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CAPÍTULO II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

2.5 Perfil sócio-histórico de Florianópolis e de Lisboa

2.5.1 Florianópolis

Neste momento, baseando-nos em fontes históricas, traçaremos o perfil da cidade de Florianópolis, antiga Nossa Senhora do Desterro, local em que se constituiu a amostra do PB. Evidenciaremos alguns fatos históricos, partindo dos primeiros habitantes, detendo-nos um pouco mais na colonização açoriana, chegando até os dias atuais.

Florianópolis é uma ilha situada na região sul do Brasil, capital do Estado de Santa Catarina (SC). Apresenta uma superfície de 431 km2, medindo 54 km de comprimento, 18 km de largura e uma orla de 172 km.

Conforme pesquisas arqueológicas realizadas na Ilha de SC, o povoamento da região parece ter se iniciado em 3000 a.C. “por grupos humanos que eram ou se tornaram pescadores e coletores de moluscos, além de, secundariamente, praticarem a caça” (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p.11). Estas mesmas fontes indicam que a partir do ano 1000 d.C., “tais grupos foram substituídos por populações que conheciam a cerâmica e eram, possivelmente, praticantes de uma incipiente agricultura” (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p.11). Por volta de 1400, a ilha passa a ser ocupada por indígenas da nação Carijó, migrantes do Chaco paraguaio, da nação Tupi-Guarani, que, provavelmente, passaram por algum tempo convivendo com as populações que viviam no lugar anteriormente.

No início do século XVI, os europeus chegam à ilha, habitada pelos Carijó desde o século XV, resistindo até o século XVII. Com a vinda dos europeus, os Carijó passaram a ser caçados, escravizados e exterminados pouco a pouco, como relata a história das nações indígenas por todo o país. Alguns morreram em decorrência do tráfico para as fazendas paulistas e nordestinas; outros, durante a sua catequização pela Companhia de Jesus, pelas doenças que os brancos traziam, como pneumonia, sarampo, varíola e gripe. Enfim, depois de 200 anos, o contato com o europeu dizimou uma população que era, em princípio, numerosa.

A Ilha de SC recebia, desde os primeiros anos após a expedição de Cabral, navegantes dos mares do sul, mas o povoamento português efetivou-se no século XVII. Francisco Dias Velho, nobre de São Vicente54, por volta de 1675, funda Nossa Senhora do Desterro e “requer do governo da capitania paulista duas léguas em quadra na Ilha, justificando ter instalado uma igreja em devoção a Nossa Senhora do Desterro, benfeitorias e culturas na referida área” (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, 1995, p. 18). Assim, inicia-se o povoado da ilha com 400 habitantes, entre familiares, agregados e escravos do fundador.

Dias Velho, em 1687, aprisiona um navio corsário e envia os piratas para São Vicente com sua carga. A Fazenda Real se apodera da carga e liberta os prisioneiros que dois anos depois, voltam à ilha para se vingarem. Dias Velho é morto, sua família

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A Vila de São Vicente foi o primeiro núcleo de povoação portuguesa estabelecido na costa brasileira, fundado no litoral de São Paulo em 1532 por Martim Afonso de Souza.

retorna a São Paulo, com exceção de um dos filhos que se instala em Laguna55, cidade do litoral sul de SC. Ficam, no vilarejo, pouquíssimos moradores, após a tragédia.

Após 1700, chega à ilha o lisboeta Manoel Manso de Avelar com sua família. Considerado um ditador, Avelar torna-se líder da povoação e dedica-se ao contrabando com os navios estrangeiros que aqui aportavam, trocando produtos da terra por armas, pólvora e roupas. Durante seu mandato, o povoado não cresce; há um relato de 1719 afirmando que não havia no Desterro mais de 27 casas e 130 habitantes.

Em 23/3/1726, o povoado do Desterro é elevado à categoria de Vila, desmembrando-se de Laguna. A partir desta data, a povoação passa a se desenvolver, impulsionada por projetos militares, pela colonização açoriana e pela pesca à baleia.

A colonização açoriana inicia-se, de fato, em 06/01/1748, quando desembarcaram 461 pessoas, num total de 88 casais vindos do Arquipélago dos Açores56. De acordo com Furlan (1989, p.17), no período de 1748 a 1756, vieram para o litoral de SC 607157 açorianos que se somaram aos 4197 catarinenses, resultando um aumento demográfico de 144,6%.

A colonização açoriana “visava” dois objetivos; o primeiro era

resolver o problema de parte da população das ilhas, que formava uma verdadeira massa de miseráveis, desprovida de terras para o cultivo e sem emprego; o segundo era atender às necessidades políticas do Reino, de ocupação das terras do Sul do Brasil, disputadas com a Espanha (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, p. 24).

