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4 O modelo em prática: os casos da saúde e da educação no Brasil

4.1 A descentralização do SUS

Até a institucionalização do SUS, na Constituição de 1988, a política de assistência à saúde vinculava-se à política previdenciária, dependendo da contribuição financeira dos beneficiários ao sistema de previdência. Esse modelo, criado pela Lei Eloy Chaves (1923), por meio das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), manteve-se até o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), criado em 1966 como parte integrante do Instituto Nacional de Previdência Social (Inps) (OLIVEIRA, 2008).

No início dos anos 1980 começam a se desenvolver propostas de reforma do setor saúde, visando diminuir os custos da assistência médica previdenciária e a centralização decisória no Inamps, que favorecia os provedores privados, em função da captura da burocracia do instituto pela indústria hospitalar e farmacêutica (ARRETCHE, 2005). Nesse contexto, descentralizar significava democratizar, reduzindo o poder da iniciativa privada na formulação da política nacional de saúde. Entre as propostas descentralizadoras estava o direcionamento das ações em atenção básica à saúde para os níveis estadual e, sobretudo, municipal. O movimento sanitário defendeu a unificação do Sistema de Saúde na 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que pavimentou o caminho para a aprovação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), em 1987. Este embasou a criação do SUS, estabelecendo a transferência de serviços de saúde para estados e municípios e um gestor único da saúde em cada nível de governo (ESCOREL, 1998, p.187). O movimento sanitário conseguiu manter no texto constitucional vários princípios aprovados na 8a Conferência Nacional de Saúde. Concomitantemente, a estatização da prestação de serviços foi bloqueada pelos provedores privados, que garantiram a prestação privada de serviços pelas seguradoras e planos de saúde (ARRETCHE, 2005; MENICUCCI, 2007). A partir de então, o debate sobre as regras

para implantação do SUS passaria a ocorrer no Congresso Nacional, culminando com a Lei Orgânica da Saúde.

Com a constituição e início da implantação do SUS, a diretriz prioritária da política de saúde passou a ser a descentralização dos serviços em geral e a municipalização dos serviços de atenção básica. Ainda não se tinha clareza sobre qual o papel de cada ente federado, deixando estados e municípios com ampla autonomia para a implementação da descentralização proposta pela Constituição de 1988.

A primeira regra criada para viabilização da municipalização foi a Norma Operacional Básica (NOB) do Ministério da Saúde, a NOB 1/1991, que não definia qualquer modelo de atenção à saúde nem previa mecanismos de articulação dos prestadores, dando ampla autonomia aos gestores subnacionais para a adoção das ações que consideravam adequadas, sem intervenção ou direcionamento por parte do gestor nacional do sistema. Por isso, a primeira fase de implantação do SUS pode ser chamada de fase da descentralização autonomista (OLIVEIRA, 2007). A principal característica dessa norma era o condicionamento dos repasses financeiros à produção do serviço pelo prestador, com base na produção histórica, favorecendo estados e municípios com capacidade instalada (postos, hospitais etc.) e que, portanto, já prestavam serviços. As unidades da federação que não possuíam serviços instalados eram penalizadas, já que só passariam a receber recursos após estabelecerem unidades de atendimento e prestarem serviços de saúde à população. Como consequência, apenas 22% dos municípios brasileiros aderiram ao SUS nesse período (ARRETCHE, 2005).

Em função da baixíssima adesão dos municípios à NOB 1/1991, esta foi substituída pela NOB 1/1993, que introduziu as primeiras formas de habilitação de estados e municípios ao SUS. Os estados podiam se habilitar como gestores parcial ou semipleno, e os municípios habilitavam-se na gestão incipiente, parcial ou semiplena. A diferença entre cada tipo de gestão encontrava-se no grau de complexidade (e

de obrigações) que o ente federativo assumia e, consequentemente, na quantidade de recursos que passaria a receber do ministério para a prestação dos serviços de saúde. A nova regra gerou um incentivo mais claro à adesão e cooperação e 63% dos municípios habilitaram-se em uma das formas de gestão (ARRETCHE, 2005) – um aumento substantivo em relação à adesão obtida pela NOB anterior. Uma importante inovação da nova NOB para as relações intergovernamentais foram as Comissões Intergestores Tripartite (representantes dos três níveis de governo) e Bipartite (estados e municípios), órgãos de representação interfederativa para a discussão das prioridades da política conforme os interesses dos diferentes níveis governamentais.

