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Estado do Acre Limites municipais

4. DESTINOS DA FARINHA DE CRUZEIRO DO SUL E A PARTICIPAÇÃO LOCAL

Na busca de valorização desta cultura que rege a vida de 10 mil famílias no Vale do Juruá, as políticas e programas do governo do estado e dos municípios do Juruá têm sido voltadas essencialmente para a farinha de Cruzeiro do Sul. O entendimento do que pode valorizar a farinha para alguns produtores passa por mais capital de giro para a cooperativa, para outros passa pela própria vontade do produtor em exigir mais de sua produção, seguindo mais fielmente normas e regras de higiene e, passa também pelo aumento da demanda por mais qualidade advinda do comprador intermediário ou consumidor final.

A Lei Federal 11.326 de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, tem como beneficiários agricultores, pescadores artesanais, extrativistas, aqüicultores, quilombolas, indígenas e silvicultores. Esta lei beneficia diretamente os pequenos produtores do Vale do Juruá, pois esses enquadram-se, em sua grande maioria, no estabelecimento necessário exercido pela família (predominância do trabalho familiar; área não superior a 4 módulos fiscais; renda originária, predominantemente, da exploração agropecuária e não agropecuária do estabelecimento; e residência no estabelecimento ou em local próximo).

A política para agricultura familiar no Brasil hoje contempla algumas das principais reivindicações dos pequenos produtores por sua abrangência de base, sustentada no tripé: 1) assistência técnica e extensão rural; 2) financiamento e seguro da produção; e, 3) agregação de valor e geração de renda. A valorização de determinado produto, tal como a farinha de Cruzeiro do Sul, passa por esse tripé base também, mas ela vai além quando chama para o produtor a responsabilidade e o protagonismo para com a qualidade do produto produzido como resultado de sua identidade ecológica, social e cultural, histórica e de luta. Chama também para a responsabilidade para com o consumidor, que mostra mais consciência e disposição para pagar por um produto que carrega em seu bojo não apenas valores nutricionais, mas ecológicos, sociais e culturais.

Quando a primeira resposta de um produtor para a valorização remete ao acesso à crédito verifica-se uma reivindicação justa, pois segue as regras do mercado, mas esta reivindicação é também caracterizada por uma fragilidade estrutural de desconhecimento das próprias regras deste mercado que prezam pela competitividade e competência. Mas, acima de tudo, esta resposta despreza e não valoriza o diferencial inerente aos valores presentes na vida cotidiana de produtores rurais e extrativistas da Amazônia. Valores esses de luta histórica, solidariedade, respeito identitário e auto-estima.

O despreparo para uma inserção de mercado para além do local e regional é evidente quando a noção destino do produto é para a grande maioria dos entrevistados desconhecida: “a farinha vai para o mercado” ou alguma noção de mercado para além de Cruzeiro do Sul: “no período invernoso vai para Manaus e Porto Velho, no verão vai para

Rio Branco”

A noção de cadeia pára no primeiro comprador. E o intermediário, figura tão criticada, é central na movimentação do mercado da farinha e até mesmo por ela ter chegado aos patamares que chegou, em termos de dinamização da economia local, pois mesmo no auge da CASAVAJ, essa chegou a comercializar apenas 12% do total da produção da região, o restante ficava a cargo dos marreteiros ou atravessadores. Esta noção é ainda caracterizada pelo curto prazo, o despreparo para negociação e visão de longo prazo. As condições físico-ambientais da Amazônia somadas às precárias estruturas de escoamento de produção demandam, preparo e coordenação de ações para comercialização e inserção no mercado.

A valorização da Farinha de Cruzeiro do Sul, com os fortes investimentos nas Casas de Farinha, foi um início, mas como instrumento comunitário veio de forma errônea, como já visto anteriormente, as famílias proprietárias das áreas onde as casas foram construídas são consideradas as donas das casas, isso porque a unidade predominante é a familiar. E como foi uma política de cima para baixo, partiu não por reivindicação dos produtores, que acolheram de bom grado, mas por uma necessidade e indução de política socioeconômica do governo do estado. Muitas casas de farinha modernizadas estão servindo de depósito, como averiguado no município de Mâncio Lima, outras perdem-se por falta de manutenção. Em ocasião, uma casa estava com as telas rasgadas e o proprietário relatou que estava aguardando o governo enviar novas telas, e que já estava naquela situação há alguns meses, e aguardaria, provavelmente mais alguns. São vários os exemplos de passividade e baixa auto estima, como nos fala Lessa (2004) e, que servem para reforçar políticas paternalistas e assistencialistas.

