lado a prática de vinculação de recursos federais a políticas e ações definidas nacionalmente apresenta forte poder indutor de políticas nos âmbitos estadual e municipal, por outro, suscita polêmica no que diz respeito à delimitação desse poder normativo-in- dutor do Ministério da Saúde versus o grau de autonomia necessário para que os gestores estadu- ais e municipais implementem políticas mais especificamente voltadas para a sua realidade local.

Não podemos, no entanto, ignorar que o esforço para superação das desigualdades regionais e locais, possa prescindir de formas de distribuição eqüitativa de recursos financeiros pelas esfe- ras nacional e estaduais. Alguns estudos sugerem que os mecanismos de transferências “fundo a fundo”, incluindo o PAB fixo e variável, tendem a gerar uma distribuição mais igualitária de recur- sos entre os municípios (Costa & Pinto, 2002; Heimann & cols., 2001). Porém, a permanência de outras modalidades de repasse de recursos faz com que, no total, o gestor federal tenda a alocar maior volume de recursos para municípios com melhores condições de vida, de receita, de oferta e de produção de serviços de saúde13. Outras experiências de transferência de recursos financeiros

que favorecem localidades com piores indicadores sociais (ex: maiores taxas de mortalidade in- fantil), como é o caso da experiência de repasse de recursos do fundo estadual de saúde para os fundos municipais no estado do Rio Grande do Sul,

também são exemplos de como as transferências de recursos entre os níveis de governo podem con- tribuir para a redução das desigualdades.

Mattos (2003) chama a atenção para o fato de que, independentemente dos mecanismos e crité- rios utilizados para o repasse de recursos financei- ros, estes devem ser orientados para a busca da igualdade no total de gastos públicos per capita em saúde (como somatório dos gastos da União, esta- dos e municípios). Desta forma, poderiam ser com- pensadas as diferenças na capacidade de financia- mento em saúde dos estados e municípios e res- peitados os diversos perfis de morbimortalidade existentes no País.

Em suma, é necessário analisar com cautela os dados de descentralização e gasto para verificar 62

13 Heimann & cols. (2001) analisam a alo- cação de recursos federais no ano 2000 em 1829 municípios brasiLeiros, classificados em diferentes grupos de acordo comum Ín- dice de Condições de Vida e Saúde (ICVS) e um Índice de Resposta do Sistema de Saúde (IRSS). Os autores demonstram, a partir da análise de dois componentes do financiamento federal – as transferências federais diretas e os pagamentos federais por produção-, que a alocação de recur- sos federais tende a manter as desigualdades en- tre os municípios. Enquanto o valor per capita fe- deral correspondente às transferências diretas mostra uma tendência igualitária entre os vários grupos de municípios – ou seja, grupos de muni- cípios com diferentes condições de vida e saúde e respostas do sistema tendem a receber transfe- rências federais per capita similares -, os valores federais per capita correspondentes ao pagamen- to por produção são maiores para os municípios com melhores condições de vida e saúde e res- postas do sistema de saúde.

em que medida a descentralização de responsabilidades, atribuições e recursos do âmbito federal para os estados e municípios tem sido acompanhada da transferência de poder decisório sobre as políticas regionais e locais, mantendo-se a importância do poder regulador e indutor das esferas nacional e estaduais.

6. Configuração institucional do SUS: instâncias decisórias e estrutura de

No documento SaudenoBrasil (páginas 57-63)

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