As duas normas deram início ao processo de descentralização, impulsionado de fato pela NOB 1/1996, voltada a fortalecer a atenção primária dos serviços de saúde. O gestor federal ampliou o repasse de recursos fundo a fundo para estados e municípios que se habilitaram em alguma das formas de gestão e diminuiu o repasse determinado pela prestação de serviços.

Apesar das novas regras de transferência de recursos, somente a partir de 1998 os municípios aderiram massivamente ao Piso Assistencial Básico (PAB), em função da transformação do PAB em Piso de Atenção Básica e da introdução do PAB Variável, formado por recursos específicos para a implementação, pelos municípios, de programas considerados prioritários e desenhados pelo Ministério da Saúde. Os recursos federais seriam repassados apenas aos municípios que implementassem os programas nos moldes determinados pelo gestor nacional do sistema “[…] de modo que os governos locais têm reduzida autonomia em sua implementação” (ARRETCHE, 2005). Dado o caráter “dirigido” vinculado à nova forma de financiamento, ele dá início ao que Oliveira (2007) denomina como fase da descentralização dirigida.

Assim, a superação dos problemas de implementação dessa fase se dá com a finalização do processo de municipalização e a garantia de recursos

federais para os municípios a partir de 1998, com ampla adesão às habilitações propostas pelo Ministério da Saúde e a garantia de recursos para a cooperação entre municípios e governo federal. As relações intergovernamentais, que foram ao longo da fase da descentralização autonomista marcadas pelo “municipalismo autárquico”, nos termos de Celso Daniel, entraram numa fase de maior cooperação, em especial entre os municípios e o gestor federal do SUS. Naquele momento, a nova diretriz prioritária passou a ser a diminuição das desigualdades regionais em termos de indicadores básicos de saúde.

A descentralização aconteceu, mas as desigualdades regionais permaneciam gritantes, o que demandava novos instrumentos da política: priorização de programas considerados essenciais para o enfrentamento das condições mínimas de saúde e garantia de recursos nas distintas regiões e realidades do país.

Com o PAB, composto por PAB Fixo (valor per capita fixo) e PAB Variável (valor condicionado à implementação de programas específicos pelos municípios), o governo federal passou atuar fortemente na atenção básica em saúde. Ao condicionar o repasse de recursos por meio do PAB Variável, passou também a decidir quais seriam os programas prioritários em atenção básica; paulatinamente, os recursos condicionados do PAB Variável se tornaram a maior parte do total de recursos repassados pela União. Com isso, o governo federal não apenas estimulou a adesão dos municípios ao SUS como também introduziu um mecanismo de diminuição das desigualdades existentes nos serviços providos pelas diferentes municipalidades, uma vez que criou incentivos àquelas com piores indicadores em áreas consideradas estratégicas a implantar e desenvolver programas voltados à sua melhoria.

A garantia de recursos para atenção básica por parte do governo federal fez com que 99% dos municípios aderissem às novas regras de gestão até 2000, além de haver um aumento substancial dos recursos públicos gastos em saúde, em especial nesse nível de atenção.

