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5. REPRESENTAÇÕES E LETRAMENTOS DOS/DAS ESTUDANTES COM

5.2. Representações da Deficiência Intelectual

5.2.3. Representação da deficiência intelectual como loucura

Assim como mencionei, no capítulo 1, a representação da deficiência intelectual como loucura constitui um estigma que é alimentado cotidianamente pelo senso comum. As bases de construção desse estigma (GOFFMAN, 2008) são históricas e ideológicas. No caso dessa representação, o desdobramento está associado diretamente ao silenciamento dos/das estudantes, uma vez que ocupar o lugar de “louco” é perder a legitimidade de expressão. Nesta seção, a triangulação de perspectiva dos/das participantes foi crucial para o procedimento de análise, assim como as observações realizadas por mim na sala de aula.

Em relação ao grupo de pessoas com deficiência, as pessoas com deficiência intelectual são as que mais sofrem capacitismo, as barreiras enfrentadas não são apenas físicas, mas dizem respeito à constituição delas como pessoas. Assim, a violenta associação da deficiência intelectual a termos como, “doido”, “problemático”, é recorrente, como relatam Amapola e Acácio:

DOIDO, doido. Pra pra deficiente intelectual, sim, porque é DOIDO, é PROBLEMÁTICO, mas pra deficiente físico, não! (Amapola)

Existe… de certa forma, ainda existe o preconceito, né, por falta de quê? De conhecimento, porque todo mundo acha que sala de recurso é sala de doido, né? (Risos) “professor, fulano de tal é da sala de recurso”. Eles já tem essa ideia de que? é… doido. Num é doido. Por exemplo, vou usar a Luiza. A Luiza se limita a ser atendida pela sala de recurso, porque ela vai passar vergonha, porque ela vai ser inferior a qualquer outra aluna em sala. (Acácio)

O relato do professor Acácio marca a sala de recurso como lugar da diferença de uma forma geral: “todo mundo acha que sala de recurso é sala de doido”. Essa marcação também é feita por Margarida (seção 5.2.2.). Desse modo, a sala de recurso é o território da marcação da diferença, e o pertencimento dos/das estudantes ao espaço gera exclusão, como, no caso de Luiza, relatado por Acácio, e, como relata Margarida, no excerto a seguir, “o jeito que eles me tratam só porque eles sabem que eu sou da Sala de Recursos”, nesse exemplo, o pertencimento é marcado pela expressão “eu sou”, modalidade subjetiva.

Pesquisadora (27) Você se considera uma pessoa com deficiência?45

Margarida (28) (risos)Sim… Sim e NÃO. É, eu não gosto! Não me acho LOUCA, só tenho uma dificuldade. Por exemplo, eu tenho muita dificuldade, muita dificuldade. Eu não APRENDO as coisas.

Pesquisadora (29): Ah, em nenhum momento da nossa conversa a gente falou sobre loucura, porque você falou sobre isso?

Margarida (30): JÁAA! Um monte de gente. Pesquisadora(31): Como você se sente?

Margarida (32): MAL! Com raiva, triste. Querendo bater neles. Pesquisadora(33): Ééé, aqui na escola você se sentiu assim? Margarida (34): SIM! Pesquisadora: Em que momento?

Margarida (35): hum, na sala de aula, às vezes, em vários lugares. Pesquisadora (36): O que te fez se sentir assim?

Margarida (37): Os outros alunos e também as diferenças, sei lá. O jeito que eles me tratam só porque eles sabem que eu sou da Sala de Recursos, os alunos ficam com umas coisas estranhas, com bullying, um monte de coisa. Mandando eu fazer umas coisa que eles não faria, mas eles acha que eu vou fazer. Eles acha que eu sou doida.

Pesquisadora (38): Que tipo de coisa?

Margarida (39): Eles manda eu mexer com os outro, eles manda eu faze/perguntar umas coisa pro professor, pra professora. Manda eu falar um monte de coisa, que eles não faria né? E eles ri, ainda.

Pesquisadora (40): E você faz?

Margarida (42): Às vezes (risos). Eu acho que num tem problema algumas coisa, aí eu faço. Pesquisadora (43): E depois que você faz, você se sente como?

Margarida (44): Que tenho amigos!

45Embora as perguntas (27) e (41) sejam fechadas, elas são resultado do diálogo estabelecido durante a entrevista.

A modalização de Margarida em dizer “não me acho louca” indica um pressuposto que alguém a acha louca e, ao mesmo tempo, aponta para um grau menor de compromisso da estudante com o que diz, já que ela utiliza o verbo achar. Margarida tem consciência de si, “não me acho louca” e nega a identidade atribuída a ela, o que é uma forma de intertextualidade (FAIRCLOUGH, 2016). Em razão da consciência que tem de si, e muito perceptível, no trecho 42. “Às vezes. Eu acho que num tem problema algumas coisa, aí eu faço”. Assim, a estudante escolhe os momentos nos quais deve figurar dentro da representação supostamente atribuída a ela (“louca”) para conquistar “amigos”. A consciência que ela tem de si não é a mesma que ela tem das relações, e essa é uma característica ligada à deficiência intelectual, de limitação no comportamento adaptativo referente às habilidades sociais, discutido no capítulo 1. Margarida sugere um movimento significativo de adesão de identidades, de busca por pertencimento, evidenciado no trecho 44, “que tenho amigos”. A representação da deficiência como loucura também é intensificada pelos modos de operação da ideologia, no caso do excerto, a seguir, do professor Alisson, podemos perceber o “expurgo do outro” (THOMPSON, 2011, p.87) na representação de Margarida em relação aos colegas de turma:

Pesquisadora: Vocêêê… na sua experiência aqui nesse ano, tem alguns termos que os alunos usam pra se referir aos outros alunos que você… já teve acesso? [apelido? adjetivo?] éé!

