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Política pública tem sua contribuição enquanto postura diante de uma determinada questão e políticas são importantes porque é necessário numa democracia saber como os governos locais, estaduais e nacionais se posicionam ou o que poderia ser esperado deles. Mas haverá também planos, orçamentos, decisões e muitas outras maneiras de discutir o público, assim como haverá movimentos de protestos, argumentos sobre direitos e valores. São todas linguagens sociais que conectam, desconectam e entram em conflito no terreno da ação pública. Entretanto, há algo que muitas – mesmo aparentemente diferentes – têm em comum e que relaciona com a justaposição da racionalidade instrumental e a pressuposta hierarquia institucional comentada na introdução do capítulo. A ideia de que há um princípio geral (postura, plano, orçamento, decisão, diretriz, valor, direito etc.) a partir do qual ações específicas podem ser derivadas; de processos que seguem o caminho de lugares gerais para lugares específicos.

Durante muitos anos a busca de princípios gerais norteou as diferentes disciplinas acadêmicas e científicas, independentemente de elas serem exatas, inexatas ou sociais. Mesmo hoje quando aceitamos nas ciências sociais que a verdade lá fora não é tão simples assim e que nosso mundo sócio técnico é cheio de nuances construídas e negociadas, ainda temos a tendência de agarrarmos à crença de que há princípios gerais; seja por razões epistemológicas, seja por razões normativas, ou simplesmente por conforto. Podem ser gerais que levam a específicos, mas a noção do geral, especialmente quando associado com o instrumentalismo autorizado, se junta numa hierarquia implícita que vai do centro para o ponto. Por exemplo, falamos em descentralização, governo nacional e local, planejamento regional, sistemas unificados de saúde e de assistência social coordenados centralmente; todas ideias organizativas que partem do geral para o específico com os planos, princípios, políticas, diretrizes e orçamentos entre outros.

Há uma tendência inerente em muitas das ciências sociais e ciências sociais aplicadas em enxergar os processos de políticas públicas democráticas como guiadas normativamente por noções de participação e deliberação. Consequentemente, as controvérsias deveriam levar a um consenso, ou pelo menos à aceitação, e onde há uma desigualdade nos campos das políticas, deveria ocorrer uma tentativa de superar essas diferenças. Se traduzirmos isso para a provisão de serviços no setor público e para as ações de governo, leva ao pressuposto de que as provisões gerais de serviços devem procurar estabelecer um bom equilíbrio entre as muitas maneiras de prover e/ou regulamentar serviços e as diferentes demandas presentes na sociedade. A procura desse equilíbrio não significa encontrar o equilíbrio perfeito, porque as demandas mudam de acordo com as mudanças das próprias sociedades e de serviços. Também não implica em existir um amplo consenso referente ao que é oferecido e o que está sendo demandado. De fato, eleições, pesquisas, jornais, processos abertos de consulta e passeatas de protesto são todos exemplos de discordância em termos de problema, escala e foco. No entanto, quando falamos a respeito de democracias consolidadas normalmente nos referimos a políticas em que algum tipo de meio termo híbrido foi estabelecido, permitindo um equilíbrio básico. Esse também é o caso quando a discussão foca na implementação de políticas; ajustes podem ser necessários, e a implementação de políticas muitas vezes são políticas de implementação, realizadas aos tropeços incrementais (LINDBLOM, 1959) ou tateando no escuro (BEHN, 1988), mas que acabam dando certo.

O argumento que apresentamos neste capítulo é resultado de seis anos de pesquisa em questões de vulnerabilidade urbana em uma área densamente populosa da periferia sul do município de São Paulo, sendo realizado por um grupo de pesquisadores de diferentes universidades da região metropolitana. Os resultados sugerem que há sérios limites nesse conjunto de pressupostos sobre o encaminhamento de ações que tende, coletivamente, a reforçar a distinção entre o geral e o específico e o caminho do primeiro para o segundo.

De início, é necessário reconhecer que governos podem desenvolver programas sobre uma gama grande de assuntos para melhorar o geral, mas os resultados sempre acontecem em lugares; as ideias e as ações serão sempre aplicadas por alguém em algum lugar (um bom exemplo disso foi dado por BOISIER, 2005, em seu comentário que todo o desenvolvimento é local porque acontece em lugares). Planejadores, gestores de programas, analistas de políticas públicas e coordenadores de serviços podem reconhecer isso e estar preocupados sobre as implicações, mas o peso das diferentes linguagens técnicas, relatórios, organogramas, mapas e tabelas cria um mundo ordenado do geral para o especifico; o que Scott chamou no seu estudo histórico de seeing

