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3. CAMINHO METODOLÓGICO DA PESQUISA

3.2. Etnografia e Análise de Discurso Crítica

A história da etnografia convencional expõe um modo colonial de pesquisa, no qual os indivíduos são vistos como “o outro” (o pesquisado), em posição de significativa subalternidade (SPIVAK, 2010). O pesquisador31, portanto, é considerado autoridade e seu saber sobrepõe-se aos saberes da comunidade participante – em uma relação assimétrica de poder – na qual a subalternidade dos indivíduos pesquisados valida a autoridade do pesquisador(a) (geralmente homem e branco), tal qual relatam Denzin e Lincoln (2006, p.15): “esse outro era o outro exótico, uma pessoa primitiva, não-branca, proveniente de uma cultura estrangeira considerada menos civilizada do que a cultura do pesquisador(a).”

Um exemplo disso é a obra póstuma Um diário no sentido estrito do termo, de Malinowski (1967). Nessa obra, é nítida a posição do pesquisador em relação à comunidade participante: “de modo geral, meus sentimentos para com os nativos decididamente tendem para ‘exterminar’ os brutos´” (MALINOWSKI, 1967, p.103). Em outro trecho, o pesquisador desumaniza a comunidade participante: “[v]ejo a vida dos nativos como totalmente destituída

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Todas as traduções deste artigo são minha autoria.

31 Especificamente nesse trecho, opto por marcar o gênero, de modo proposital, para indicar o que havia de mais comum nas pesquisas etnográficas convencionais.

de interesse ou importância, algo tão distante de mim como a vida de um cão” (MALINOWSKI, 1967, p.195).

Em oposição à etnografia convencional, a qual assume o Status quo, e na tentativa de usar o conhecimento para a mudança social, a etnografia crítica está engajada com o fortalecimento dos espaços de voz dos/das participantes da pesquisa (THOMAS, 1993). Desse modo, a etnografia crítica assume o compromisso ético de contestar o status quo. Como explica Kincheloe e McLaren:

Ainda que a etnografia crítica leve em conta a relação entre libertação e história, de um jeito diferente da etnografia convencional e mesmo que sua tarefa hermenêutica seja colocar em dúvida o condicionamento social e cultural da atividade humana e as estruturas sociopolíticas predominantes, não alegamos que seja suficiente para reestruturar o sistema social. Porém, a nosso ver, este é certamente um começo necessário (KINCHELOE; MCLAREN, 2006, p. 300).

Assumir o compromisso de contestar o status quo é, também, contestar as relações de poder outrora estabelecidas entre pesquisador(a) e os/as participantes da pesquisa. Para isso, considero o planejamento do projeto de pesquisa fundamental para o desenvolvimento do trabalho de campo. O esforço em construir o desenho desta pesquisa foi contínuo, já que as observações iniciais feitas no campo contribuíram para os ajustes necessários com relação às técnicas de coleta/geração de dados.

Segundo Denzin e Lincoln (2006), a etnografia é uma atividade situada que localiza o observador ou observadora no mundo e consiste em um conjunto de práticas que transformam o mundo em uma série de representações. Assim como observa Magalhães (2000), os métodos mais adequados para o estudo do discurso devidamente contextualizado são os etnográficos: da junção da Análise de Discurso Crítica com a etnografia, surge o método etnográfico-discursivo (MAGALHÃES; MARTINS; RESENDE, 2017). É preciso, portanto, que a pesquisa seja “com” e não apenas “sobre” a comunidade participante (CAMERON et al, 1992), não apenas durante o trabalho de coleta/geração de dados , mas em todo o percurso de pesquisa.

A Análise de Discurso Crítica (ADC) está situada na tradição qualitativa interpretativista. Diante disso, estabelecer uma relação transdisciplinar (categorias linguísticas e categorias sociais) entre a ADC e a pesquisa etnográfica é o objetivo do método etnográfico- discursivo. Com base em Magalhães, Martins, e Resende (2017), a etnografia discursiva é parte do que se denomina pesquisa qualitativa.

[...] na pesquisa qualitativa é possível examinar uma grande variedade de aspectos do processo social, como o tecido social da vida diária, o significado das experiências e o imaginário dos participantes da pesquisa; a forma como se articulam os processos sociais, as instituições, os discursos e as relações sociais, e os significados que produzem (MAGALHÃES, MARTINS, RESENDE, 2017, p. 30).