A ampliação do Programa Saúde da Família (PSF), que foi a principal estratégia para a melhoria da atenção básica em saúde, conseguiu atingir resultados exitosos, refletindo o êxito da atuação federal na saúde municipal. Os repasses para a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e suas equipes, parte do PAB Variável, correspondem à maior parte dos repasses realizados pelo PAB Variável (MENDES; MARQUES, 2014) e cresceram expressivamente ao longo dos anos, bem como a cobertura do programa: enquanto em 1998 a cobertura populacional dos agentes comunitários de saúde era de 4,4% da população, em 2017 chega a quase 70% da população (PINTO e GIOVANELLA, 2018). Soma-se a esse aumento outra medida que garantiu mais recursos para a atenção básica nos municípios. Trata-se da Emenda Constitucional no 29/2000, que criou a obrigatoriedade para União, Estados e Municípios de um gasto próprio mínimo em saúde, o qual devia ser ampliado gradativamente no período de 2000 a 2004. O gasto federal seria ajustado ano a ano, de acordo com a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB), partindo de um acréscimo, em 2000, de 5% em relação ao ano de 1999. Os gastos estaduais e municipais deveriam corresponder a 7% dos recursos próprios, a partir do ano 2000, aumentando ano a ano até atingir 12% para os estados e 15% para os municípios. Aquelas unidades subnacionais que já gastavam o mínimo em 2000 teriam um ajuste anual correspondente à diferença dos valores máximos e daqueles já aplicados, dividida pelos cinco anos do período de adequação à emenda.

Somado a isso, e dando continuidade ao processo de “descentralização dirigida”, o Ministério da Saúde editou duas Normas Operacionais de Assistência à Saúde (Noas), a Noas 2001 e a Noas 2002, definindo as responsabilidades mínimas e os conteúdos para a atenção básica, de forma a delimitar as responsabilidades dos municípios dentro do sistema público de saúde; criou novas formas de habilitação, transformando a Gestão Plena da Atenção Básica em Gestão Plena da Atenção Básica Ampliada, cuja consequência principal foi aumentar o rol de responsabilidades incluídas no conjunto de atividades da atenção

básica; exigiu a apresentação, pelos municípios, do Plano Municipal de Saúde, o qual deve conter uma agenda de compromissos, um quadro de metas municipais e as formas de articulação do município na rede locorregional de saúde.

Em 2004 algumas alterações foram introduzidas pelo novo governo federal. A Portaria Ministerial no 2.023/2004 põe fim às formas de habilitação. Todos os municípios passaram a ser responsáveis e a receber um valor per capita para a execução de ações básicas em saúde. As ações estratégicas, pagas de acordo com a adesão, continuaram com o pagamento em separado.

Enfim, as diversas regras criadas no período para a melhoria da atenção básica em saúde aumentaram substancialmente os recursos disponíveis aos municípios, ainda que com limitação de autonomia municipal na definição das estratégias de gasto em saúde, dado que muitos dos recursos repassados estavam vinculados a programas criados centralmente para os (distintos) 5.570 municípios brasileiros. Somada a isso, a ampliação do PSF garantiu a ampliação significativa do acesso a serviços básicos de saúde nos municípios brasileiros.

Grande parte desse avanço decorreu da forte atuação do governo federal na política de atenção básica. Ainda que as desigualdades regionais não tenham sido de fato superadas, conforme apontou Oliveira (2008), e que tenha havido uma diminuição da autonomia dos municípios na definição da política municipal de saúde, os indicadores básicos de saúde melhoraram significativamente pelo país, superando os problemas de implementação da diretriz da fase da descentralização dirigida. Municípios e governo federal conseguiram cooperar e garantir recursos e serviços básicos em saúde nos mais de 5 mil municípios brasileiros. Essa relação direta entre governo federal e municípios, sem a participação dos governos estaduais, foi denominada por Oliveira (2007) como “federalismo pulverizado” – há cooperação, mas numa relação direta entre Ministério da Saúde e os 5.570 municípios; esta foi a politics resultante da opção de policy.

O problema de implementação anterior, de diminuição das desigualdades e de melhoria dos principais indicadores da atenção básica, fora alcançado, abrindo espaço para uma nova diretriz e novo problema de implementação: o acesso a serviços de média e alta complexidade, exigindo mecanismos para a cooperação regional. Essa necessidade levou a política a uma nova etapa, em que a regionalização prevista nas primeiras leis do SUS tornou-se a nova diretriz prioritária. É nela que nos encontramos agora: a fase da descentralização regionalizada.