Esta política impulsionou a produção de uma farinha com maior qualidade, como anteriormente descrito, despertou também a pró-atividade do coletivo de produtores que alcançou a estrutura de crescimento da CASAVAJ e a pró-atividade em vários produtores individuais que hoje se destacam no cenário local com a produção de uma farinha de excelente qualidade, como é o caso de Dona G.116. Esta produtora relata que soube aproveitar bem as oficinas de Boas Práticas e que essas foram incorporadas a sua produção, que hoje é uma das mais senão a mais conhecida de Cruzeiro do Sul117. E, em termos de valores incorporados à produção vale o depoimento que segue:

“Faço farinha desde que me entendo por gente, fazia junto com meu pai que

aprendeu dos meus avós [nordestinos](...)sempre que perguntam sobre uma boa farinha sempre eu digo, se me pedem maniva eu dou, troco, tem muita gente que não faz, ficam com medo de competição, eu faço...” (Dona G118).

Na ocasião do trabalho de campo, Dona G. cedia o espaço de sua casa de farinha para a realização de um curso com produtores, principalmente mulheres do bairro Macaxeiral I sobre produtos derivados da mandioca. A extensionista que ministrava o curso ensinava como fazer um melhor aproveitamento de subprodutos da mandioca que eram simplesmente descartados pelos produtores de farinha, como a goma e a manipoeira119. Os produtos podem ser farinha fina, bolos, pudins, mingau, farinha d’água, dentre outros. Os participantes dos cursos demonstraram grande interesse em agregar valor nutritivo e aprender receitas de derivados da mandioca. Em relação ao objeto deste estudo o testemunho dos participantes pode ser considerado como um despertar de novas possibilidades de uso e inserção na vida cotidiana, acrescentando pitadas de renovação a um cenário, até então considerado desalentador em termos de consideração da farinha como produto da agrobiodiversidade e mantenedor de diversidade social e biológica120.

Importantes são as iniciativas individuais do trabalho de valorização da Farinha de Cruzeiro do Sul e as múltiplas oportunidades que a mandioca oferece enquanto produto 116

Dona G. venceu o concurso de melhor produtora de Farinha de Cruzeiro do Sul e atualmente, sua farinha é uma das poucas que alcança o preço de R$80/saca.

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A produção de Dona G. já foi e continua servindo de referência para estudos técnicos da Embrapa Acre (ver Souza, 2006; Reis et al 2006; Leite et al, 2006; Souza, 2005).

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Dona G. tem 47 anos e sua aparência física exibe força e fibra, é matriarca absoluta em sua família, comandando todo o processo de produção da farinha, antes mesmo da decisão da terra onde o roçado será cultivado, quando precisam sub-locar terras para cultivo. Ela planeja locais de roças, quantidades de manivas, alugueis de roça, renda, gastos com produção e transporte, todas as decisões passam ou são dela.

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“manipoeira serve de adubo para a própria roça”. Depoimentos de produtores atestam que testemunharam roça “aguada” com manipoeira pode crescer e chegar ao ponto de colheita com sete meses.

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Enquanto alguns produtores souberam aproveitar e buscavam organizar mais cursos, como no caso de Dona G., outros traziam o lamento em primeiro lugar, “tem que ter um incentivo do governo para a gente começar a aproveitar essas coisas que a gente joga fora(...).”(Produtor 1)

da agrobiodiversidade121. Contudo, um trabalho efetivo de valorização precisa necessariamente passar por processos coletivos de envolvimento, participação e desejo comum. Este fato tem sido demonstrado por inúmeras iniciativas ao redor do mundo de valorização de produtos oriundos de comunidades de pequenos produtores rurais, pescadores artesanais, indígenas, extrativistas seja por agregação de valores ambientais, ou por valores de identidade cultural e territorial ao produto (RANABOLDO, 2006; FLORES, 2006).

