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5. REPRESENTAÇÕES E LETRAMENTOS DOS/DAS ESTUDANTES COM

5.3. Letramentos

5.3.2. Trajetória familiar dos/das estudantes e letramentos

Um ponto comum na trajetória dos(as) participantes foi a descoberta da deficiência intelectual na idade escolar. As mães entrevistadas contam que foi a partir do momento no qual os(as) filhos(as) começaram a estudar que houve necessidade de acompanhamento/laudo médico. Em algumas situações, receber o diagnóstico significou ouvir dos médicos (geralmente neurologistas) que seus(uas) filhos(as) não conseguiriam ou teriam muita dificuldade para ler e escrever.

O que é marcante nessas trajetórias é a determinação das mães em acreditar que seus filhos seriam capazes de superar as expectativas médicas, o que considero como fator essencial para o desenvolvimento tanto do comportamento adaptativo quanto do funcionamento intelectual. O discurso contra hegemônico das mães é um exemplo da relação dialética do discurso, já que foi capaz de mudar algumas relações sociais do ambiente escolar

e constituir outras possibilidades no que diz respeito à identidade dos (as) estudantes com deficiência intelectual. Sobre isso, gostaria de destacar, o que relata Rosa sobre a deficiência intelectual; opto por inserir a fala da participante com recuo de citação direta por entender que sua trajetória legitima sua autoridade para falar a respeito desse assunto:

Eu sou CONTRA de falar que eles NÃO APRENDEM. Eu sou contra falar que o deficiente não aprende. ELES quer colocar no CEE, sabe porque? Porque fica lá na mesmice, na mesmice e não evolui. E na sala de aula, não. O professor ele tem que se dedicar, ele tem que ir atrás na sala de recurso, ele tem que. “OLHA, a criança não tá… vamo vê/chegar um ponto que ele tem que aprender, alguma coisa ele vai ser na vida. TODO DEFICIENTE TEM CAPACIDADE, pra mim tem. TODO MUNDO TEM QUE ESTUDAR! Entendeu? (ROSA, 2019, s/n)

Ao ser perguntada sobre o que diria para uma mãe que acabou de receber o diagnóstico do(a) filho(a), Rosa é enfática ao mencionar a aprendizagem das pessoas com deficiência, ao mesmo tempo que critica o atendimento dos/das estudantes no CEE. Com base nas entrevistas das mães, entendo que quanto mais limitante é o pensamento da família em relação às possibilidades de desenvolvimento das pessoas com deficiência, mais limitada será a aprendizagem delas.

As famílias que participam desta pesquisa acreditaram no potencial das pessoas com deficiência e deram suporte para que elas contestassem o estigma da não aprendizagem. O exemplo de Rosa, que assistia às aulas com a filha, Margarida, expõe a relevância da trajetória familiar nos letramentos dos(as) estudantes com deficiência intelectual. É relevante mencionar a relação das famílias com os letramentos dos filhos, pois as representações das mães sobre o ambiente escolar dizem respeito à escola como possibilidade de mudança social. O acompanhamento dos pais, entretanto, muitas vezes é dificultado em razão da escolaridade. A mãe de Jasmim, Melissa, se emociona ao lembrar da sua dificuldade em ajudar a filha nos trabalhos escolares

É muito difícil, inda mais assim, nos causo meu, que eu não sei ler, eu escrevo alguma coisa mais é muito DEVAGAAAR e pra poder sair alguma coisa é muito difícil, porque nóis num estudemo né? Então nóis num teve/aisveiz eu converso muiito com eles: “Fi, tem que ter paciênciaaa, tem que estudáaa porque a mãe num sabe de nada porque a mãe NUM ESTUDÔ”, porque nóis morava na roça e/ então a gente tinha que IR PRA ROÇA, TRABAIAR. Aisveiz meu pais que/de primeiro o pessoal passava assimmm, éééé, nas casa pegano o nome das criança pra ir pra escola, né? Aí meu pai falava “ah eu nem vou botar eles pra escola porque depois sai, num vai, porque tem que trabaiá, as coisa é difícil demais e eu sozinho”. AÍ, “NÃOOO, seu André, tem que botar”. Aí ele botava nossos nome pra ir pra escola, ia pouco tempo e depois, devido o/as roça dele TÁ NO MATO, nóis tinha que sair da escola pra ir capinar as roça, então a gente num prendeu né? Então é muito difícil poque eu não tenho nem como ensinar, né? NEM COMO AJUDÁ eles NE NADA. Tanto faiz ela, que nem o outro né? Quando ela – eraaa –pequena., aí a gente tinha óóó/eles era

três porque a gente tinha o fi do meu esposo, né? Ele tem um filho sozinho, foi a gente que criou né, ele? Mais eles era treiz, então o pequ/ o Saulo num estudava ainda mais era eles dois por/era TÃO DIFÍCIL aisveiz eles PEDIA pra gente ensinar alguma coisa e NEM ELE nem eu sabe ele ainda é PIOR do que eu ainda, sabe? Meu marido ele é pior do que eu ainda, porque eu ainda leio alguma besteirinha, faço alguma coisinha, e ele é nada, então é difícil demais, a gente num sabia como ENSINAR. Aí nóis trabaiava lá embaixo no/na roça, então nóis vamo PAGAR uma pessoa pra ajudar eles, aí tinha uns pessoal lá em cima, uns vizin. Aí, porque tinha umas menina que tinha, assim, uma série mais alta, aí a gente pedia PAGAVA as menina, pras menina AJUDÁ eles, e tudo, né?? (Melissa)

