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O financiamento da educação em dois momentos: Fundef e Fundeb

4 O modelo em prática: os casos da saúde e da educação no Brasil

4.2 O financiamento da educação em dois momentos: Fundef e Fundeb

A garantia constitucional de recursos para o financiamento da educação no Brasil é já um fenômeno antigo, remontando à Constituição de 1934 (CALLEGARI, 2015; SOUZA; GOUVEIA, 2015), quando, por meio de vinculações orçamentárias, definiu-se que a União aplicaria pelo menos 10% de sua arrecadação de impostos nessa área, ao passo que estados e o Distrito Federal deveriam dispender não menos do que 20%, além de montantes decorrentes da alienação de bens imóveis. A partir daquele momento, a vinculação orçamentária constitucional oscilou de acordo com os regimes vigentes: em períodos de democracia ou

maior abertura, vinculou-se; em períodos autoritários, desvinculou-se. Desse modo, as Constituições de 1934, 1946 e 1988 estabeleceram percentuais de receita reservados para a educação; já as Cartas de 1937 e 1967 não o fizeram. Um ponto intermédio – e de transição para isso, foi a emenda Calmon, em 1983, já nos estertores da ditadura militar, quando fixou-se um mínimo de 13% para a União e 25% para estados, distrito federal e municípios (CALLEGARI, 2015).

Desse modo, não foi novidade alguma a previsão constitucional da Carta de 1988, de que da receita de impostos deveriam aplicar em educação ao menos 18% a União e 25% os entes subnacionais. Essa provisão simplesmente dava continuidade a uma tradição de nossas constituições democráticas.

A vinculação de recursos, contudo, não foi suficiente para fazer frente às grandes disparidades econômicas nacionais, já que estados e municípios mais pobres não tinham como assegurar um funcionamento minimamente aceitável de suas atividades de ensino sem uma suplementação de recursos.

O financiamento regular da educação era um instrumento necessário para se garantir a descentralização da educação básica e, sobretudo, a ampliação do acesso à escola no Brasil, elevando assim a cobertura educacional no país. Para tanto, a primeira diretriz prioritária na Educação foi a de ampliação do acesso ao ensino fundamental em todos os municípios do país. Iniciava-se a fase da universalização do ensino fundamental.

A Emenda Constitucional no 14/1996 foi a regra criada de modo a viabilizar a implementação daquela diretriz, garantindo recursos para o ensino fundamental e, assim, ampliando o acesso nas diferentes regiões do país. Ela instituiu em todos os estados e no Distrito Federal um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) – a ser composto com pelo menos 15% do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de

Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) (tanto o estadual quanto a cota-parte municipal) e das transferências a estados e municípios do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) (tanto por meio dos fundos de participação quanto na cota-parte do IPI destinada aos estados exportadores (a chamada Lei Kandir). Como os fundos seriam estruturados dentro de cada estado, previu-se que uma das possibilidades de intervenção da União nos estados seria a não “aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferência, na manutenção e desenvolvimento do ensino”, de acordo com o estabelecido pela própria constituição. Ou seja, se o estado não cumprisse sua parte nos gastos com educação, tornar-se-ia passível de intervenção federal. Isso indicava a importância que adquiria naquele momento assegurar que os governos subnacionais gastassem o mínimo em educação exigido pela letra constitucional.

A União ganhou protagonismo nessa política naquele momento não só pela possibilidade de intervenção, mas também por uma modificação importante em seu papel nessa área. Além de ser responsável pela educação no âmbito do sistema federal de ensino (inclusive de territórios – responsabilidade mais teórica que prática, já que inexistem territórios federais atualmente) e de prestar assistência técnica e financeira aos entes subnacionais, a União assumiu a função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino, responsabilizando-se por transferir recursos entre os entes – dos menos para os mais necessitados – e por suplementar os recursos financeiros de modo a assegurar patamares mínimos de gasto.

Também muito importante, além de redefinir como educação infantil o que antes era ensino pré-escolar, incumbência dos municípios, com o ensino fundamental, a emenda instituiu como área prioritária de atuação dos estados o ensino fundamental e médio. Havia, portanto, sobreposição entre estados e municípios no concernente ao ensino

fundamental, porém uma clara divisão de competências no que dizia respeito à educação infantil e ao ensino médio – especificando o que não era tão claro no texto original da Constituição de 1988 – que delegava aos municípios a educação pré-escolar (depois infantil) e o ensino fundamental, sendo omissa acerca do papel dos estados, apenas subentendido, já que não se definia a quem caberia a responsabilidade pelo ensino médio.

Porém, já que tratava da instituição de um fundo, o aspecto principal da emenda era financeiro. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) a emenda estabeleceu que por dez anos, do valor mínimo a ser gasto pelos governos subnacionais em educação (25% das receitas resultantes de impostos, inclusive as transferências), não menos que 60% deveriam se destinar ao ensino fundamental como forma de assegurar sua universalização e a melhor remuneração dos professores. Uma modificação importante ocorrida nesse momento disse respeito à priorização do ensino fundamental em detrimento do combate ao analfabetismo. O texto original da constituição federal determinava, no art. 60 do ADCT, que durante dez anos ao menos 50% dos recursos públicos vinculados à educação dos três níveis de governo fossem destinados a eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental. Com a Emenda 14, aprovada ainda no oitavo ano após a promulgação da constituição – e, portanto, antes mesmo que se cumprisse o prazo inicialmente previsto –, essa diretriz prioritária foi alterada e os governos subnacionais passaram a priorizar exclusivamente o ensino fundamental, visando sua universalização e dispendendo com ele ao menos 60% dos recursos vinculados. Já o combate ao analfabetismo ficou a cargo da União em sua atuação suplementar, de forma dividida com o ensino fundamental; caberia ao governo federal dispender ao menos 30% de seus recursos vinculados à educação para essa dupla finalidade.

