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CAPÍTULO 2 O MERCADO: PERSPECTIVAS DE VALORIZAÇÃO DE PRODUTOS E PRODUTORES LOCAIS.

3. OUTRA ECONOMIA

3.1 ECONOMIA SOLIDÁRIA

A economia solidária vem crescendo no mundo e no Brasil. Sua base de princípios e contexto de luta histórica é de grande valia para o objeto deste trabalho, pois contempla uma nova aproximação sobre a economia para além das bases meramente capitalistas. A economia solidária – ES advoga e trabalha por uma base mais justa, solidária, coletiva da produção e distribuição de benefícios, dispensando atenção primordial aos interesses de melhoria de qualidade de vida dos trabalhadores por eles mesmos. Os empreendimentos solidários, como veremos, têm ganhado espaço no mercado por justamente considerar o coletivo, incentivar a colaboração ao invés da competição.

Para o caso dos produtos da Amazônia, a economia solidária e seus princípios são de suma importância, pois esta rejeita propostas de mercantilização das pessoas, dos produtores, e da natureza às custas da espoliação e degradação de sistemas naturais. A intenção de trazer à luz esta nova forma de economia é contribuir para pensar alternativas de valorização dos produtos locais da Amazônia. As formas que a economia solidária pode tomar não invalidam ou impedem nenhuma das opções, como as certificações, anteriormente descritas, ao contrário, ela acrescenta e enriquece as configurações possíveis para a valorização. Desta forma, rever o contexto histórico de surgimento da economia solidária, definições vigentes, princípios norteadores e caracterização de empreendimentos solidários66.

A economia solidária tem sua origem, segundo Singer (2005) nos primórdios do capitalismo industrial, início do século XIX, como resposta à pobreza e ao desemprego que operários foram sujeitados pela difusão ‘desregulamentadas’ das máquinas- ferramenta e do motor a vapor. Surgiram as primeiras cooperativas que de primeiro funcionaram como tentativas por parte dos trabalhadores de recuperar trabalho e 66

Empreendimentos de Economia Solidária são sociedades que desempenham atividades econômicas

cuja gestão é exercida democraticamente pelos trabalhadores que dela participam. Os empreendimentos de economia solidária podem ser divididos em empreendimentos de autogestão e empresas de autogestão. Seus atos constitutivos devem prever a existência de mecanismos democráticos de gestão e definição em assembléia de questões como: política de remuneração, política disciplinar, política de saúde e previdência, formas de organização da produção e destinação solidária dos resultados (ANTEAG, 2005).

autonomia econômica, aproveitando as forças produtivas. A estrutura seguia os valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia, que podem ser sintetizados na ideologia do socialismo. No empreendimento solidário, de acordo com Singer, não existe a separação entre trabalho e posse dos meios de produção, o que vai contra a base do capitalismo. “O capital da empresa solidária é possuído por aqueles que nela trabalham e apenas por eles. Trabalho e capital estão fundidos porque todos os trabalhadores são proprietários da empresa e não há proprietários que não trabalhem na empresa” (Ibid, p.83).

Os sindicatos e empreendimentos cooperativos se estruturaram para lutar pela conquista e defesa dos direitos dos trabalhadores assalariados, dos empreendimentos cooperativos, da autogestão67 e como modelo alternativo à exploração do trabalho assalariado. A ES ressurge atualmente como resgate da luta histórica dos trabalhadores em defesa do trabalho humano, e como uma alternativa de re-organização das relações sociais. Portanto, reconhece formas comunitárias, artesanais, individuais, familiares, cooperativas e coletivas de trabalho. Essas formas, consideradas pelo capitalismo como ‘atrasadas’ estão sendo ampliadas, pois a crise do trabalho assalariado tem desnudado a promessa do capitalismo de transformar tudo e todos em mercadorias de oferta e consumo do mercado competitivo. Esta crise tem feito com que milhões de trabalhadores percam ou sejam excluídos da possibilidade de emprego e segurança de direitos trabalhistas (FBES, 2005).

No Brasil, mais de 50% dos trabalhadores vivem e sobrevivem à margem do setor capitalista hegemônico, onde as relações assalariadas protegidas simplesmente não existem. De acordo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (2005, 2008), o que era para ser absorvido pelo capitalismo, passa a ser um desafio cuja superação somente poderá ser enfrentada por um movimento que reúna todas essas formas de trabalho e que desenvolva um projeto alternativo de ES. São diversas as denominações - economia solidária, economia social, socioeconomia solidária, humanoeconomia, economia popular e solidária, economia de proximidade, economia de comunhão - que têm feito emergir práticas de relações econômicas e sociais que proporcionam a melhoria da qualidade de vida e a sobrevivência de milhares de pessoas não incluídas no sistema formal (Ibid).

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A autogestão subentende a existência de autonomia e pressupõe capacitação para a administração coletiva do negócio: autonomia tanto nas unidades produtivas quanto em sua instancia representativa, isto é, sem dependência dos órgão governamentais ou para-estatais. A autogestão deve garantir o direito à informação e democracia nas decisões; democracia não apenas como voto ou mera representação, mas principalmente como partilha de poder e controle da vida do empreendimento coletivo. Portanto a importância de educar para a autogestão significa promover autonomia e inteligência coletiva dos trabalhadores (ANTEAG, 2005).

Para a Secretaria Nacional de Economia Solidária - SENAES (2006, 2008), a economia solidária se apresenta como uma alternativa inovadora de geração de trabalho e renda, e como resposta a favor da inclusão social. Assim o faz, por compreender uma multiplicidade de práticas econômicas e sociais organizadas em cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogetionárias68, redes de cooperação; e, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, comercio justo, trocas e consumo solidário.

A Economia Solidária percebe o ser humano como central na organização da sociedade (ANTEAG, 2005). Na economia solidária a produção, a venda, a compra, e a troca são feitas de maneira a incentivar o bem coletivo, fundada em relações de trocas justas, inspiradas em valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica; evitando assim a exploração e a acumulação privada de riqueza e capital (FBES, 2005; SENAES, 2008). Na definição do FBES,

A Economia Solidária constitui o fundamento de uma globalização humanizadora, de um desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a satisfação racional das necessidades de cada um e de todos os cidadãos da Terra seguindo um caminho intergeracional de desenvolvimento sustentável na qualidade de sua vida (Ibid, s/p).

Destaca-se alguns princípios gerais da economia solidária (FBES, 2005):

- valorização do social do trabalho humano;

- satisfação plena das necessidades de todos com alinhamento do eixo da criatividade tecnológica e da atividade econômica;

- reconhecimento do lugar da mulher e do feminino numa economia baseada na solidariedade;

- busca constante de uma relação que preze pelo intercambio respeitoso com a natureza, valores de cooperação e solidariedade;

- o valor central da ES é o trabalho, o saber e a criatividade humanos e não o capital-dinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas.

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Os Empreendimentos Autogestionários se caracterizam por serem aqueles constituídos através de projetos sociais realizados em comunidades periféricas, não sendo resultado de uma atividade econômica anterior, como é o caso das empresas de autogestão. As Empresas de Autogestão, por sua vez, são aquelas que nascem do fracasso de um negócio anterior e, portanto, pressupõem a existência de uma atividade econômica já organizada que passa a ser comandada pelos trabalhadores, que delas já faziam parte como empregados celetistas. As Empresas de Autogestão desempenham atividade industrial, de pequeno, médio e grande porte, geralmente 2 constituídas por mais de 20 trabalhadores, suas necessidades em termos de marco jurídico, são diferentes das dos empreendimentos autogestionários, os quais geralmente desempenham atividades de serviço ou comércio, como, por exemplo, coleta de materiais recicláveis, artesanato, alimentação, limpeza, jardinagem, agricultura urbana, confecção, entre outros. Alguns dos princípios autogestionários são: tomadas de decisões democráticas e coletivas, transparência administrativa, solidariedade e fraternidade, trabalho mútuo, valorização das pessoas e cidadania (ANTEAG, 2005).

E alguns dos princípios específicos prezam: - por um sistema de finanças solidárias69

- pelo desenvolvimento de Cadeias Produtivas Solidárias70

- pela construção de uma Política da Economia Solidária num Estado Democrático71

A ANTEAG (2005) reconhece que o desenvolvimento da ES e seus princípios envolve um processo lento de educação, formação, capacitação e qualificação, tendo que ser, necessariamente, permanente e integral. Processo este compreendido como a efetiva interiorização dos valores e regras almejados; e, que é gradual porque o resgate de valores éticos significa a construção de uma nova ética contextualizada no contemporâneo. A própria definição do que venha ser um ambiente justo, ético e solidário de trocas demanda reflexão para sua construção, pois qualquer tentativa de engessar tais noções não incorporará os valores que a economia solidária deseja.

Os empreendimentos econômicos solidários são: 1) Organizações coletivas, suprafamiliares, tais como associações, coopertativas, empresas autogestionearias,

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Em nível local, micro, territorial: os bancos cooperativos, os bancos éticos, as cooperativas de crédito, as instituições de microcrédito solidário e os empreendimentos mutuários, todos com o objetivo de financiar seus membros e não concentrar lucros através dos altos juros, são componentes importantes do sistema socioeconômico solidário, favorecendo o acesso popular ao crédito baseados nas suas próprias poupanças. Em nível nacional, macro, estrutural: a descentralização responsável das moedas circulantes nacionais e o estímulo ao comércio justo e solidário utilizando moedas comunitárias; o conseqüente empoderamento financeiro das comunidades; o controle e a regulação dos fluxos financeiros para que cumpram seu papel de meio e não de finalidade da atividade econômica; a imposição de limites às taxas de juros e aos lucros extraordinários de base monopólica, o controle público da taxa de câmbio e a emissão responsável de moeda nacional para evitar toda atividade especulativa e defender a soberania do povo sobre seu próprio mercado (FBES, 2005).

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A ES permite articular o consumo solidário com a produção, a comercialização e as finanças. Assim cada agente econômico deve buscar contribuir para o progresso próprio e do conjunto, valorizando as vantagens cooperativas, a eficiência sistêmica e promovendo o desenvolvimento de redes de comércio justo; A ES propõe a atividade econômica e social enraizada no seu contexto mais imediato, e tem a territorialidade e

o desenvolvimento local como marcos de referência, mantendo vínculos de fortalecimento com redes da

cadeia produtiva (produção, comercialização e consumo) espalhadas por diversos países, com base em princípios éticos, solidários e sustentáveis; A ES é um projeto de desenvolvimento destinado a promover as pessoas e coletividades sociais a sujeito dos meios, recursos e ferramentas de produzir e distribuir as riquezas, visando a suficiência em resposta às necessidades de todos e o desenvolvimento genuinamente sustentável(FBES, 2005).

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A ES é também um projeto de desenvolvimento integral que visa a sustentabilidade, a justiça econômica, social, cultural e ambiental e a democracia participativa. Desta forma, a ES estimula a formação de alianças estratégicas entre organizações populares para o exercício pleno e ativo dos direitos e responsabilidades da cidadania, exercendo sua soberania por meio da democracia e da gestão participativa. A ES preconiza um Estado democraticamente forte, empoderado a partir da própria sociedade e colocado ao serviço dela, transparente e fidedigno, capaz de orquestrar a diversidade que a constitui e de zelar pela justiça social e pela realização dos direitos e das responsabilidades cidadãs de cada um e de todos. O valor central é a soberania nacional num contexto de interação respeitosa com a soberania de outras nações. O Estado democraticamente forte é capaz de promover, mediante do diálogo com a Sociedade, políticas públicas que fortalecem a democracia participativa, a democratização dos fundos públicos e dos benefícios do desenvolvimento(FBES, 2005).

clubes de trocas, redes, etc. 2) Os participantes ou sócios são trabalhadores dos meios urbano ou rural que exercem coletivamente a gestão das atividades, assim como a alocação dos resultados; 3) São organizações permanentes, incluindo os empreendimentos que estão em funcionamento e as que estão em processo de implantação, com o grupo de participantes constituído e as atividades econômicas definidas; 4) Podem dispor ou não de um registro legal, prevalecendo a existência real ou a vida regular da organização; 5) Realizam atividades econômicas de produção de bens, prestação de serviços, de crédito, finanças solidárias, comércio justo e consumo solidário; 6) São organizações singulares e complexas, consideradas de diferentes graus ou níveis, desde que cumpridas as características acima identificadas. As organizações econômicas complexas são as centrais de associação ou de cooperativas, complexos cooperativos, redes de empreendimentos e similares (FBES, 2005; SENAES, 2008).