Neste período em que se inicia a colonização no litoral catarinense, os Açores passam por uma grave crise agrícola, com o esgotamento da fertilidade da terra; além disso, “houve várias catástrofes naturais: tempestades, secas, pragas, sismos, erupções vulcânicas” (FLORES, 2000, p.32); a emigração tornava-se, assim, a saída para muitos

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De acordo com Farias (2000), Santo Antônio dos Anjos da Laguna, Nossa Senhora do Desterro e Nossa Senhora da Graça do Rio São Francisco foram as primeiras povoações do litoral catarinense fundadas por vicentistas e portugueses.

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A origem do nome Açores, conforme Farias (1998), vem de uma espécie de águia conhecida por Açor encontrada pelos primeiros visitantes das ilhas.

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Segundo Furlan (1989, p.177), os açorianos estabeleceram-se no litoral central de Santa Catarina (de Laguna ao Rio Camboriú), procedendo das ilhas de São Miguel (328), Terceira (912), Graciosa (772), São Jorge (2822), Pico (1776), Faial (1207) e da Madeira (579). Como podemos observar, as ilhas que tiveram maior participação na colonização foram: Terceira, Graciosa, São Jorge, Pico e Faial; são as ilhas que formam o conjunto central do arquipélago. A ilha de São Miguel teve pouca participação; juntamente com a ilha de Santa Maria, que não teve participação na colonização, forma o conjunto oriental do arquipélago. A parte ocidental do arquipélago constitui-se das ilhas de Flores e Corvo, que não tiveram participação alguma. A ilha da Madeira não faz parte do arquipélago e teve pouca participação também na colonização.

açorianos sem trabalho e sem sustento. No entanto, as dificuldades já começavam durante a viagem para o Brasil:

Na promiscuidade dos alojamentos, as afecções cutâneas iam passando de uns para os outros. Surgia a parasitose. Surgiam as disenterias. E, com o correr dos dias, quando a viagem se adiantava, em meio do caminho, entre céu e mar, aparecia o pior: o mal de Loanda, que misteriosamente ia atingindo a fracos e fortes, homens e mulheres, poupando as crianças de peito, e que ia aos doentes alquebrando as forças, tirando-lhes a resistência física e moral. As pernas edemaciavam-se, a pele cobria-se de manchas que rebentavam em flictenas e ulceravam, o andar tornava-se trôpego e pesado, a língua grossa e saburrosa, não conhecia o paladar. Instalava-se a taquicardia, a dispnéia e uma fadiga sem fim prostrava mesmo os mais resistentes. Os dentes amoleciam nas gengivas edemaciadas e sangrentas. Era assim o mal de Loanda, o mesmo que dizimava os africanos nos navios negreiros. Era o escorbuto, a avitaminose, os resultados da falta de alimentos frescos, de frutas, de legumes, de vitamina C, que, então parecia paradoxal, desconcertante, pois ia fazendo vítimas mesmo entre aqueles que se julgavam capazes de resistir às peripécias da viagem (CABRAL, 1951, apud FLORES, 2000, p.50).

Para cada casal, açoriano e madeirense, o governo português determinou que “fosse distribuído um lote de um quarto de légua (1650 metros) em quadro, duas vacas e uma égua, além de sementes e ferramentas” (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, p. 24).

As condições encontradas pelos açorianos tornaram sua adaptação lenta e difícil. O cultivo de trigo, cultura tradicional dos açorianos, não se adaptou ao clima da região. As vacas e éguas que haviam sido prometidas foram entregues a poucos. Os rapazes mais fortes eram chamados ao treinamento militar, embora o edital de inscrição para a imigração determinasse que seriam dispensados de tal tarefa. Desta forma, as terras foram sendo abandonadas e o trabalho agrícola substituído por ofícios urbanos diversos e pela pesca. Aqueles que ficavam na terra cultivavam mandioca, herança Carijó, desconhecida nos Açores, e o preparo da farinha passou a ser a principal fonte de renda. Nesse período, desenvolvem-se na ilha as armações de baleia, inserindo muitos açorianos na atividade pesqueira, e na construção naval, como ilustra o relato do viajante alemão Heinrich von Langsdorff, “o empreendimento da caça à baleia e produção de óleo é grande e oferecem trabalho e sustento a algumas centenas de almas [...]” (DE HARO, 1996, p. 178).

Farias (1998) evidencia as várias contribuições trazidas pelos açorianos para o litoral catarinense. São eles que introduzem diversas espécies de uvas e iniciam a produção do vinho caseiro no século XVIII. Introduzem, ainda, o trigo, a cevada, embora não tenham se adaptado ao solo e ao clima da região, sendo substituídos pela

mandioca, planta da região, e pela cana-de-açúcar, trazida dos Açores. Introduzem também o cultivo de vagens, couves, figo, laranja. Produzem a partir de 1796 o café em SC, antes mesmo de sua introdução no sudeste. Como evidencia o relato de Adam von Krusenstern “no continente, bem como na ilha, o solo é notavelmente fértil. Excelentes café e açúcar são cultivados aqui” (DE HARO, 1986, p.140).

