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4. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

4.1. Análise de Discurso Crítica

4.1.1. Dialética do discurso

Na ADC, o termo discurso tem dois sentidos possíveis: abstrato (Discurso), utilizado em sentido amplo, como referência à linguagem como prática social; e concreto (discursos), refere-se a modos particulares de representar o mundo, diferentes perspectivas associadas a distintas relações que as pessoas assumem com o mundo, suas posições e identidades nele (Fairclough, 2016).

A ADC considera o discurso como parte inseparável da prática social. Em sua obra Discurso e mudança social (2016), com base no modelo tridimensional do discurso, Fairclough conferiu centralidade ao discurso (posteriormente revisado no livro Discourse in late modernity em autoria com Chouliaraki), que era entendido como parte dominante da análise. Para ele, o discurso tanto é constituído pelas práticas sociais como as constitui:

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação

do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2016, p.95).

Segundo Magalhães, Martins e Resende (2017), Chouliaraki e Fairclough (1999) situam a ADC na “Ciência Social Crítica e na pesquisa crítica sobre mudança social na sociedade contemporânea” (MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017, p.21). Apesar de considerar a importância do discurso para a mudança social, e Chouliaraki e Fairclough (1999) problematizam a centralidade do discurso. Ancorados em Harvey (1996), explicam que o discurso deve ser entendido como um momento da prática social (diferentemente do que propôs Fairclough, 2016), entre outros como, instituições/rituais, práticas materiais, relações sociais, poder, crenças/valores/desejos, como pode ser visto na figura 9. Assim, o interesse da ADC em estudar problemas sociais com facetas discursivas, sobretudo no que diz respeito à exclusão social é, também, revestido do compromisso de não apenas apontá-los, mas de realizar pesquisas que estabeleçam possibilidade de luta contra hegemônica.

Figura 9 - Teoria Social do Discurso

Fonte: Elaborado pela autora (com base em Chouliaraki e Fairclough, 1999 e Fairclough 2003)

Diferentemente do que havia proposto em 1992, data da publicação original do livro Discurso e mudança social, Fairclough, juntamente com Chouliaraki, (1999), explicam que o discurso não tem efeito direto sobre a estrutura social, sendo mediado pelas práticas sociais que compõem essa estrutura. Os autores explicam, também, que o discurso está interconectado aos demais momentos da prática social, e, tanto é constrangido pela estrutura

quanto a constrange, em menor grau e intermediado pelas práticas sociais, assim como foi representado na figura 9.

A estrutura social, representada na cor azul na figura 9, é mais abstrata. As estruturas são “condições históricas da vida social”, e não podem ser acessadas diretamente pelo discurso, por isso, são, necessariamente, intermediadas pelas práticas sociais (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p.22).

O sistema semiótico (estrutura) também é constituído por outras estruturas sociais (políticas, econômicas, culturais), assim, as palavras carregam significados ideológicos e marcas de relação de poder instituídas socialmente. Apesar da rigidez da estrutura, ela pode ser modificada, ainda que lentamente, por meio das práticas sociais. Com relação ao tema desta pesquisa, um exemplo disso é o Modelo Social de Interpretação da Deficiência, pois compreendo que esse modelo é uma mudança, ainda que pequena, em nível estrutural e só foi possível em razão de mudanças nas práticas sociais, como discutido no capítulo 2.

As práticas sociais, representadas em amarelo, na figura 9, podem ser entendidas como o elo que une estruturas aos eventos sociais: momentos individuais da vida social. Desse modo, as práticas constituem todos os campos da vida social (econômico, cultural, social, político, educacional, médico, etc), ao mesmo tempo em que são influenciadas por eles. Chouliaraki e Fairclough (1999) consideram que toda prática social é incorporada em outras redes de práticas e, também, em relações de poder. No que diz respeito a esse ponto, no capítulo 5, explico como as práticas sociais do campo médico influenciam os eventos e as representações discursivas das pessoas com deficiência intelectual no ambiente escolar.

Entendo que a relação dialética entre evento, prática e estrutura social configura-se em esperança de transformação das relações de poder estabelecidas de modo tão assimétrico no que diz respeito aos/às estudantes com deficiência intelectual. É nos eventos que podem mudar as práticas e, consequentemente, as estruturas sociais. Assim, considero que a mudança discursiva em relação à representação das pessoas com deficiência indica, também, a possibilidade de mudança social.

Em razão da conexão entre discurso e outros elementos da prática social (instituições/rituais, práticas materiais, relações sociais, poder, crenças/valores/desejos), a mudança discursiva é importante para a mudança social. Assim, para que a mudança social signifique condições de igualdade para as pessoas com deficiência intelectual é preciso que a mudança discursiva esteja ligada à mudança dos outros elementos que constituem a prática social. O Modelo Social de Interpretação da Deficiência, ao investigar a deficiência pela reação do grupo social, foi responsável pela mudança discursiva em relação aos termos

utilizados para representar as pessoas com deficiência. Essa mudança pode ser percebida nos documentos normativos, elencados no quadro 1, capítulo 1, assim como nas representações dos/das docentes a respeito das pessoas com deficiência, na maioria dos casos. Em alguns momentos da pesquisa, foi possível notar o constrangimento das pessoas no que diz respeito à escolha da “palavra correta” para se referirem às pessoas com deficiência. Acredito que esse constrangimento indica relativa mudança social.

Refiro-me a relativa mudança, uma vez que é possível perceber que a mudança no termo de referência às pessoas não significa, na maioria dos casos, mudança no que diz respeito às relações de poder. Por isso, reforço que o Modelo Social, ao investigar a deficiência pela reação do grupo social, pode ser combinado à Análise de Discurso Crítica, já que a estrutura social estabelecida hegemonicamente, principalmente com base no modelo médico de interpretação da deficiência, contribui, ainda nos dias de hoje, para a manutenção da desigualdade social em relação às pessoas com deficiência.

Na próxima subseção, com base nas questões de pesquisa elencadas no capítulo 3, discorro com maior profundidade sobre como a hegemonia da normalidade, discutida por Silva (2000, p.83) como “força homogeneizadora da identidade normal”, implica relações assimétricas de poder nas relações sociais, tanto no ambiente familiar quanto educacional. Desse modo, explico, ainda, como as relações de poder implicam as crenças (identidades) e valores das pessoas no que diz respeito às pessoas com deficiência intelectual.