Os recursos do Fundef nos estados deveriam ser distribuídos ao estado e aos municípios proporcionalmente ao número de alunos matriculados,

sendo suplementados pela União caso não fosse alcançado um gasto mínimo por aluno definido nacionalmente. Os valores aportados ao fundo cresceriam paulatinamente por cinco anos, até atingir também um valor por aluno definido nacionalmente, com vistas a assegurar um padrão mínimo de qualidade. Nos termos de Davies (2006, p. 756),

[…] o princípio básico do Fundef é o de disponibilizar um valor anual mínimo nacional por matrícula no ensino fundamental de cada rede municipal e estadual, de modo a possibilitar o que o governo federal alegou ser suficiente para um padrão mínimo de qualidade, nunca definido, conquanto previsto na Lei no 9.424.

Para que os professores na ativa fossem remunerados satisfatoriamente, a emenda também estabeleceu que 60% dos recursos fossem destinados para isso. Também como forma de assegurar tais recursos, a emenda determinou que dos 18% das receitas de impostos da União obrigatoriamente vinculadas à educação, não menos que 30% seriam utilizados para combater o analfabetismo e suplementar os valores dos fundos estaduais, de maneira que o mínimo nacional fosse atingido.

Um importante efeito do Fundef foi o de promover, de fato, a universalização do ensino fundamental, ainda que sem assegurar um avanço no que concerne à qualidade. Contudo, isso era insuficiente e se fazia necessário expandir o alcance da política, de modo a contemplar toda a educação básica – para baixo, incorporando a educação infantil, e para cima, abarcando o ensino médio. Assim, tanto a superação dos problemas de implementação que proporcionou o sucesso da fase anterior no atingimento de sua diretriz prioritária quanto sua insuficiência diante do conjunto de necessidades da educação tornavam necessário levar adiante uma nova diretriz prioritária. Iniciou-se, então, a fase da universalização do ensino básico. Para a implementação dessa nova diretriz, a principal regra institucional criada foi a Emenda Constitucional no 53/2006, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

Essa emenda, promulgada quando o Fundef completava dez anos e terminaria o prazo de vigência previsto originalmente no ADCT, instituiu uma nova política, prevista para vigorar por catorze anos. O novo fundo assegurou um volume mais substancial de recursos do que seu predecessor, apesar de incorporar ainda mais alunos (CALLEGARI, 2007). Em vez dos 15% das fontes tributárias do Fundef, asseguraram- se desta feita 20% dos mesmos recursos de impostos, acrescidos ainda daqueles oriundos de tributos antes não previstos: Imposto sobre Veículos Automotores (IPVA), inclusive sua cota-parte municipal, Imposto sobre Causa Mortis e Doações (ITCMD), cota-parte municipal do Imposto Territorial Rural (ITR), um tributo federal, e cota-parte estadual de novos impostos que a União porventura viesse a instituir. Criou-se uma regra de transição de três anos para o atingimento desses 20%, aumentando-se gradativamente o percentual compromissado. Com vistas a assegurar valores mínimos por aluno definidos nacionalmente, a União deveria suplementar os recursos dos governos subnacionais de forma crescente, iniciando em 2 bilhões de reais no primeiro ano, chegando a 4,5 bilhões de reais no terceiro (corrigidos monetariamente). Após isso, assegurar-se-ia pelo menos 10% do valor que os governos subnacionais destinassem ao Fundeb, o que de fato se concretizou (CALLEGARI, 2015). Criava-se ainda a possibilidade de que, se necessário, a União aportaria ao fundo valores não previstos nos seus recursos vinculados obrigatoriamente à educação. Isso foi garantido por se terem limitado os aportes ao Fundeb em no máximo 30% das verbas federais vinculadas constitucionalmente.

Três anos depois da emenda do Fundeb, a Emenda no 59/2009 reforçou a política anterior, estipulando que os Planos Nacionais de Educação teriam vigência de dez anos e os recursos voltados a assegurar sua implementação deveriam ter como base uma proporção do PIB (sem, entretanto, especificá-la). Além disso, por três anos os recursos retirados da educação pela Desvinculação das Receitas da União (DRU) seriam gradativamente zerados, aumentando assim a verba disponível.

Apesar desses ganhos assegurados ao financiamento da educação, estudiosos do tema são bastante críticos quanto ao fato de que os recursos adicionais aportados ao sistema foram insuficientes nas duas fases da política (CALLEGARI, 2015, 2007; DAVIES, 2006; SOUZA; GOUVEIA, 2015), mais promovendo uma redistribuição em que alguns municípios perderam para outros ganharem, do que propriamente melhorando as condições de financiamento educacional. Entre esses estudiosos também há críticas relativas ao fato de que os fundos têm prazo para terminar (PINTO, 2007). Entretanto, esse talvez não seja um defeito, mas uma qualidade da política, já que permite o seu ajuste e aprimoramento periódico. A crítica é compreensível, porém, tendo em vista a preocupação com a estabilidade das fontes de financiamento da educação, que precisam ser repensadas sempre que a política é refeita.