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CAPÍTULO II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

2.2 Dialetologia Pluridimensional

Os estudos dialetais no Brasil apresentam sua primeira manifestação, de acordo com Ferreira e Cardoso (1994), em 1826 com Visconde de Pedra Branca, que descreve a língua do Brasil ressaltando os empréstimos das línguas indígenas. A partir dessa data, as autoras consideram três fases na história dos estudos dialetais.

A primeira fase inicia-se em 1826 e vai até 1920, data da publicação de “O dialeto caipira” de Amadeu Amaral. Essa primeira fase caracteriza-se pela produção de trabalhos voltados para o estudo do léxico no PB. Observa-se, a partir das publicações, que esta fase apresenta caráter lexicográfico (glossários e dicionários) com um primeiro estudo de natureza gramatical (“O idioma hodierno de Portugal comparado com o do Brasil” – 1879, de José Jorge Paranhos da Silva).

O início da segunda fase dá-se com “O dialeto caipira” e apresenta predominância de trabalhos voltados para os estudos gramaticais, mesmo que ainda se produzam estudos lexicográficos. Embora se leve em conta o conhecimento empírico da realidade lingüística e não haja trabalho no campo sistemático, já se experimenta a observação direta à área a ser descrita e a preocupação com uma metodologia para o exame da realidade. Os destaques dessa fase são: “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral (1920), e “O linguajar carioca” de Antenor Nascentes (1922).

A terceira fase caracteriza-se pela produção de trabalhos com base em corpus e é marcada pelo início das preocupações com o desenvolvimento e implementação dos estudos de geografia lingüística no Brasil. Manifesta-se também a intenção de elaborar- se o Atlas lingüístico do Brasil que toma forma de lei em 20/03/1952. Ferreira e Cardoso (1994) evidenciam a importância, nessa fase, de quatro autores para o desenvolvimento da geografia lingüística no Brasil: Antenor Nascentes, Serafim da Silva Neto, Celso Cunha e Nelson Rossi.

Até a terceira fase, a tradição nos estudos dialetais volta-se para a investigação da língua na perspectiva da variação relacionada à dimensão diatópica, restrita ao espaço geográfico, a chamada dialetologia monodimensional. A dialetologia monodimensional visa, então, ao estudo dos dialetos na dimensão horizontal apenas, ou seja, preocupa-se com a variação diatópica. Já a dialetologia pluridimensional,

perspectiva recente, alarga a análise para além da dimensão horizontal – eixo da arealidade44 – estendendo-se para a dimensão vertical – eixo da socialidade.

2.2.2 Os estudos em Portugal

Em relação aos estudos da dialetologia portuguesa, há uma longa tradição na recolha de materiais para a constituição de atlas lingüísticos. Diferentemente do Brasil, Portugal já possui um atlas do continente português.

Segundo Cintra (1995), José Leite de Vasconcelos é o fundador da dialetologia científica em Portugal. Em 1893, o autor apresentou pela primeira vez o seu Mapa Dialetológico do Continente Português, publicado em 1897, o qual já foi revisto e, posteriormente, foram apresentadas algumas tentativas de classificação dos dialetos portugueses continentais.

Uma delas, feita em 1901, foi proposta também por Leite de Vasconcelos. Em 1929, o autor volta a publicar o Mapa Dialetológico com várias modificações, o que passa a ser considerado como uma nova proposta de classificação.

Em 1942, Manuel de Paiva Boléo lança uma nova classificação baseada em inquéritos lingüísticos por correspondência. O mapa, elaborado com a colaboração de sua discípula, Maria Helena dos Santos Silva, foi publicado em 1959.

Uma outra proposta de classificação dos dialetos portugueses aparece na Gramática de Pilar Vázquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, publicada em 1961.

Partindo das propostas de classificação dos autores citados, Cintra (1995) apresenta uma nova proposta em que considera, diferentemente dos autores, os dialetos galegos, os dialetos portugueses setentrionais e os dialetos portugueses centro- meridionais.