A avaliação (ver capítulo 4) negativa de Melissa “A mãe num sabe de nada porque a mãe num ESTUDÔ” contém o pressuposto de que quem estuda sabe mais, sabe melhor. A valoração dada ao estudo fica explicita no uso do léxico “nada”. Além da avaliação de si, Melissa avalia negativamente o marido com base nos letramentos: “Meu marido ele é pior do que eu ainda, porque eu ainda leio alguma besteirinha, faço alguma coisinha, e ele é nada,”. Em outro momento da entrevista, Melissa relata a dificuldade que enfrenta no dia a dia por não “saber ler direito”. Percebo que o empenho dos pais de Jasmim em pagar uma pessoa para que a ajudasse nos trabalhos escolares representa mudança discursiva e social em relação ao que relata Melissa sobre seu pai “Aí meu pai falava ‘ah eu nem vou botar eles pra escola porque depois sai, num vai, porque tem que trabaiá, as coisa é difícil demais e eu sozinho’”.

O prestígio dos saberes escolares, evidenciado na fala de Jasmim é uma construção social. As representações das mães sobre a importância da escola indicam a valorização dos letramentos escolares, além de evidenciarem avaliação negativa, como na fala de Melissa, “a pessoa que num sabe a ler é HORRÍVEL, minha irmã!” sobre a própria identidade em função dos letramentos escolares.

A escola, assim, POR EU NÂO SABER DE NADA, né? Num saber a ler, num saber a escrever, então aquilo ali era uma DIFICULIDADE muito grande. A gente, NOOOSSA, a gente tem uma dificulidade muito grande. Então, PRA ELES, é muito importaaante, então é o que eu sempru bate com a cabeça, né, quando –ela- fala quer num/”nu/tô conseguino acumpanhar os outo”, num quer ir pra escola, o Saulo as veiz também, “ah, mãe, ah num sei pra que tem escola hoje, amanhã, nem devia ter escola”. “Num é assim, meu filho, tem que ir né? Pensa que/pensa no seu futuro pra frente né?” Que a pessoa que num sabe a ler ééé/é HORRÍVEL, minha irmã.

Melissa fala sobre a importância da escola para o “futuro”; a seleção lexical dessa palavra é recorrente nas respostas das mães e dos/das estudantes sobre o papel da escola. Barton, Hamilton e Ivanic (2000, p.11) dizem que a escola tende a apoiar práticas dominantes de letramento e que os letramentos vernáculos “que existem na vida cotidiana das pessoas” são menos visíveis e menos apoiados. Em um trecho de sua entrevista, Rosa diz que sonha em fazer uma faculdade de gastronomia para preparar marmitas para vender; quando perguntei a ela se acreditava que ter a formação era realmente necessário, ela respondeu:

Ah, eu vejo lá na internet, a maioria tá lá. Olha só eu vou vender o meu peixe “Sou Rosa e tal” aí mostro a minha cozinha assiadinha e as pessoas vendo e tal, faz a comida aí a Rosana vai lá e mostra a dela, a Rosana tem curso de gastronomia, faz comida e num sei mais o quê. A Rosa fez a sétima série, quem vai me querer? As mulheres que têm dinheiro vai querer a mulher QUALIFICADA, eu não. (Rosa)

Assim como relata Rosa, as representações das mães sobre a importância da escola indicam que a formação escolar é essencial para o mercado de trabalho e para o futuro dos filhos. No trecho “vai querer a mulher QUALIFICADA, eu não”, há um pressuposto de que as pessoas que não frequentaram espaços formais de educação não seriam qualificadas. O relato de Rosa explicita a representação das mães no que diz respeito à escola como espaço de poder; sem dúvida, essa representação das mães influencia também a representação dos próprios estudantes sobre a relevância da escola para suas vidas.

Por entenderem a escola como possibilidade de futuro, de mudança social, de poder, as mães dos(as) estudantes que participaram desta pesquisa expressaram, em suas entrevistas, que resistiram às adversidades de variadas maneiras para que os(as) filhos(as) permanecessem no ambiente escolar. Os esforços das mães, somados à crença na aprendizagem dos filhos, ilustram a resistência dessas famílias e a contribuição dessa luta para os letramentos dos/das estudantes com deficiência intelectual.

Pesquisadora (13): E quando ela disse, assim, que seria muito difícil ela aprender a ler, o que a senhora sentiu nesse momento?

Rosa(14): Hum, eu falei que hum/ “-conversa dessa mulher-47, minha filha não é BURRA, -pois ela vai aprender-”

Se, por um lado, a crença das mães na possibilidade de aprendizagem dos(as) seus(uas) filhos (as) é uma recorrência nas entrevistas das famílias, por outro, é preciso questionar as representações escolares sobre as pessoas com deficiência intelectual para que as relações assimétricas de poder, que tanto influenciam os letramentos, sejam menos recorrentes. No próximo tópico, discutirei os letramentos e as relações sociais do ambiente escolar.