A primeira medida no sentido de impulsionar a regionalização foi tomada ao final da fase da descentralização dirigida. A Noas SUS 1/2001 apontava para a necessidade de se atentar para a regionalização, sem o quê os princípios da universalidade, integralidade e equidade do SUS não seriam alcançados. Além da oferta dos serviços de atenção básica, os gestores devem ser capazes de garantir acesso a serviços de maior complexidade, organizando regionalmente a demanda (Fadel et al., 2009). Tal norma, contudo, não apresentava instrumentos necessários para sua implementação, requerendo nova regulamentação, que veio com a Noas SUS 1/2002.

Apesar de se apresentarem como a primeira tentativa de impulsionar a regionalização, no final da fase da descentralização dirigida, as Noas mencionadas não foram capazes de atingir seus objetivos. Nesse contexto para deflagrar a fase da descentralização regionalizada, instituiu-se o Pacto pela Saúde (PS), de 2006, integrado por três instrumentos: o Pacto pela Vida (PV), o Pacto em Defesa do SUS (PDSUS) e o Pacto de Gestão (PG).

O Pacto pela Vida é “o compromisso entre os gestores do SUS em torno de prioridades, estabelecidas por meio de metas nacionais, estaduais ou municipais, que apresentam impacto sobre a situação de saúde da população brasileira” (BRASIL, 2006a), fortemente vinculado ao desenvolvimento da atenção básica em saúde. Já o PDSUS visa assegurar o compromisso dos gestores do SUS com o seu desenvolvimento

enquanto política pública, retomando as discussões políticas em torno da saúde pública, bem como o fortalecimento e a ampliação do diálogo com os movimentos sociais, ampliando o controle social e a transparência.

Por fim, o Pacto de Gestão estabelece “as diretrizes para a gestão do sistema nos aspectos de descentralização, regionalização, financiamento, planejamento, programação pactuada e integrada, regulação, participação social e gestão do trabalho e da educação na saúde” (BRASIL, 2006a). O eixo estruturante do PG é a regionalização. A articulação entre os gestores, indispensável para a regionalização, deve se dar por meio da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), ambas constituídas de forma paritária e definindo as diretrizes para a alocação dos recursos financeiros (FADEL el al., 2009).

Embora criando um novo instrumento para implementação da política voltada à regionalização, o pacto não teve grande adesão imediata. Alguns municípios e estados firmaram o Termo de Compromisso de Gestão de maneira meramente burocrática, sem implementar os instrumentos previstos no pacto, limitando seu alcance. Constituíram- se colegiados regionais e os delimitaram-se melhor as regiões de saúde, mas objetivos essenciais não foram alcançados (MENICUCCI

et al., 2018).

Em 2011, diante da não adesão ao pacto por vários municípios, um novo instrumento foi aprovado, por meio do Decreto no 7.508/2011, que trata da “articulação interfederativa” no SUS, definindo região de saúde e instituindo o Contrato Organizativo da Ação Pública da Saúde (Coap), o qual é um:

[…] acordo de colaboração firmado entre entes federativos com a finalidade de organizar e integrar as ações e serviços de saúde na rede regionalizada e hierarquizada, com definição de responsabilidades, indicadores e metas de saúde, critérios

de avaliação de desempenho, recursos financeiros que serão disponibilizados, forma de controle e fiscalização de sua execução e demais elementos necessários à implementação integrada das ações e serviços de saúde (BRASIL, 2011).

De acordo com um dos entrevistados de Menicucci e colaboradores (2018, p. 37, grifos nossos), “a ideia era que o Coap viesse substituir o Pacto pela Saúde, com uma metodologia permanente de integração intergovernamental, que reduziria a fragmentação da gestão de saúde”. Todavia, apesar dessa intenção, o Coap não resolveu o problema do financiamento, tornando-se um instrumento ainda menos aceito pelos gestores do que o pacto.

Tanto o pacto quanto o Coap, portanto, podem ser vistos como instrumentos que buscaram definir as relações federativas na saúde, sem que um tenha superado os problemas de implementação enfrentados pelo outro, mantendo em aberto a diretriz prioritária da regionalização. Por isso, pode-se afirmar que a “fase da descentralização regionalizada” ainda está em curso quando completamos trinta anos de SUS no país. Quando seus problemas de implementação forem superados ou sobrerrestados por novas questões, outras fases virão.

4.2 O financiamento da educação em dois momentos: