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Letramentos escolares dos/das estudantes com deficiência intelectual

5. REPRESENTAÇÕES E LETRAMENTOS DOS/DAS ESTUDANTES COM

5.3. Letramentos

5.3.3. Letramentos escolares dos/das estudantes com deficiência intelectual

Como disse anteriormente, a análise das entrevistas das mães aponta recorrência sobre o momento de descoberta da deficiência intelectual: o início da vida escolar dos(as) filhos(as). Não é por acaso que todos os/as participantes desta pesquisa só foram diagnosticados como

47 Como estabelecido no quadro de símbolos, inserido no início da dissertação, os trechos entre hífens significam repetição.

pessoas com deficiência intelectual quando entraram na escola. O conceito de deficiência intelectual (capítulo 1) evidencia a escola como lugar de maior visibilidade dessa deficiência, uma vez que explora tanto o funcionamento intelectual como o comportamento adaptativo dos/das estudantes. Desse modo, podemos entender que a deficiência intelectual, quando representada com base no modelo clínico médico de interpretação da deficiência, pode conferir à escola o Status de ambiente intensificador da deficiência intelectual, de modo a focar na dificuldade (palavra recorrente nas entrevistas, 78 vezes).

Na análise das representações dos (as) estudantes sobre a importância da escola, há recorrente representação da escola como ambiente para desenvolvimento da inteligência e de grande importância para o futuro. Ao passo que, na análise de como os estudantes representam as atividades escolares, há recorrência da palavra dificuldade. Compreendo que a dificuldade está ligada às práticas mais convencionais de letramentos escolares observadas no campo de pesquisa.

Sobre as atividades escolares que pude observar no Centro de Ensino Médio Girassol, destaco a cópia como atividade recorrente nas diversas disciplinas. Por vezes, os estudantes eram orientados a fazer cópia do próprio livro didático. Cheguei a observar que, em alguns casos, o tempo destinado à cópia do quadro correspondia a aproximadamente metade do tempo de aula. No caso específico dos/das estudantes com deficiência intelectual, a maioria das atividades de sala de aula não era adequada48. Apenas no ambiente da sala de recurso, freqüentada pelos(as) estudantes no contraturno é que os (as) estudantes realizaram as atividades adequadas pelos/pelas docentes. Esse dado indica a importância de discutir a inclusão dos/das estudantes com deficiência do ponto de vista pedagógico.

A ausência de adequação das atividades em sala de aula corrobora para a exclusão dos/das estudantes com deficiência intelectual das atividades. Durante as observações, notei que muitas atividades ministradas, mesmo na Sala de Recursos, eram apenas instrumentos de avaliação descontextualizados. Desse modo, as atividades eram parte de um protocolo de geração de nota para o(a) estudante, motivado pela cultura de auditoria (MAGALHÃES,2019).

Alisson: Eu vou falar a verdade pra você, eu tenho pouco tempo e eu também não posso responder pelos outros, que eu não sei direito, cada um faz o seu trabalho, mas às vezes dá impressão de empurra pra frente… “PASSA, AJUDA AÍ, DÁ UM JEITINHO, DÁ UM MIGUÉ porque se reprovar esse moleque ai que tem problema… a regional VEM EM CIMA DE NÓS”. [...]

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Carla: Então, eu me preocupo muito, eu acho que… a gente precisa sempre ter aquela questão da responsabilidade, né, e ver que “ah, não é só um conteúdo, não é só… você… aplicar uma prova pra ter uma nota, é pensar –na- pessoa em si e n/ no quanto e/ ela é im/ em quanto isso aqui também é importante pra ela”.[...]

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Amapola: Na semana passada, semana trasada, nós tivemos reunião com a regional e qual foi o grande problema? Das escolas de fundamental finais e médio, essa pressão por nota, pressão por nota. Então, se o menino não tem nota, não passa. Então, é esse o grande problema.

Pressionados pela estrutura da escola, parte dos/das docentes aplica atividades em busca da geração de uma nota, o que prejudica a aprendizagem dos/das estudantes. Algumas atividades descontextualizadas têm efeito de legitimar a representação da deficiência intelectual como sinônimo de não aprendizagem. A participante Amapola relata, na entrevista, que a nota é um problema para os estudantes, inclusive que esse problema foi discutido nas coordenações da regional de ensino. Alisson explica que pressão institucional implica em atividades que sejam de cunho meramente figurativo: “PASSA, AJUDA, DÁ UM JEITINHO, DÁ UM MIGUÉ, A REGIONAL VEM EM CIMA DE NÓS”. A escolha lexical de Alisson “vem em cima” indica que há uma pressão pela aprovação dos(as) estudantes com deficiência intelectual.

A docente Carla relata a sua preocupação em planejar atividades que sejam relevantes para os(as) estudantes e que não representem, apenas, uma nota. Os vocábulos “preocupo” e “responsabilidade”, usados por Carla, indicam o comprometimento da docente com a adequação curricular à realidade do(a) estudante: “o quanto isso é importante pra ela”. As docentes, Zara e Luma também relataram a dificuldade que sentem em adequar as atividades.

A distância entre as atividades propostas pelos/pelas docentes em sala de aula e a prática social dos/das estudantes com deficiência intelectual, além das relações sociais, por vezes conflitantes entre os estudantes da turma, tornam o ambiente de sala de aula pouco propício aos letramentos, assim como explica Jasmim.

Jasmim (60): Assim, ás vezes a gente se sente meio INCAPAZ, né? Porque, às vezes, a gente na sala, a gente vai tentaaarr responder e a gente não dá conta, ás vezes, aí a gente já fica chateado, às vezes, tem vergonha até de falar com os professores mesmo. Na Sala de Recursos é bem melhor, porque a gente são grupinho, a gente conversa, tem a professora própria para orientar a gente, né? É mais fácil, agora, na sala é mais difícil que a gente tem vergonha, que nem trabalho mesmo, a gente tem vergonha porque a gente num sabe apresentar. Outros que julga a gente por ser da sala de recurso e é assim.

Assim como afirma Lima (2014, p.69): “espaços como a escola são importantes tanto para legitimar e valorizar alguns grupos e sujeitos, como para esconder e rejeitar outros”. A fala de Jasmim evidencia a influência das relações sociais do ambiente escolar nos

letramentos dos/das estudantes com deficiência intelectual. Enquanto a sala de aula é um espaço constrangedor para a estudante, tanto em razão da relação com colegas quanto com os professores, a sala de recursos é entendida como espaço de coletividade.

5.3.3.1 “Química só é legal quando a gente vai para o laboratório”

Em razão da especificidade da deficiência intelectual, em relação ao funcionamento do intelecto, as atividades mais abstratas são complexas para os estudantes. Em contrapartida, quanto maior a proximidade do conteúdo ministrado pelo professor com a prática social do(a) estudante, melhor será o aprendizado. Um exemplo disso é o que diz Margarida:

Ah, também lembrei, matemática não entra na minha cabeça de jeito nenhum, química também. Assim, química só é legal quando a gente vai para o laboratório. Pesquisadora: Por que você gosta do laboratório? Porque lá é legal, né? Tem um monte de coisa legal que a gente faz massinha, um monte de experimentos. (Margarida)

Margarida estabelece uma condição para a avaliação positiva da aula de química: “química só é legal quando a gente vai para o laboratório”. Durante as observações das aulas de química, percebi que não só Margarida, como os (as) demais estudantes não participavam das aulas. Entretanto, as práticas de laboratório eram esperadas pelos/pelas estudantes, que postavam fotos nas suas redes sociais dos momentos de interação com os colegas. Na sala de aula, observei a centralização na figura do professor e a rotina de resolução coletiva do dever de casa, cópia, explanação e resolução individual. Diferentemente do que ocorria em sala, as aulas de laboratório tinham metodologias ativas, pois os estudantes organizavam e participavam da dinâmica dos experimentos. Desse modo, além das relações sociais mais fluidas, a prática do experimento diminuía a distância entre o conteúdo ministrado da prática dos/das estudantes.