Outra recolha que envolve os estudos de dialetologia portuguesa, de acordo com Cintra (1995), deu-se para o Atlas Lingüístico da Península Ibérica. Os inquéritos em Portugal foram feitos em duas fases. A primeira entre os anos de 1932 a 1936 e a segunda entre 1947 e 1954. Nessas duas fases, foram coletados dados em 92 pontos do país.

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2.2.3 Pressupostos da Dialetologia

Os estudos de dialetologia, como o próprio nome sugere, ocupam-se da investigação e da descrição dos dialetos. Não há, na literatura, um único conceito para o termo. Vejamos o sentido de dialeto de acordo com o ponto de vista de alguns autores.

Para Coseriu (1982), o termo dialeto “designa uma língua menor incluída em uma língua maior, que é, justamente, uma língua histórica (um idioma)” (p.12). Dessa forma, o autor enfatiza a diferença entre língua e dialeto em termos de status histórico “dialeto sem deixar de ser intrinsecamente uma ´língua´, é considerado subordinado a outra ´língua´ de ordem superior” (p.11).

Coseriu reconhece que as línguas históricas não estão sujeitas somente à variação dialetal (espacial/diatópica), mas também à variação sociocultural (diastrática) e à variação estilística (diafásica). No entanto, para o autor, cabe à dialetologia o estudo dos dialetos, já o estudo dos níveis diastráticos cabe à sociolingüística; e dos níveis diafásicos, à estilística. Para o autor, portanto, a dialetologia restringe-se ao estudo dos dialetos na dimensão espacial, diatópica.

Ferreira e Cardoso (1994) definem língua como “um sistema de sinais acústico- orais, que funciona na intercomunicação de uma coletividade. É resultado de um processo histórico, evolutivo” (p.11). Para as autoras, a língua constitui-se como um sistema abstrato, pois, quando concretizada na fala, já aparece diversificada. Já o dialeto, conforme as autoras, define-se como “um subsistema inserido nesse sistema abstrato que é a própria língua” (p.12). Esse parece ser, na verdade, o conceito mais difundido na dialetologia, dialeto entendido como um subsistema dentro do sistema que é a língua.

Chambers e Trudgill (1980) rejeitam a noção de dialeto como uma forma subpadrão, de baixo status, vista como uma forma rústica de língua, associada à classe trabalhadora ou a grupos de baixo prestígio; e ao contrário, adotam

a noção de que todos os falantes são falantes de ao menos um dialeto – o inglês standard, por exemplo, é apenas um dos muitos dialetos como qualquer outra forma do inglês – e que não faz sentido supor que um dialeto seja lingüisticamente superior a outro (p.03)45.

Os autores discutem o critério da mútua inteligibilidade para a distinção entre língua e dialeto. Segundo o critério, “a língua seria uma coleção de dialetos mutuamente

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“[…] the notion that all speakers are speakers of at least one dialect – that standard English, for example, is just as much a dialect as any other form of English – and that it does not make any kind of sense to suppose that any one dialect is in any way linguistically superior to any other”.

inteligíveis” (op. cit., p.03) e caracteriza dialeto como subparte de uma língua. No entanto, conforme os autores, esta caracterização de ´língua´ e ´dialeto´ não dá conta de todos os exemplos. As línguas escandinavas, por exemplo, como o norueguês, o sueco e o dinamarquês, são consideradas línguas diferentes e são mutuamente inteligíveis. Por outro lado, o alemão é considerado apenas uma língua e, no entanto, algumas formas do alemão são ininteligíveis para os falantes.

Os autores enfatizam que o critério da mútua inteligibilidade tem alguma relevância, mas não é totalmente eficaz na delimitação do que é ou não uma língua, já que existem razões políticas, geográficas, históricas, sociológicas e culturais, assim como razões lingüísticas, envolvidas nesta delimitação.

Chambers e Trudgill afirmam que seria melhor substituir o termo ´língua´ por ´variedade´, termo que se aplica a qualquer tipo particular de língua. O termo variedade pode se referir a variedades fonética/fonologicamente diferentes de outras, que se chamariam ´acento´, ou a variedades gramaticalmente (e talvez lexicalmente), bem como fonologicamente diferentes de outras, que seria o ´dialeto´.