Para que seja possível analisar o tecido social, é preciso tempo e estudo para entender o contexto da pesquisa. Especialmente na instituição escolar, é preciso analisar o impacto das relações de poder sobre os/as participantes da pesquisa; sobre essas relações, ver capítulo 4.

3.2.1. Minha trajetória nesta etnografia

A natureza ontológica dos estudos críticos do discurso (RESENDE, 2009) e a escolha política pela metodologia etnográfico-discursiva, junção da etnografia crítica (CAMERON et al, 1992; THOMAS, 1993) e da análise de discurso crítica (FAICLOUGH, 2003; CHOULIARACK e FAIRCLOUGH, 1999), estabelecem o caráter posicionado do(a) pesquisador(a) e afastam a representação estabelecida pelo positivismo acerca da neutralidade do pesquisador na pesquisa. Por isso, escolho, antes de detalhar os aspectos metodológicos deste estudo, explicitar minha trajetória pessoal com o objetivo de esclarecer em quais aspectos ela influencia meu olhar sobre o tema desta pesquisa.

Além do caráter posicionado do(a) pesquisador(a) na pesquisa, uma característica dos estudos etnográfico-discursivos é a reflexividade. Steve Mann (2016), explica a reflexividade da pesquisa como um processo interminável. O autor argumenta que aprendemos mais sobre a pesquisa quando compartilhamos nossas experiências. Portanto, para ele, a reflexividade envolve o exame de como as suposições, as crenças e o aparato conceitual do(a) pesquisador(a) afetam a dinâmica da pesquisa, especialmente das entrevistas. Mann diz ainda: “a reflexividade está mais explicitamente ligada à influência de si e do pesquisador sobre a pesquisa e seus resultados, bem como a influência da pesquisa no pesquisador” (MANN, 2016, p.43).

Na tentativa de suscitar o processo reflexivo, Etherington (2004) indica quatro questões que devem ser levantadas para que o(a) pesquisador(a) desenvolva a perspectiva reflexiva; são elas:

1. Como minha história pessoal me levou a me interessar por esse tópico?

2. Quais são meus pressupostos sobre o conhecimento neste campo?

4. Como meu gênero / classe social / etnia / cultura influencia meus posicionamentos em relação a este tópico / meus informantes? (ETHERINGTON, 2004, p.11).

Acredito que muito antes da minha entrada no campo de pesquisa, ou até mesmo da confecção do projeto norteador deste estudo, meu olhar sobre a inclusão das pessoas com deficiência foi influenciado por minha trajetória familiar. Considero que a etnografia é uma forma de enxergarmos o mundo pelas lentes do outro. Nesse sentido, a convivência com minha mãe e com os meus irmãos fez com que eu percebesse o mundo da pessoa com deficiência intelectual pelas “lentes” de irmã (mais velha) e, também, de filha, ao ouvir as representações da minha mãe sobre a maternidade e sobre as dificuldades de educar cinco filhos, três deles com deficiência intelectual, em um contexto de pobreza e negligência do Estado. Assim como Thomas (1993) explica, a etnografia é um trabalho árduo e demanda, antes de tudo, interesse do pesquisador pelo tema de pesquisa.

Dessa maneira, meu processo formativo teve início com a minha educação familiar, muito antes de entrar no ambiente escolar, minha leitura de mundo precedeu a leitura da palavra (FREIRE, 1989) em relação ao meu tema de pesquisa. Assim, em alguns momentos, fiquei emocionada ao ler artigos, como o de Matsukura e Cid (2004), que estudaram a realidade dos irmãos mais velhos de crianças com deficiência. A identificação com os relatos desse artigo e com os relatos dos/as participantes desta pesquisa intensificou a dificuldade emocional nesta pesquisa, mas, ao mesmo tempo, viabilizou insights que só foram possíveis por que minha trajetória deu-me insumos para que pudesse enxergar o tema com maior profundidade, de vários lugares.