Para o alcance da vivência coletiva na valorização de produtos regionais e locais, alguns pressupostos necessitam ser vencidos, dentre eles a participação ativa daqueles que estão diretamente envolvidos com processos de concepção, produção e identificação do produto como resultado de sua trajetória histórica, social, ambiental e cultural. O Ministério da Agricultura, através de Coordenação de Incentivo à Indicação Geográfica empreendeu um amplo diagnóstico nas cinco regiões do país (ver capítulos 2 e 6) afim de identificar produtos potenciais passíveis de reconhecimento por indicação geográfica e dentre os produtos da região norte estavam a Farinha de Cruzeiro do Sul e a Castanha. Os técnicos do MAPA, tanto em Brasília, quanto na Superintendência do estado do Acre relataram que os maiores impedimentos estão relacionados a questões sanitárias. O técnico do Acre, responsável pelo levantamento no estado, ressaltou a fragilidade das organizações locais, como agravante ao alcance da qualidade sanitária, pois esta envolve padrões comportamentais de difícil mudança. A possibilidade de Indicação Geográfica à Farinha de Cruzeiro do Sul em novembro de 2007 era considerada pelo MAPA/AC alternativa pouco provável.

Vale trazer à luz o entendimento de qualidade para o MAPA que a entende como sanitária/higiênica e de segurança alimentar focada na saúde humana. Se a normatização e padronização forem aplicadas com rigidez de normas, às condições de produção para a maioria dos produtores de farinha de Cruzeiro do Sul, poderão, como indicam Sarr e Cormier-Salem (2007), colocar em risco a preciosidade ou qualidade intrínseca da farinha. Os resultados poderão causar mudanças nos modos de aprendizado e criar discrepâncias entre a inovação e criatividade local que originou a especificidade da farinha e necessidade de seguir normas e padrões exogenamente estabelecidos.

As possibilidades que o instrumento de Indicação Geográfica pode trazer em termos de benefícios para manutenção de modos tradicionais de produção e valorização 121

Em comemoração aos 30 anos de pesquisa da mandioca no Acre, o pesquisador Amauri Siviero da Embrapa relata a possibilidade de desenvolvimento de centenas de produtos a base de mandioca.

de produtos locais, poderão concretizar-se na medida que o conceito de qualidade seja ampliado pelo MAPA de forma a abarcar processos de construção cultural, de identidades coletivas e ambientais. O trabalho conjunto de pastas para a construção desta ampliação, como por exemplo, o Ministério da Cultura e o Instituto de Patrimônio Histórico Artístico e Nacional que vem valorizando processos culturais e produtos por meio do reconhecimento e registro de bens culturais de natureza imaterial e patrimônios materiais.

Os caminhos possíveis para a valorização da farinha de Cruzeiro do Sul e o reconhecimento deste produto tão essencial à vida de milhares de pessoas são diversos, e alguns deles já trilhados pelo governo do estado, como os fortes investimentos em infra-estrutura e nas organizações locais. Ressalta-se que a forte injeção de crédito financeiro em organizações locais ainda fragilizadas ou despreparadas para o recebimento de montantes volumosos, indica que estratégias para valorização via disponibilização de recursos devem ser melhor planejadas de forma a incentivar a autonomia, o empoderamento e a continuidade de tais organizações. De que vale uma grande central de cooperativas ou associações que ascende velozmente, como foi o caso da CASAVAJ, mas que não consegue, por falta de capacidade técnica e administrativa manter os passos, com ‘pernas’ fortes o suficiente para caminhar de forma autônoma e legítima?

