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2 Diretrizes prioritárias das políticas públicas

Howlett e Ramesh (2003), ao analisarem a formulação das políticas públicas, afirmam que a natureza das opções concerne à “extensão com que elas propõem soluções aos problemas enfrentados pelo status quo da política pública” (op.cit., p.146). Enquanto que alguns problemas demandam mudanças substantivas, outros envolvem ajustes pontuais nas políticas e programas já existentes. Voltamo- nos aqui para problemas que demandam mudanças substantivas, em especial aspectos estruturais da política pública em questão, os quais demandam mais do que soluções específicas, requerendo diretrizes prioritárias para nortear um conjunto de mudanças significativas.

Referimo-nos aos objetivos últimos das políticas públicas, que variam dentro de períodos mais longos de tempo. Isso não significa inexistirem mudanças incrementais acontecendo cotidianamente nas políticas ou instituições (THELEN; MAHONEY, 2010). Ainda, disso não decorre que mudanças incrementais não gerem, no conjunto, mudanças estruturais significativas. Normalmente, as mudanças incrementais acontecem ao longo de largos períodos de tempo dominados por uma diretriz prioritária da política. Tais diretrizes, por sua vez, mudam de maneira menos frequente – e, sobretudo, após superados seus principais problemas de implementação.

A implementação, por sua vez, pode variar de acordo com a escala de análise. Podemos analisar o Sistema Único de Saúde (SUS) e as diretrizes que se mostraram prioritárias durante seus trinta anos de existência6. A escala poderia ser outra. Poderíamos analisar a atenção básica em saúde e, dentro desta, suas diretrizes prioritárias em cada momento do seu desenvolvimento histórico. O mesmo poderia ser feito para a política de medicamentos, de serviços de alta complexidade, e assim por diante.

As políticas públicas são guiadas por diretrizes prioritárias que, por sua vez, norteiam as subpolíticas, programas e mudanças incrementais dela decorrentes. A escala da política analisada depende do interesse do pesquisador.

Peter Hall (1993), analisando as mudanças na política econômica britânica, identificou três tipos distintos de mudanças: as de “primeira ordem”, baseadas em ajustes pontuais em parâmetros de implementação da política; as de “segunda ordem”, que são mudanças em um conjunto de instrumentos relacionados à consecução dos objetivos da política; e as de “terceira ordem”, significando mudanças nos próprios objetivos da política7.

Howlett e Ramesh (2003) complementam o argumento de Hall e afirmam que há quatro tipos de mudanças possíveis nas políticas, conforme mostra Quadro 1.

3 Desenvolvo o caso específico do SUS em outro artigo, Trinta anos de descentralização

do SUS, ainda não publicado.

4 Segundo Perissinotto e Stumm (2017), “[…] o conceito de “mudança de terceira ordem”,

formulado por P. Hall (1993), tenderia a pensar a mudança de determinada política apenas como alteração brusca, e não incremental, provocada por fatores externos ao processo decisório” (p. 124). Esse ponto é importante para nosso argumento sobre as mudanças nas diretrizes prioritárias e será retomado adiante.

Quadro 1 – Opções de políticas públicas por nível de generalidade e componente afetado

Nível de generalidade do conteúdo da política pública Elemento afetado da política pública Conceito/política Prática/programa Fins Objetivos da

política Especificidades do programa

Meios Tipos de

instrumento Componentes do instrumento Fonte: Howlett e Ramesh (2003), adaptado a partir de Hall (1993).

Conforme explicam os autores, mudanças nos objetivos da política (e também nos instrumentos voltados à sua implementação) demandam a introdução de novas ideias em seu processo deliberativo e, em geral, envolvem a entrada de novos atores no processo político, ao passo que mudanças nos programas (suas especificidades e componentes do instrumento de implementação) envolvem alterações menores na política existente, sem necessariamente incorporar novos atores, bastando mudanças de preferências daqueles já envolvidos (HOWLETT; RAMESH, 2003, p. 147).

Assim, para eles, os efeitos da presença ou ausência de novos atores e ideias nas opções de políticas públicas consideradas são sintetizados no seguinte modelo:

Quadro 2 – Efeitos da presença ou ausência de novos atores e ideias nas opções de políticas públicas consideradas

Presença de novos

atores Continuidade de antigos atores Presença de

novas ideias Opções relativas a mudanças nos objetivos das políticas

Opções relativas a mudanças nas especificidades do programa Continuidade de velhas ideias Opções relativas a mudanças nos tipos de instrumento

Opções relativas a

mudanças nos componentes do instrumento

A presença de novas ideias geraria, portanto, possibilidades de mudanças nos objetivos das políticas ou nas especificidades dos programas.

Aqui, damos centralidade às mudanças nas diretrizes prioritárias das políticas, afirmando que: i) envolvem alterações profundas (mas não necessariamente bruscas, como em Hall) nos fins da política pública – e não apenas nos meios para atingi-las; ii) são definidas por meio de um profundo conhecimento acerca da situação atual da política pública em jogo, do problema a ser atacado e de uma expectativa de resultados futuros; e iii) surgem em contextos de superação dos principais problemas de implementação da diretriz prioritária antecedente, a qual teve seu objetivo principal atingido, no todo ou em parte.