Alisson: AH a/ não, muito pouco, muito pouco, doidinha, doida, mas você já sabe que eu to falando que é a mais problemática.

Pesquisadora: Quem?

Ah! A Margarida é a-a-a que mais eu vejo que eu tenho mais problema… porque ela é MUITO

agressiva. Às vezes ela fala um palavrão assim do NAADA, tá todo mundo brincando, fazendo/

esses dias mesmo a gente tava fazendo treinamento de força, tô mostrando pra eles a diferença em treinamento de força, coloquei eles pra fazer barra, aí na hora que ela foi fazer barra as meninas gritou: “vai, Margarida, num sei o quê”, aí ela: “cala boca rapariga!” DO NAADA… aí todo mundo fica assim, só que aí eles… relevam, deixam pra lá. Só que o povo detesta ela… os alunos detesta… acredito porque ela é MUITO agressiva, é MUITO agressiva [como que tá a turma] fala muita besteira, [assim, a relação na turma?] não mistura, o povo dá pra ver que deixa ela no meio porque tem medo dela. Pra falar a real, eles têm MEDO dela.. MEDO. Né respeito não, eles têm

medo… dela surtar, fazer alguma coisa ou da-da escola fazer alguma outra coisa com eles, mas

eles não gostam dela não, eles detestam ela… mas é só ela, os outros alunos/ a Dália… a Pérola eu nem sabia…

Enquanto Alisson utiliza, em sua linguagem, elementos intensificadores e uma seleção de palavras negativas para avaliar Margarida (destacadas em vermelho no excerto), inclusive ao utilizar a citação direta para se referir à fala de Margarida “Cala boca rapariga”, quando cita os estudantes, relativiza com citação direta, mas sem especificar a fala “vai lá Margarida não sei o quê”. A escolha do docente indica maior compromisso em explicitar a fala de Margarida, como um argumento legitimador para os adjetivos atribuídos a ela, inclusive com

uso de intensificadores “mais problemática”, “Muito agressiva”. Há uma escolha ideológica na representação de Margarida, para que ela ocupe o lugar reservado pelo senso comum para a pessoa com deficiência intelectual, o lugar da “doida”, “doidinha”.

Em relação à representação dos colegas de sala de Margarida, pelo professor Alisson a escolha lexical “relevam” é importante para a análise da representação dos atores sociais no ambiente da educação inclusiva. Constantemente, os estudantes, representados pelos/pelas docentes como “ditos normais” são elogiados por “aceitarem” os estudantes com deficiência em suas turmas, como se estivessem a realizar um ato de caridade. A seleção lexical “mas é só ela” reforça o uso do modo de operação da ideologia que é o expurgo do outro. Ao construir a representação de Margarida com léxico de carga negativa, do ponto de vista da avaliação, o docente responsabiliza a estudante pelo sentimento dos colegas: “os aluno detesta... acredito porque ela é MUITO agressiva”.

O expurgo de Margarida é significativo, pois de todos os estudantes participantes da pesquisa, ela é a que mais se posiciona e que tem mais consciência dos seus direitos, no que diz respeito à adequação curricular. Indicar o lugar de loucura para Margarida é uma forma de manutenção das relações de dominação, é uma tentativa tirar-lhe a credibilidade. Os outros estudantes mencionados pelo professor são menos participativos e mais “obedientes”; uso a mesma palavra que ele utilizou para se referir aos/às estudantes. Portanto, a resistência de Margarida é atacada de modo ideológico, o da “fragmentação”, ao destacar Margarida dos demais estudantes: a representação encobre de modo estratégico a operação da ideologia.

Cabe ressaltar que os dados (Alisson e Margarida) apontam para como as identidades são construídas. Para pertencer ao grupo, Margarida faz o movimento de atender à expectativa que os estudantes têm em relação a ela, apesar de não aderir completamente à identidade atribuída a ela, como relata: “eu não me acho louca”. Assim, nos dados, há movimentos de significação. No excerto de Alisson, o professor, como autoridade, atribui identidades. Desse modo, há o movimento de significação de atribuição de identidades. Pela repetição de estereótipos ligados à deficiência intelectual, ele atribui identidades aos outros, então, àqueles que se encaixam dentro do padrão identitário dos deficientes; esses não dão muito problema, mas o que não se encaixa, como no caso de Margarida, é representado como “a mais problemática”.

Entendo, portanto, que a representação da deficiência como loucura sustenta as relações de poder assimétricas tanto entre estudantes com deficiência intelectual e seus colegas de turma quanto entre estudantes com deficiência intelectual e seus professores. Um dos agravos dessa representação, além da violência imputada aos/às estudantes, é a imposição

do silenciamento como condição de não sofrimento. O caso de Margarida evidencia que quanto mais agenciação um estudante com deficiência intelectual expressa, maior o estigma, maior o preconceito. É preciso lembrar também que essa representação ainda impede muitos estudantes de frequentarem a Sala de Recursos, como relatou o professor Acácio sobre a estudante Luiza. No caso de Luiza, não frequentar a Sala de Recursos foi uma maneira que a estudante encontrou de não sofrer capacitismo no ambiente escolar e, em razão disso, a estudante foi prejudicada, já que não recebeu auxílio pedagógico para impulsionar o seu desenvolvimento escolar. Na próxima seção, discutirei a representação da deficiência intelectual como preguiça e o impacto dessa representação para os estudantes.