like a state (SCOTT, 1988). O resultado é um processo hierárquico que

parece uma escadaria ou plano inclinado, que vai inevitavelmente – como se fosse por gravidade – da definição e da decisão passando pela implementação de serviços até a ação. As variedades dos lugares específicos são resolvidas por um geral bem projetado e implementado. Friend (1977) contrastou esse olhar a partir do gestor, prefeito, ministro ou equipe de assessoria que materializa a noção de centro, com um outro olhar, a partir do dia a dia do cidadão, morador, parte de um lar, família e vizinhança (nota-se que quando não estão sendo gestores, prefeitos, ministros, assessores etc. os primeiros, como pessoas físicas, são também os segundos). Para o primeiro, focado na preocupação com a implementação de programas e políticas, os diferentes serviços são como os dedos de uma mão, cada qual estendendo-se para diferentes grupos ou populações. Quando os membros do executivo (ministros, secretários, gerentes de programa) se reúnem na palma da mesma mão – no centro – a preocupação é com a coerência dessas diversas atividades como parte de uma plataforma de governo ou agenda de ações: o espaço de políticas de governo.

Para as pessoas no cotidiano, a situação se inverte. O espaço de vida individual e coletivo é constituído por questões e problemas bem concretos ligados a diferentes demandas e direitos. Uma mãe solteira com um bebê que precisa trabalhar; um idoso que precisa de mobilidade;

uma jovem procurando por livros que não encontra em sua biblioteca escolar. Para essas pessoas, o dia a dia em relação às ações do Estado é formado por partes de diferentes questões e soluções que são em parte sociais e em parte materiais, atendidos por diferentes partes das várias organizações cujas ações se estendem à vida cotidiana. O executivo ou comitê de gestão pode se preocupar com a implementação; já a preocupação do cidadão, da família, dos amigos e vizinhos é com onde as coisas estão, como chegar nelas, e como juntar as diferentes partes. Elas estão na palma de uma outra mão, em que os dedos são os serviços e as agências, e que precisam buscar respostas. Quando as duas mãos se conectam, a ideia do geral é, para efeitos práticos, válida, mesmo sendo questionável teoricamente. Mas e quando não se conectam? Friend se interessava pelas implicações dessas diferenças na coordenação, e assim acabou estabelecendo um importante questionamento da tendência de olhar o “geral” e não o “específico”.

Quando a provisão de serviços ao público parece se fragmentar entre demasiados departamentos ou agências especializadas, as pessoas tendem a procurar uma coordenação melhor por meio da mudança para outro nível, onde as coisas podem ser vistas de modo mais equilibrada e menos estreita. Mas será que isso deveria dizer buscar uma aproximação mais perto ao nível da pessoa e pessoas para quem o serviço é direcionado, ou mais perto do coração do sistema governamental através da qual o controle é exercido, ou existem modos de progredir nas duas direções ao mesmo tempo? (FRIEND, 1977, p. 4).

Friedmann (1992) utilizou uma abordagem similar no que se refere àqueles aspectos do cotidiano que são chaves para o poder social que sustenta a vida diária, nos lares e moradias, e o papel importante exercido pelas agências estatais para ajudar ou atrapalhar a sua aquisição e acesso. Conforme ele identificou, partindo do ponto de vista do domicílio: os recursos financeiros; redes sociais; informação apropriada; tempo excedente para necessidades de subsistência; instrumentos de trabalho

ou de sustento; organização social; conhecimento e habilidades; e um espaço de vida seguro.

Agora, quando a variedade do algum lugar é limitada e o desencontro entre o geral e o específico pode ser ajustado de uma forma ou outra por meio de recursos, oportunidades ou inovações sociais e organizacionais, por exemplo no orçamento participativo, o princípio da adaptação na implementação – ou, melhor, na tradução – tende a manter-se válido. Mesmo quando os desafios são mais complexos, se as pessoas envolvidas nos dois olhares conseguem trabalhar juntos de alguma maneira, a ideia do caminho do geral para específico, mesmo duvidoso em termos teóricos, continua possível. Mas o que acontece quando as faltas de conexão são além da capacidade de ajuste mútuo, ou pelas falhas nas capacidades de respostas de um, ou as dificuldades de acesso e a complexidade da demanda do outro? O que acontece quando esse desencontro se torna vasto demais para a frágil realidade na qual os lares de Friedmann (1992) mantêm algum tipo de sustentação? Quando a vulnerabilidade social é agravada não apenas pela vulnerabilidade material, mas também pela vulnerabilidade institucional?

Essas indagações oriundas da experiência empírica desses últimos seis anos têm uma série de consequências teóricas. O que seria, metodologicamente, epistemologicamente e ontologicamente seguir o caminho inverso, do específico ao geral e questionar a validade do geral para as ciências sociais e ciências sociais aplicadas? Aqui entram não somente as discussões e noções sobre lugar (HUBBARD; KITCHIN, 2011), mas, e mais radical, os argumentos de Latour sobre o social plano (flat social, 1996) e de Marston, Jones e Woodward (2005) sobre a geografia sem escalas. No início da expansão da área de política pública, argumentos não tão diferentes foram levantados sobre a política pública e as questões sociais em geral por Rittel e Webber (1973) com a proposta de wicked problems ou problemas malvados.

3 A experiência da estação de pesquisa urbana