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CAPÍTULO 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO

3. O PAPEL DO ESTADO: O NACIONAL FRENTE AO REGIONAL E AO LOCAL.

3.2 O ESTADO E O LOCAL: RELAÇÃO, REDEFINIÇÃO, RE-SIGNIFICAÇÃO E VALORIZAÇÃO LOCAL

Este cenário mostra a fraqueza adivinda do processo histórico político e econômico a refletir a crise que o Estado contemporâneo atravessa. Não se pode falar dos desafios locais enfrentados pelas políticas acima descritas sem abordar o fator limitante de sua implementação: a crise do Estado. Importa trazer à reflexão à revisão feita por Castells (2001), que propõe, frente ao cenário de impotência estatal, a reconstrução da capacidade de intervenção do Estado por meio do Estado-rede.

No Estado-rede a capacidade de ação do Estado é mantida frente aos processos de globalização que enfraquecem a soberania nacional. A solução está em uma relegitimação por meio da descentralização. O Estado-rede se caracteriza por difundir o poder de centro para o poder de rede, horizontalizando as relações, neste caso, as redes de produção local são consideradas como pontos nodais dessas relações. O Estado-rede compartilha autoridade, pois de acordo com a definição de rede, não existem centros e, sim, nós de diferentes dimensões e relações internodais com intensidade e simetrias distintas. Desta forma, o Estado se redimensiona perante o global; o local é renovado; e, neste espaço perfaz-se uma capacidade de intervenção mais eficaz. Segundo o autor, o Estado-rede parece ser o mais adequado no processo de complexidade crescente das relações entre produções globais, nacionais e locais, da economia com a sociedade e a política, na era da informação. “Estado-rede é o Estado da era da informação, a política que permite a gestão cotidiana da tensão entre o local e o global” (Ibid, p. 165). Esta tensão não pode ser ignorada nem romanceada, ela existe e permeia as relações aqui descritas.

A análise vista pelo prisma da relação local-regional-nacional-global é de extrema importância no estudo das relações de produção local valorizadas, principalmente, por consumidores e clientela global. Dado este contexto, Castells aponta oito princípios para o funcionamento-administrativo do Estado-rede, que contribuem para os desafios aqui mencionados. Os relacionados à implementação de canais de valorização e de gestão política e econômica, que estão fortemente imbricados entre si (2001:165-168):

- Subsidiariedade. A gestão administrativa deve situar-se no âmbito mais descentralizado possível, para que o desempenho ocorra de maneira eficaz. O Estado deve assumir tudo aquilo que seja capaz de executar e transferir poder somente às instituições supranacionais quando for necessário. Ponto fundamental deste princípio é a descentralização de poder e recursos aos níveis mais próximos dos cidadãos e seus

problemas. O Estado deve ser substituído pela sociedade em tudo que não for necessário sua presença. Esta é a conveniência da privatização de toda a atividade produtiva que o Estado não tenha vantagem comparativa. Em troca, o Estado assume a responsabilidade da redistribuição da riqueza, captação mediante impostos, de recursos gerados pelo setor privado, utilizando-os para fins de convivência comum, o que inclui a correção gradual das desigualdades sociais estruturais. O Estado brasileiro é o grande subsidiador de processos produtivos vigentes, grandes e pequenos, dadas devidas proporções de escala e benefícios. O subsídio, no contexto aqui almejado, deve acontecer de maneira a prover o básico para a autonomia responsabilizada. A descentralização do Estado brasileiro vem ocorrendo gradualmente e os processo indicam que o caminho ainda é longo.

- Flexibilidade. Este princípio demanda que o Estado passe de decretador para um Estado negociador, e de um Estado controlador a um Estado interventor. Um Estado que consiga flexibilizar seus contextos culturais, sociais e ambientais distintos. Que não apenas passe uma régua padrão a ser seguida e, considere que sua dimensão continental necessita da flexibilidade em ações e políticas para valorização de processos produtivos, com especial atenção aos pequenos.

- Coordenação. Aqui estão incluídas formas de hierarquia, onde as regras de subordinação são mantidas por meios democraticamente estabelecidos. Para Castells “sem coordenação, a extrema flexibilidade e a descentralização acaba dissolvendo o Estado, debilitando, portanto, os elementos que o integram e desarmando os cidadãos diante dos fluxos” (Ibid, p.166). A coordenação de ações indica também atenção aos programas iniciados, seus resultados e expectativas de continuidade. A coordenação está diretamente ligada ao planejamento de curto, médio e longo prazo e ao monitoramento.

- Participação cidadã. Este princípio está diretamente associado à legitimidade, na qual as intervenções estratégicas do Estado são entendidas e aceitas pelos cidadãos. Segundo Castells, “sem a participação, a democracia irá se esvaziando de conteúdo para amplos setores da população, sobretudo para os ‘sem voz’ cuja carência de recursos materiais e culturais, na ausência de processos participativos, os condena (sic) a serem cúmplices ou enraivecidos” (Ibid, p.167). Uma crítica a ser atribuída a esta afirmação de Castells é que essas populações possuem sim recursos culturais, esses muitas vezes são incompreendidos por aqueles que os classificam como sem-cultura ou sem-educação para a participação. Isto é um equívoco. O que é necessário é o trabalho com os modos culturais e sociais existentes, este trabalho demanda tempo e investigação histórica para

o reconhecimento dos modos e visões de mundo de determinada localidade. A participação, assim, poderá ser efetivada, a partir do reconhecimento dos “sem voz” como sujeitos históricos e culturais.

- Transparência administrativa. Ainda que este princípio seja uma antiga aspiração, ele tem se mostrado com nova intensidade perante a nova administração. Castells afirma que, “numa economia cada vez mais invadida por máfias e em uma política cada vez mais vulnerável à corrupção, a limpeza administrativa é, provavelmente, o princípio de governo mais importante” (Ibid, p.167). Desta forma se faz necessário pensar em mecanismos capazes de assegurar o controle da corrupção e do nepotismo, daí a importância da gestão transparente perante os cidadãos, dos meios de comunicação e justiça. Os controles internos não são suficientes; são necessários controles externos, ancorados na sociedade. Neste princípio está o direito de acesso a informações e dados da atuação administrativa, criando um novo vínculo entre o Estado e a sociedade.

- Modernização tecnológica. No Estado-rede verifica-se o uso continuado de redes informáticas e de telecomunicação avançadas, não necessariamente para resolver os problemas da gestão, mas para uma administração mais ágil, flexível, descentralizada e participativa, onde certo nível de complexidade está munido de um novo sistema tecnológico que possui capacidade para processar informação e disponibilizá-la para a interatividade. O acesso à essa modernização tecnológica requer, conseqüentemente, maior acesso a informação e decisões melhor pautadas.

- Transformação dos agentes da administração. Este princípio está ligado ao desafio já mencionado dos recursos humanos. Através da profissionalização de agentes estatais, fazendo-os competentes e bem valorizados (melhores salários) a administração do Estado se realizará com nova dinâmica. Como Castells aponta, “no núcleo da reforma administrativa existe a necessidade de reformar os administradores. Como? O Estado que fará a verdadeira revolução política será aquele que se atreva a eliminar (ou limitar extraordinariamente) o funcionalismo” (Ibid, p.168). O autor defende que o Estado deve passar “os funcionários da administração ao estatuto trabalhista privado, com os mesmo direitos e deveres que os demais trabalhadores... somente um setor trabalhista administrativo reduzido, porém bem remunerado, e com elevado nível profissional, poderá realmente transformar a ação do Estado nas novas condições históricas” (Ibid, p.168). Este ponto deve ser considerado com cautela haja vista a magnitude do Estado Brasileiro e sua ausência sentida, principalmente em localidades da Amazônia.

Cabe aqui uma crítica a Castells. Em nome de quem novos agentes administradores agirão na busca de integração, desenvolvimento (em suas diversas feições) e conservação em ambiente de heterogeneidade ecológica, cultural, social, econômica e política? A visão extremamente administrativa, como se governar fosse empreender um business, é perigosa àqueles que para o Estado trabalham. O Estado não é um negócio, por mais que alguns assim o pensem e dele assim o façam. A boa governança entra em cena e pede uma visão para além do mero funcionalismo administrativo. Talvez aí realmente valha a mudança assertiva na noção de funcionalismo para a de servidor do Estado Brasileiro. Este ponto é controverso e ainda sem consenso entre pensadores do Estado e suas políticas estratégicas e de intervenção para coesão e planejamento. Contudo, registra-se o fortalecimento que o aparelho estatal tem recebido pelo atual governo (2003-2010), com abertura de novas vagas através de concursos públicos e aumento de salários aos servidores. Esta renovação fundamental para uma maior eficácia estatal, inclusive para a possibilidade de fortalecer a continuidade e integração de políticas.

- Retroação na gestão. Este princípio permite assegurar os efeitos de aprendizagem e correção de erros. Esta retroação é necessária para toda organização do novo sistema de adaptação, que atua de forma constante ao redor da organização, implicando em grande flexibilidade das regras administrativas e autonomia para os administradores para modificar suas próprias regras, em razão dos resultados e da auto- avaliação. “O princípio da retroação permite às unidades administrativas corrigir seus próprios erros, em um processo de prova, erro e correção, que já se aplica nas empresas mais dinâmicas, mas que ainda se ignora na maior parte das administrações públicas” (Ibid, p.168).

Em complementação a esta contribuição de Castells e aos outros desafios acima descritos estão aqueles propostos por Bursztyn & Bursztyn (2000) a serem superados nos processos de tomada de decisão que integrem desenvolvimento e meio ambiente no Brasil: a consolidação institucional, a sustentabilidade institucional, a própria participação, o co-manejo, a continuidade política, a capacitação de recursos humanos, a responsabilização e a viabilidade econômica. São desafios complexos e complementares, não necessariamente começará em um e terminará em outro, alguns deles têm que ser trabalhados simultaneamente. Os autores também reconhecem a crescente conscientização pública das questões ambientais para um possível desenvolvimento sustentável, considerando que as instituições democráticas brasileiras

estão em processo de maturação e que é possível prever um cenário mais positivo no que tange questões de conservação ambiental.

Os desafios que o Estado Brasileiro tem que enfrentar para superar a falta de envolvimento de sua sociedade com suas políticas públicas gestoras de meio ambiente precisam ser encarados, pois instituições sólidas, flexíveis e democráticas precisam ser reproduzidas no nível local. É evidente que não será somente com exemplos de cima para baixo que o local se movimentará, pois o espaço para soluções originais se potencializa em nível local. Porém, cria incentivo e referência. O local tem autonomia para interagir de baixo para cima com seu Estado. O ponto crucial é que as relações sejam interativas e horizontais.

É preciso considerar no cenário de legitimidade do Estado Brasileiro para com seus cidadãos e conseqüente envolvimento e participação desses em políticas públicas de interesse comum a experiência militar e o Estado de Ditadura que o Brasil viveu de 1964 a 1984. Esse período marcou fortemente a experiência da implantação do processo democrático. A ruptura autoritária, segundo Irigaray (2003), desmobilizou a sociedade e enfraqueceu a cidadania. A longa história colonial e de escravidão do Brasil somada com esses vinte anos de ditadura configuram fatores singulares da experiência Estado-Local no Brasil. A ditadura reforçou o traço top-down das decisões políticas da nação e fragilizou, por conseguinte qualquer movimento bottom-up. A participação efetiva da população brasileira ainda hoje enfrenta a herança dessas barreiras históricas à participação e à inclusão, como se perceberá nos estudos de caso adiante apresentados (capítulos 4 e 5).

As diferentes fisionomias assumidas pelo Estado Brasileiro contribuem para o entendimento do cenário das relações, e ações de decisões que envolvem o Estado e o Local. As diferentes vestes assumidas pelo Estado caracterizam a participação da sociedade, pois contextualizm históricamente o contínuo de sua formação, sua fraca relação com as conseqüências de suas ações, e o continuísmo reforçado da fragmentação política, da pessoalidade, do curto-prazo, da valorização do que aparece e apela como evidenciado a cada processo eleitoral.

É um histórico que pode e deve ser sempre aprofundado no sentido de contribuir para uma reflexão da relação de poder entre o Estado e o Local. Este cenário também demonstra o acima descrito, onde o Estado-nação, hoje, sofre uma crise de legitimidade. O Estado Brasileiro hoje necessita de um esforço extra-singular de poder público para criar mecanismos de estímulo à participação, e ações que se concretizem no sentimento

de inclusão. Onde as pessoas se sintam parte, incluídas nas decisões, interesses e ações. Este fato pode ser constatado em algumas políticas de forte apelo popular para a inclusão e participação empreendidas nos últimos anos. Contudo, as mudanças que têm ocorrido ainda não se substanciaram ao ponto de anular o descrédito ao Estado e suas ações pouco representativas que, em muitas localidades, ainda refletem um clientelismo e coronelismo de roupa nova. O poder legitimador do Estado vem se diluindo no processo histórico Bem-Estar–neoliberalismo. Como, então, considerar as novas dinâmicas de relações políticas, cima-para-baixo e baixo-para-cima? De que forma o Estado e o Local respondem a essa demanda política internacional dado o contexto de desenvolvimento de fora-para-dentro e de cima-para-baixo?