Os autores evidenciam, ainda, que a língua pode ser vista como uma variedade autônoma com variedades dependentes, heterônomas. No entanto, esses papéis podem mudar, ou seja, variedades heterônomas podem tornar-se autônomas em função de desenvolvimento político, por exemplo, e ´novas línguas´ podem se desenvolver.

Assim, os autores sinalizam para o fato de que a situação lingüística está imbricada a situações políticas, históricas e sociais; por isso, a definição de língua e dialeto não pode ser estanque; o que é uma língua hoje pode ter sido um dialeto, ou seja, uma variedade que por algum motivo (seja histórico, político ou social) adquiriu certo status e passou a ser língua oficial, situação que, possivelmente, pode mudar com o passar do tempo. Desta forma, acreditamos ser esse o conceito de dialeto que mais se adequa aos objetivos deste trabalho, dialeto entendido como variedade lingüística.

Esse conceito de dialeto parece estar mais adequado à proposta que seguiremos neste trabalho, a da dialetologia pluridimensional, que, conforme apontada anteriormente, se ocupa tanto do estudo das variedades lingüísticas no eixo da arealidade, quanto no eixo da socialidade. Dessa forma, entendemos que os dialetos podem variar tanto em termos horizontais (no espaço geográfico), como em termos verticais (nos diversos estratos sociais).

De acordo com Bellmann (1999, p.20), o estudo bidimensional, nos eixos da arealidade e da socialidade, atinge bons resultados “desde que se efetue o levantamento dos dados com suficiente exatidão”.

A mudança de perspectiva parece se dar, conforme Radtke e Thun (1996), a partir do momento em que se detecta certa crise na geolingüística46 românica contemporânea que vê diminuir o interesse pela disciplina e conseqüentemente diminuir a investigação a partir desse método. De acordo com os autores, a dialetologia e a geolingüística se distanciaram da realidade, pois não davam conta do mundo moderno das cidades, da mobilidade populacional, dos meios de comunicação, sendo superadas por ciências como sociolingüística, pragmática, psicolingüística, entre outras, tornando- se disciplinas obsoletas.

Desta forma, a dialetologia passa a transitar em novos caminhos, apoiando-se em novos parâmetros, métodos e meios técnicos, combinando, assim, o parâmetro diatópico, com os seguintes parâmetros: diastrático (referente aos diferentes estratos sociais, podendo ser nível socioeconômico, nível de escolaridade), diageracional (referente à idade), diassexual (referente ao sexo masculino e feminino), diafásico (referente aos diferentes estilos de fala), diarreferencial (referente à atitude do falante em relação à língua). No que tange à dimensão diatópica, costuma-se subdividi-la em topostática, que se refere ao controle dos falantes com pouca mobilidade, aqueles que nascem, vivem e trabalham no mesmo local, e em topodinâmica, controle de falantes com certo grau de mobilidade.

Com essa mudança de perspectiva, os informantes selecionados também mudam seu perfil. Enquanto para a dialetologia monodimensional bastava um único representante de uma determinada localidade geralmente homem, mais velho, de nível sociocultural baixo, residente na zona rural, com pouca mobilidade espacial e com poucos contatos com pessoas de fora, características do que se considerava representante legítimo da localidade, portanto, falante do dialeto típico do lugar, principalmente no que diz respeito ao léxico e a marcas fonéticas, para a dialetologia pluridimensional, são exigidos informantes com diferentes perfis em cada um dos pontos47 selecionados; só assim as várias dimensões poderão ser controladas.

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O termo geolingüística refere-se ao método utilizado na dialetologia, tanto monodimensional, quanto pluridimensional, que trata da variação lingüística no espaço.

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Como vimos, a perspectiva que será adotada em nosso trabalho, a da dialetologia pluridimensional, visa à investigação da variação da língua na dimensão geográfica e também na dimensão social. Acreditamos que essa nova perspectiva da dialetologia permite um trabalho associado à perspectiva da sociolingüística variacionista para a investigação da heterogeneidade lingüística, já que, como Thun (1998) evidencia, a dialetologia pluridimensional é formada pela superfície dialetológica horizontal (variação geográfica) e pelo eixo vertical da sociolingüística (variação social), analisando, então, os planos vertical e horizontal da linguagem e suas relações.