O Fórum Brasileiro de Economia Solidária é a instância-rede resultante de um processo histórico que culminou no I Fórum Social Mundial. A partir de tal momento foi constituído o Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária72, composto de redes e organizações que agregavam práticas associativas do segmento popular solidário, rural, urbano, de igrejas, de base sindical, de políticas sociais, redes de inovação entre outras. Em 2003 o GT evoluiu para a forma definitiva do Fórum Brasileiro de Economia Solidária durante a realização da III Plenária Brasileira de Economia Solidária, em um processo que mobilizou 17 estados e centenas de pessoas incumbidas de articular as bases para uma política nacional de ES. O FBES conta atualmente com uma estrutura de coordenação nacional, executiva, que se articula com os fóruns estaduais de economia solidária e entidades e redes nacionais de assessoria (FBES, 2005). O FBES participa ativamente com a SENAES73, apresentando demandas, sugerindo políticas e acompanhando a execução das políticas públicas de economia solidária. A articulação entre essas suas instâncias tem sido determinante para o fortalecimento dos empreendimentos e políticas de ES no país.

Fazem parte da organização e funcionamento do FBES três segmentos do campo da ES: os próprios empreendimento da economia solidária, entidades de assessoria ou 72

As entidades e redes nacionais que em momentos e níveis diferentes participavam do GT-Brasileiro eram: Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária (RBSES); Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS); Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (FASE); Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas em Autogestão (ANTEAG); Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas (IBASE); Cáritas Brasileira; Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST/CONCRAB); Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (Rede ITCPs); Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS/CUT); UNITRABALHO; Associação Brasileira de Instituições de Micro-Crédito (ABICRED); e alguns gestores públicos que futuramente constituíram a Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária (FBES, 2005).

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A Secretaria Nacional de Economia Solidária foi criada no mesmo momento de criação do FBES, em junho de 2003 (SENAES, 2008).

fomento (aquelas que atuam diretamente na capacitação, assessoria, incubação, pesquisa, acompanhamento, assistência técnica e organizativa) e gestores públicos que elabora, executam, implementam ou coordenam políticas de ES em prefeituras e governos estaduais (Ibid).

Os princípios e a forma como o FBES tem se organizado servem de referência para alternativas e incentivos à empreendimentos locais da Amazônia que visam a valorização de produtores, modos de produção e produtos. A necessidade de capacitação e assessoria técnica, administrativa e organizacional é um grande gargalo a ser vencido por produtores locais, como será evidenciado nos capítulos 3, 4 e 5. Assim, poderá ser demonstrado em corroboração com o que aponta Cattani (2003) que a economia solidária enfrenta o desafio de demarcar precisamente as alternativas possíveis e as práticas de empreendimentos qualificados como solidários. E, mais importante, as alternativas propostas para os excluídos e pobres do sistema capitalista convencional precisam proporcionar avanços em todos os domínios (social, ecológico, cultural, administrativo, político, etc), de forma a recuperar destinos mais generosos, honrosos e responsáveis aos segmentos envolvidos da sociedade.

Empreendimentos da economia solidária no Brasil estão também ligados a grupos de trabalhadores com alguma organização social mais fortalecida ou ainda dependentes de aportes exógenos para capacitação, autogestão, organização, planejamento, continuidade e para a própria comercialização. A construção da autonomia de empreendimentos ainda é lenta e gradual, com riscos de desmobilização e não continuidade.

Um alerta importante trazido por Sampaio & Flores (2002), no tratamento do comércio ético e solidário, trata do perigo de classificação desta nova forma de pensar o mercado, como apenas mais um nicho de mercado. Os autores apontam que tal classificação tende a evitar mudanças no estado das coisas, e reforça o oportunismo capitalista em tirar proveito de manifestações contemporâneas, tendo como referência a criação de novas tribos virtuais de amplitude global, conceituado em algo como “solidário

fashion”. A redução desta nova concepção política-econômica a uma mera dimensão

voltada a grupos-alvo de consumidores segue o mesmo perigo. A economia solidária ou o comércio ético e solidário deve ser percebida como uma visão, um referencial a ser alcançado, pois trás em sua essência pontencial transformador de processos mercadológicos injustos, desiguais, opressores e alienadores.