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O ALTO JURUÁ E FARINHA DE CRUZEIRO DO SUL: POLÍTICAS DE VALORIZAÇÃO DO PRODUTO NO ESTADO ACRE

A versatilidade da mandioca no Brasil, o segundo maior produtor mundial, vai de contextos indígenas localizados a grandes agrobusiness de produção91. Os mais diversos cultivos estão espalhados por todas as regiões do país, concentrando produções no norte e nordeste, com escalas diferenciadas e no sul, principalmente no estado do Paraná, com produção de larga escala. A farinha e a fécula são os principais sub-produtos que geram renda e movimentam a vida de milhares de famílias de pequenos produtores. A mandioca e a farinha são considerados de segurança alimentar, principalmente para populações do norte e nordeste do Brasil. As populações consumidoras incluem um leque sociocultural diverso: povos indígenas, comunidades tradicionais, grupos de assentados e populações urbanas. A farinha é um produto da vida cotidiana, que sustenta, alimenta e não falta nas principais refeições, principalmente das populações caboclas produtoras.

1. AMAZÔNIA MANIHOT : BREVE HISTÓRICO E CONTEXTO

A mandioca é cultivada em diferentes áreas da Amazônia, como em terras baixas e altas, por comunidades indígenas e tradicionais, servindo de alimento para populações urbanas e rurais (EMPERAIRE, 2005). Variedades de mandioca têm sido selecionadas por populações indígenas e comunidades tradicionais. Todas as variedades cultivadas pertencem à espécie Manihot esculenta Crantz, sendo a espécie mais cultivada na Amazônia e a maior fonte de carboidrato para as pessoas desta região, respondendo a até 80% das necessidades calóricas diárias. A produção e o consumo de mandioca podem ser percebidos como um sinônimo de segurança alimentar e autonomia, considerando que é um dos poucos produtos agrícolas da Amazônia que é comercializado no mercado ativo da região e, portanto, uma das poucas opções que permitem comunidades tradicionais e povos indígenas acessar bens industrializados (EMPERAIRE, 2005, 2001).

A mandioca de grande importância à vida cotidiana, cultural e econômica da Amazônia tem seu comércio de troca datado do início da colonização da Amazônia, servindo missões religiosas, expedições militares e os patrões do extrativismo (EMPERAIRE, 2001). O sistema de trocas, no âmbito da agricultura da Amazônia brasileira, trouxe benefícios à amplitude da biodiversidade agrícola atualmente 91

encontrada. No caso da mandioca, a diversidade de variedades, “qualidades” ou “tipos”, conhecida e manejada por populações indígenas e comunidades tradicionais pode chegar a 49, no caso dos Ianomâmi no Noroeste de Roraima, norte do Amazonas e sul da Venezuela, e 17 para os seringueiros do Alto Juruá do Acre conforme registrou Pantoja et al (2002).

Em um estudo de análise comparativa do manejo da mandioca em nove áreas da Amazônia brasileira92, contemplando modos de apreensão e manejo da mandioca em diferentes contextos humanos e ecológicos (comunidades indígenas, agricultores caboclos, colonos, agricultores e seringueiros), os seringueiros do Acre se destacaram como o grupo que mais cultivava mandiocas mansas, os outros cultivavam preferencialmente mandiocas bravas, que necessitam de detoxificação antes do consumo (EMPERAIRE, 2005). O grupo de seringueiros e agricultores do Juruá demonstrou conhecimento e manejo de 9 variedades ou “qualidade / tipo” de mandioca em média.

O Acre é um dos principais produtores de farinha da região Norte do país, concentrando a maior área cultivada no Vale do Juruá. Das espécies manejadas e conhecidas de mandioca surge a produção do derivado mais consumido - a farinha. A farinha produzida no Vale do Alto Juruá é conhecida como Farinha de Cruzeiro do Sul e tem ganhado notoriedade por sua qualidade e sabor específicos. A farinha faz parte essencial da vida de milhares de pessoas, seringueiros, ribeirinhos, indígenas, caboclos e população urbana e movimenta fortemente a economia da região do Vale do Juruá. O processo de produção da farinha juntamente com o hábito de consumo pode ser considerado como patrimônio coletivo das populações do Alto Juruá. Ambos, modo de produção e consumo, são compartilhados e tidos como referência histórica-geracional para as referidas populações.