Iniciei a explanação pela lente familiar, não por mera ordem cronológica na minha trajetória, mas por entender que essa lente constituiu minha identidade docente, desde a formação no período de graduação. Desse modo, quando iniciei meu trabalho na Secretaria de Educação do Distrito Federal – SEDF, tive acesso à lente de docente. Foi nesse contexto que, influenciada por minha trajetória familiar, busquei formação sobre a inclusão escolar da pessoa com deficiência e iniciei os estudos sobre o tema. Primeiramente, no curso de Atendimento Educacional Especializado, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); depois, em especialização oferecida em parceria entre UnB e SEDF, de letramentos e práticas interdisciplinares, na qual realizei estudo de caso sobre as postagens de pessoas com deficiência intelectual no Facebook (OLIVEIRA, 2015).

Ainda sobre a lente de docente, preciso explicar que o exercício da docência na escola na qual realizei minha pesquisa influenciou positivamente minha relação com os/as

participantes da pesquisa. Heath e Street (2008) explicam que pode ser extremamente difícil para o(a) etnógrafo(a) estar em um campo conhecido. Entendo que a dificuldade em realizar a pesquisa na escola onde trabalhei por seis anos como docente estava ligada à redefinição do meu lugar no campo de pesquisa; o lugar de pesquisadora é diferente do lugar de professora. Minha participação como educadora era muito ativa e os estudantes que não estavam participando diretamente da pesquisa continuaram a procurar minha ajuda para resolver algumas questões com a gestão. Eu escutava os estudantes e dizia a eles que estava ali realizando um trabalho de pesquisa, e explicava em detalhe meu interesse. Depois de aproximadamente um mês de observações iniciais, os estudantes já tinham entendido. Não é meu objetivo aqui assumir uma postura neutra, como já observei anteriormente. Ainda assim, considero que foi preciso muita reflexividade para que eu entendesse meu papel de pesquisadora na comunidade que eu tanto conhecia.

Ao passo que senti dificuldade durante a pesquisa em ressignificar meu lugar, tive o privilégio de ter acesso a informações importantes sobre o cotidiano escolar, em razão da minha relação com a comunidade escolar. Por conhecer muitas pessoas do campo, fui incluída nos grupos de WhatsApp de professores e estudantes, o que possibilitou um olhar expandido para o campo de pesquisa.

Sei que as consequências da segregação e da discriminação sofridas pelas pessoas com deficiência no decorrer da história do nosso País (Capítulo 1) ainda podem ser observadas no campo de pesquisa. O silenciamento das famílias, em razão do isolamento social e das diversas maneiras de discriminação sofridas, ainda que como maneira de proteção, marca uma posição de subalternidade, tanto das pessoas com deficiência quanto dos seus familiares. Diante desse contexto, entendo que meu lugar de pesquisadora da universidade é um fator de distanciamento em relação às famílias, já que dividir sua história em razão de um estudo não parece atrair as pessoas.

O lugar conferido aos(às) pesquisadores(as) no decorrer da história estabeleceu representações sobre o conhecimento do(a) pesquisador(a) como autoridade em razão do seu conhecimento acadêmico. Em alguma medida, esse conhecimento, destacado da realidade social, afasta ainda mais os/as participantes da pesquisa. Desse modo, defendo que o compartilhamento da minha trajetória de vida com os/as participantes da pesquisa, bem como nesta dissertação, seja entendido como exercício de reflexividade. Portanto, assim como afirma Berger (2001, p.513) “não significa que eu não sou uma cientista social e não vejo as coisas através das lentes do meu treinamento científico social. Essa lente faz parte de quem eu sou, e essa é a lente que me permite analisar e tirar conclusões sobre meu trabalho de campo.”

Entendo, portanto, que minha interpretação do campo de pesquisa é atravessada pelas lentes que adquiri no decorrer da minha trajetória e que essas lentes também fazem parte de quem sou como pesquisadora. Assim, considero a autoetnografia defendida por Berger (2001) como uma maneira de contestar o histórico colonialista do nosso País e, porque não dizer, a forma de fazer pesquisa. Desse modo, com o objetivo de contestar essa relação desigual, tive muitas conversas informais, antes mesmo de construir o projeto. Nesse momento, dividi com os/as participantes da minha pesquisa a minha história de irmã, filha e docente a fim de que entendessem o meu propósito de estudo e de que se sentissem participantes desse momento de pesquisa e não apenas sujeitos.

Esta etnografia, portanto, teve três momentos de maior relevância: inicia-se desde a minha infância, com o convívio com meus irmãos e com a minha mãe; continua no meu processo de formação e atuação docente; e, por fim, materializa-se em pesquisa acadêmica e resulta na presente dissertação.