O importante dado histórico de persistência e perpetuação da cultura alimentar da farinha na região por mais de um século aponta para a característica de segurança alimentar. Tal qualidade, assim como destacam Takagi & Belik (2007), demanda políticas específicas que incorporem a segurança alimentar per se, a demanda de atendimento de gastos sociais e a resolução de problemas imediatos, como a própria necessidade alimentar, e a visão de longo prazo. É sabido que em diversas ocasiões as políticas que atendem às demandas ligadas à segurança alimentar caem no assistencialismo e no paternalismo político, para o Vale do Juruá o cenário não é diferente. O necessário envolvimento do governo do estado em praticamente todas as iniciativas produtivas122 demonstra a dificuldade de chegar à autonomia e obter uma capacidade de resposta das organizações que correspondam ao empoderamento, à continuidade e ao caminhar com as próprias pernas.

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Durante as entrevistas com produtores, servidores do governo e representantes dos movimentos sociais, ficou clara a forte dependência de praticamente todos os segmentos da sociedade no envolvimento do governo do estado em toda e qualquer ação que se almeje realizar. “Se o governo não estiver envolvido, não vai dar certo, nem adianta tentar” como sintetizou um representante do movimento social em Rio Branco.

Neste sentido, vale destacar o estudo sobre a participação da sociedade civil e da governança em espaços de definição de políticas públicas para o estado do Acre. Meneses Filho (2008) traz à luz o estado da organização da sociedade civil no Juruá quando entrevista representantes de algumas organizações da região123, que expressam, de forma generalizada, o sentimento de pouco envolvimento da região e suas organizações de base civil com a formulação de políticas públicas que afetam diretamente o Vale do Juruá. Na visão das organizações,

“a consulta do Governo à sociedade local está muito mais focada no ajuste da implementação de programas governamentais do que na formulação de políticas para a região. O sentimento é que as decisões são tomadas em Rio Branco e informadas em seminário e encontros à sociedade local(...)As organizações do Juruá tem uma participação consultiva para a execução de programas e não de proposição e elaboração das políticas e programas. As organizações vinculadas aos trabalhadores rurais mencionam que os únicos programas que hoje discutem com o Governo são o Programa Luz para Todos e o de melhoria dos ramais(...) A atitude da sociedade nos momentos de discussão com o Governo é reivindicatória, colocando prioridades e necessidades. No entanto, os entrevistados mencionam que os programas, quando implementados, diferem do que foi sugerido. A implementação dos programas pouco envolve a Sociedade Civil sendo as prefeituras as executoras, as quais possuem filtros políticos e a ineficiência típica do serviço público. As organizações de trabalhadores rurais citam que, quando estes programas foram canalizados via organizações e não via prefeituras, tiveram resultados muito melhores a custos menores.” (MENESES FILHO, 2008:35)

Os achados da pesquisa acima são também corroborados pelos depoimentos coletados neste estudo com representantes da COOPERFARINHA, do STR/CZS e técnicos de diversos órgãos governamentais (MAPA/AC, SEAPROF). O que este estudo também destaca é a alta dependência das organizações locais de produtores nas ações dos governos estadual ou municipal para o bom desempenho dos programas por eles iniciados, destacando que as duas cooperativas de reconhecimento na região se iniciaram com forte apoio do governo estadual. Esta dependência pode ser devida a vários fatores, dentre eles o já mencionado paternalismo exacerbado e a baixa auto- estima para modificar situações adversas, tais características predominam na região desde tempos coloniais.

O esforço do governo estadual em realizar ações que poderiam levar os produtores de farinha a patamares econômicos mais formais, desconsiderou a integração 123

“Análise da participação da sociedade civil e da governança de cinco espaços de definição de políticas Públicas do Estado do Acre”. Foram entrevistados representantes de entidades no Vale do Juruá que também contribuíram para esta pesquisa, tais como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cruzeiro do Sul e Mancio Lima, Pesacre Vale do Juruá, GTA- Acre e CASAVAJ, ressaltando que quando o estudo foi feito a CASAVAJ ainda não havia declarado insolvência. Os principais espaços citados para participação da sociedade civil em políticas públicas no Juruá foram: o Colegiado do Território Rural do Alto Juruá; Fórum de Integração Binacional Ucaially-Acre; Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural do Município de Cruzeiro do Sul; Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural do Município de Mâncio Lima; Conselho Consultivo do Parque Nacional Serra do Divisor; Fórum da Agenda 21 do município de Mâncio Lima; e Fórum Permanente de Desenvolvimento Sustentável do Alto Juruá.