Hall (1984) discute os limites entre o Estado e a sociedade, ressaltando que estes não são fixos, muito pelo contrário estão constantemente mudando. “O público e o privado não são divisões naturais, mas social e historicamente construídas” (1984:21). Seria válido, então, perguntar se existe autonomia do Estado perante a sociedade. O autor inicia a resposta a esta pergunta na descrição da natureza relacional do Estado e suas interações com a sociedade, de regulação, ordem e organização. A opinião pública é apresentada como barômetro do consentimento público ao poder do Estado e, segundo Hall (1984), o consentimento está diretamente ligado à representatividade da sociedade no poder do Estado. O processo político da representatividade é lento, muitas vezes obscuro, arbitrário e sujeito a vontade do representante e não do representado.

Para Hall (Ibid) o consentimento não é necessariamente espontâneo e a sociedade pode ser influenciada a consentir pelo poder do Estado, gerando o consentimento ‘manufaturado’. Este pode levar aos conflitos de interesses que competem e caracterizam as relações do Estado moderno com sua sociedade civil, seus meios de legitimidade e sua busca pela representatividade. Este ponto fundamental pode ser verificado em algumas localidades onde o consentimento por ações do Estado não somente é manufaturado como é ‘conformado’ (ver capítulo 4). Vale lembrar que o processo histórico brasileiro impôs barreiras para a democracia representativa e participativa, gerando hoje consentimentos conformados. Sim, o espaço para resistência existe, e nele qualquer forma de consentimento pode ser questionada. Mas, em nível de localidade, se esse questionamento não for organizado, estará fadado ao conformismo, a mais uma regra seguidora do padrão de cima para baixo.

Outra concepção foi elaborada de forma elucidativa por Sunkel (2001) que analisa a responsabilidade do Estado na formulação estratégica e coordenação de um plano nacional de médio e longo prazo. Assim, é enfatizada a necessidade de fazer com que o

visado e o preparado exerçam real influência em questões sociais e políticas. O autor sugere uma re-visita ao modelo econômico dominante acompanhada das considerações defendidas, de modo a torná-lo mais flexível, criativo e integrador. A reorganização econômica é necessária frente ao processo de democratização e sua sustentabilidade. “As condições econômicas não podem constituir uma estrutura rígida e dogmática, mas podem, sim, impor certos limites à política, de acordo com a eficiência, a criatividade e a responsabilidade com que os políticos e as equipes técnicas promovem o processo de reforma política e econômica” (Ibid, p.192). Desta forma, o desafio oferece uma oportunidade de reorganização da economia e da sociedade em direção ao almejado desenvolvimento democrático sustentável. A criatividade econômica, com destaque para uma outra forma de economia que oportunize a re-organização e a continuidade de processos de conservação da sócio-biodiversidade da Amazônia mostra-se como alternativa viável e, quase que mandatória, a ser seguida com a sustentabilidade enquanto objetivo focal.

É válida também a interpretação oferecida por Sunkel (Ibid) do momento de transição histórica da atualidade, onde pode-se reconhecer que o desenvolvimento social foi sacrificado em favor do crescimento e a irracionalidade do capitalismo justaposta à inviabilidade do socialismo. O autor propõe, ainda, uma concepção mais radical da democracia, uma participação mais ampla e estruturada da sociedade civil, menos estadismo burocrático, mais atendimento aos interesses sociais e mais rigor no controle social. É uma proposição ousada perante os desafios impostos por essa mesma transição histórica e as características decorrentes à nossa democracia representativa. Destaca-se que os desafios quanto à democracia representativa não foram superados e a nova demanda é por uma democracia participativa, processo em que o Poder Público brasileiro ainda não mostrou competência ou maestria.

A representatividade Estado-Local e suas políticas públicas de valorização, participação e envolvimento sociedade com o Estado é de suma pertinência ao objetivo deste trabalho. Como empreender políticas nacionais de valorização e conservação sob as multiplicidades de interesses e ações? Considerando, desta forma, características multi-culturais, condições ambientais distintas, pressões e influências diversas que envolvem o lugar e o campo de atuação do Estado. Como o poder decisório pode satisfazer a esfera nacional-regional-local e internacional? Que caminhos necessários e eficazes o Poder Público deve percorrer para o planejamento e ação contínua, flexível e legítima? Como o poder público pode intervir localmente sem perpetuar o mero

assistencialismo e sim assegurar aprendizagem institucional local, ou seja, sustentação e continuidade?