Importante salientar que a diretriz prioritária pode ter seu objetivo atingido apenas em parte, sobretudo quando se tem a clareza de que sua implementação foi de tal maneira exitosa que seus frutos ainda serão colhidos a posteriori, não dependendo mais da total atenção governamental. Aprimoramentos nessas políticas podem e são feitos com frequência, mas a partir de então de maneira mais incremental. Todos os esforços dos atores e instituições de implementação se voltam para a nova diretriz prioritária. A política prioritária e exitosamente implementada seguirá seu rumo. Isso não impede seus atores de a extinguirem, rápida ou lentamente, num futuro próximo ou distante. Assim, as diretrizes prioritárias num dado momento (t1) guiam os atores de implementação por longos períodos de tempo, até que nova diretriz prioritária ganhe destaque na agenda governamental no momento seguinte (t2) e “assuma o comando” da agenda. E, considerando que as “ideias” e preferências dos atores influenciam as escolhas de políticas que se transformam em diretrizes prioritárias, é importante apontar que as ideias que prosperam num momento t1 influenciam aquelas que surgem como opções num momento t2 (PIERSON, 2000; PERISSINOTTO; STUMM, 2017).

Um aspecto específico sobre formulação de políticas públicas merece atenção: há um amplo debate na ciência política acerca do desenho das políticas e da escolha dos instrumentos necessários à sua implementação. Resumidamente, podemos separar esse debate em duas grandes correntes que olham para a direção dos processos de desenho e instrumentos: aqueles para os quais o desenho das políticas se dá a partir da compreensão sistemática do problema a ser enfrentado, selecionando a partir dessa os instrumentos necessários para implementar a política (LINDER; PETERS, 1984, 1993); ou aqueles que adotam a direção oposta, conhecida também como “modelo da lata do lixo” (COHEN; MARCH; OLSEN, 1972), segundo o qual os instrumentos (ou soluções) buscam problemas, a depender do contexto e das condições políticas colocadas aos atores – ou, conforme resumem Linder e Peters (1993), “o contexto do problema é mediado pela seleção ex ante do instrumento” (LINDER; PETERS, 1993, p. 8). A proposta analítica aqui apresentada, dos processos de decisão, seleção e superação das diretrizes prioritárias, parte da visão proposta por Linder e Peters, que inclui “uma compreensão prévia dos processos causais dos problemas públicos e, por conseguinte, certa intenção consciente para selecionar instrumentos que abordem esses processos” (LINDER; PETERS, 1993, p. 9).

E quem são os atores que definem a diretriz prioritária? Conforme dito anteriormente, não intentamos aqui discutir o conjunto de atores (burocratas, políticos e atores da sociedade civil organizada). Esses não têm uma única opção em termos de política pública; conhecem os principais problemas da política na qual atuam e chegam a um consenso (aquele possível no contexto político e social em que interagem) acerca de qual diretriz prioritária deve ser perseguida, por meio dos mais variados mecanismos de diálogo e participação social, institucionalizados ou não. Têm papel central, nesse processo, aquilo que Allison e Halperin (1972) denominam por jogadores sêniores. Em geral, incluem políticos importantes para aquela área de política, inclusive políticos com um peso desproporcional em relação aos demais – o presidente ou um ministro, por exemplo. Organizações e grupos influentes também podem ser

tratados como um jogador. Conforme afirmam, “os jogadores sêniores vão dominar o jogo decisório” (ALLISON; HALPERIN, 1972, p. 47). Sem explorar em detalhes essa questão, pontuamos que a definição da diretriz prioritária não se dá apenas pelos atores implementadores da política, mas, antes disso, no seu processo decisório, dominado por “jogadores de peso”, importantes atores daquela política pública específica. Retomando o exemplo da política de saúde, não se pode imaginar a definição das diretrizes prioritárias sem que se leve em consideração a visão dos principais sanitaristas que ocupam postos estratégicos nos diferentes governos.

Mas a permanência de uma diretriz prioritária depende, também, da continuidade dos seus atores definidores. Quando o quadro de atores que definem a diretriz prioritária se altera abrupta ou radicalmente, a chance de “abandono” daquela diretriz é grande. Mudanças de grupos políticos no governo, em especial a entrada de grupos com visões muito distintas do papel do Estado na condução das políticas públicas, tendem a gerar mudanças significativas ou mesmo a rejeição das diretrizes prioritárias. Mudanças menos radicais, com a entrada de grupos que, se não alinhados, ao menos concordam com o sentido das políticas implementadas, têm efeitos menos significativos para a continuidade e superação das diretrizes.

A crítica que as abordagens mais atuais sobre implementação podem fazer à proposta aqui apresentada é: trata-se de uma abordagem do tipo

top-down. Sobre essa questão, reconhecemos que o processo decisório

dominado por “jogadores sêniores” é lido como apartado do processo de implementação. Embora a diretriz prioritária possa ser definida nos altos escalões da política e da burocracia, argumentamos que as regras que serão criadas para viabilizá-la são (ou podem ser) discutidas pelo conjunto de atores envolvidos não apenas na formulação, mas sobretudo na implementação. Há, nesse sentido, uma interação em rede dos atores de implementação e formulação, que se retroalimentam e repensam os instrumentos legais e normativos necessários à implementação.

Esse processo é contínuo e visa enfrentar os principais problemas de implementação que os atores implementadores enfrentam.

O que seriam, então, tais problemas de implementação?