Este estudo registra a percepção da qualidade desta farinha e os meios para melhoramento de sua qualidade, o que resulta na valorização do produto. Para tanto, a pesquisa focou em dados socioeconômicos já levantados para a região, entrevistas com gestores públicos93 e produtores de farinha. Os dados buscam explicar como a estrutura e funcionamento de organizações locais e programas e políticas governamentais podem influenciar a valorização da Farinha de Cruzeiro do Sul e concomitantemente contribuir para a conservação da diversidade cultural e biológica do Vale do Juruá. Considera-se ainda que o envolvimento e a participação dos produtores de farinha são chave em todo e qualquer processo exógeno que vise a melhoria de qualidade da produção, do modo de 92

“Manejo dos recursos biológicos da Amazônia: a diversidade varietal da mandioca” IRD/ISA/CNPq 2001.

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produção e desejos dos próprios produtores em relação as suas vidas na floresta e no território do Vale do Juruá.

A compreensão do modo de preparo da farinha, em observação com a organização local que dinamiza a produção, as percepções sobre a qualidade da farinha, os desafios encontrados, e políticas relacionadas à farinha indicam destinos possíveis para a valorização deste produto. A seguir um breve relato do histórico de ocupação e descrição do área do Vale do Juruá, onde está concentrado o ambiente de produção.

1.1 O ALTO JURUÁ : OCUPAÇÃO E ÁREA DE ESTUDO

A colonização no Alto Juruá teve seu início registrado entre os anos de 1870-1880, com a chegada da primeira “migração espontânea” de nordestinos, que na realidade foi pouco “espontânea” considerando que os primeiros nordestinos chegaram expulsos pelos infortúnios causados por uma grande seca nordestina entre 1877 e 1880 (PESSOA, 2004). Esses imigrantes também vieram em busca do sonho de riqueza, falsamente propagandeado e induzido pelo governo e poderosos seringalistas. Esses homens ficaram conhecidos como “bravos” (Martins, 1969) por sua coragem, luta por sobrevivência contra as intempéries do ambiente tropical desconhecido, epidemias, penúrias de guerras para ocupação94, solidão e isolamento. Tais características de histórias de vida influenciaram diretamente o modo de vida hoje encontrado no Alto Juruá. A maior parte da população que atualmente vive nesta área descende dos chamados ‘bravos’, caboclos e indígenas das famílias pano ou aruak.

A região do Vale do Juruá, aqui também tratada como território do Vale do Juruá, é composta pelos municípios de Mâncio Lima, Rodrigues Alves, Cruzeiro do Sul, Porto Walter e Marechal Thaumaturgo (Figura 3); esses compartilham suas áreas municipais com unidades de conservação de uso sustentável, de proteção integral (federais e estaduais) e Terras Indígenas.

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A “Revolução Acreana” é datada de agosto de 1902 a janeiro de 1903, mas na região do Juruá os conflitos por terra com peruanos interessados na coleta de caucho continuaram. Pessoa (2004) aponta que embora esses peruanos não habitassem o Alto Purus ou o Alto Juruá reivindicavam tal território. Ali ocorreram alguns enfrentamentos entre seringueiros brasileiros e caucheiros peruanos. O Alto Juruá e seus afluentes como Breu, Caipora, São João, Acuirá, Tejo, Grajaú, Humaitá na margem direita e Amônia, Aparição, São Luiz, Parati, Rio das Minas, Ouro Preto, Juruá Mirim, Paraná dos Mouras e Moa na margem esquerda foram palco de lutas por libertação e vigilância para manutenção do recém assinado Tratado de Petrópolis, onde o Acre foi finalmente reconhecido como parte do território brasileiro por José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco.

Em 1906 a população da bacia do Alto Juruá era de 14.208 pessoas95 e em 2006 eram aproximadamente 160 mil para a região do Vale do Alto Juruá. Os municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves concentram a maior parte da população do Vale do Alto Juruá. (Tabela 2). Este estudo foca na produção proveniente dos municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima e Rodrigues Alves.

Tabela 2– Distribuição da população do Vale do Juruá.

Municípios Vale do Alto

Juruá 2004 2005 2006 Cruzeiro do Sul 57.860 83.080 71.280 Mâncio Lima 20.060 23.380 22.194 Rodrigues Alves 31.000 41.080 40.320 Marechal Thaumaturgo 8.520 10.460 14.094 Porto Walter 9.720 10.900 12.150

Total Vale do Juruá 127.160 168.900 160.038 Total Estado do Acre 450.335 563.919 455.581 Fonte: IBGE (2007)

Figura 3 – Mapa Estado do Acre, com destaque ao Vale do Juruá. Fonte: Adaptado de ZEE- Acre 2006.

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Mendonça, 1989 apud Pessoa 2004.

Estado do Acre