Contribuindo decisivamente na formação da população da Ilha, os açorianos influenciaram a cultura local com a olaria cerâmica utilitária e decorativa, a produção artesanal (renda-de-bilro, crivo, produção em teares manuais, artesanato de palha e taquara, artesanato em conchas e moluscos), os jogos e brinquedos (peão, cinco marias, pandorga/pipa, peteca, taco, bolinha de vidro), as danças (ratoeira, pau-de-fita, arco-de- flores, quadrilha), os folguedos (farra do boi, malhação de judas, boi-de-mamão, terno de reis, cantoria do Divino), a literatura (pão-por-Deus, pasquim), a religiosidade expressa nos nomes das localidades (Santo Antônio, Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão, Cachoeira do Bom Jesus), as festividades religiosas (Festa do Divino Espírito Santo, Festa de Passos, Coberta d’alma), além das técnicas de produção (engenho de farinha, carro de boi, baleeira, construções de redes, espinhéis com anzóis de ferro, tarrafas, alambique de aguardente), da gastronomia (peixe, pirão, farofa), da mitologia (lobisomens e bruxas), da medicina popular (benzeduras e orações), da arquitetura (casas geminadas, sobrados), “havendo que se destacar ainda o linguajar local, caracterizado pelo ‘som cantado’ e pela alta velocidade de flexão vocal” (FUNDAÇÃO FRANKLIN CASCAES, p. 29).

Como Farias (2000) evidencia, a Ilha de SC foi formada pelos valores trazidos pelos imigrantes açorianos somados aos valores vicentistas, que já haviam se fixado no litoral catarinense entre os séculos XVII e XVIII, bem como das culturas indígena, negra e de outras minorias.

Em meados de 1894, Nossa Senhora do Desterro passa a se chamar Florianópolis em homenagem a Floriano Peixoto. Até hoje muitas pessoas que conhecem a história da cidade questionam tal homenagem feita pela Assembléia Legislativa no ano em que o coronel Antônio Moreira César, governador de SC, nomeado por Floriano, fuzila, sem qualquer julgamento, na Fortaleza da Ilha de Anhatomirim, 185 homens, alegando fazerem parte da Revolução Federalista.

Chegando ao século XX, notam-se mudanças no panorama de Florianópolis: a iluminação a querosene ou a gás é substituída pela elétrica, os bondes puxados a burro começam a transitar pelas ruas, até serem substituídos por veículos motorizados, além

das redes de esgoto e dos novos veículos de comunicação. Há, como em todo o país, um processo de urbanização e a ampliação da expectativa de vida da população com a melhoria nas condições de higiene e saúde.

Em 1926, inaugura-se a ponte Hercílio Luz que liga a ilha ao continente, fazendo desaparecer o tráfego de lanchas e balsas pelo canal. A cidade assume condição de pólo regional e reforça significativamente seu contato com o interior do estado.

No fim da década de 50, início da de 60, há a implantação da UFSC, que passa a empregar muitos professores, atrai grande número de estudantes do interior e de outros estados. Há um grande deslocamento populacional facilitado pela abertura da BR10158. No início dos anos 70, instala-se a indústria turística, delineando novos ramos para a economia local e atraindo novos contingentes populacionais.

A paisagem modifica-se com a destruição dos antigos casarios, a criação de modernos edifícios, a construção de duas novas pontes (Colombo Salles, Pedro Ivo Campos) e com o aterro da Baía Sul, que afasta a cidade do mar.

No que se refere à colonização açoriana, o que se observa hoje é a preocupação em recuperar os valores da cultura trazida dos Açores, que, em função de alguns preconceitos, foi sendo esquecida.

De acordo com Farias (2000), o contato dos descendentes ítalo-germânicos com a cultura açoriana gerou certos preconceitos, ainda hoje existentes na comunidade catarinense. Viam o homem do litoral como malandro e preguiçoso, pois os ítalo- germânicos costumavam trabalhar durante todo o período diurno, já que vinham de centros urbanos acostumados aos horários comerciais-industriais, o que não era o caso dos luso-açorianos “que estavam na venda por volta de 4 e 5 horas da tarde tomando uns tragos e contando casos” (p.105). No entanto, esses homens eram pescadores e possuíam um ritmo de trabalho diferente, pois às 4 horas da manhã já estavam colocando o barco no mar e voltavam para casa por volta das 3 horas da tarde. Os horários em que eram vistos era no seu período de folga.

Os descendentes ítalo-germânicos também viam os luso-açorianos como “um povo ignorante, atrasado, que não tem ambição, se conformando com o que tem, por isso é que é pobre” (FARIAS, 2000, p.106). De fato, os ítalo-germânicos vieram para SC em meados do século XIX59, período da Revolução Industrial, o que deve ter

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Vale ressaltar que a população brasileira de modo geral sofre intenso êxodo rural ao longo do século XX, de 70% de população rural em 1940, passa a 44% em 1970, chegando a 20% em 1996.

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De acordo com Margotti (2004), os alemães chegaram em SC a partir de 1829 e os italianos por volta de 1875.

influenciado a sua mentalidade capitalista, e também por terem sido trazidos pelas companhias de colonização que cobravam pelas terras e transportes, o que os obrigava a ter uma mentalidade acumulativa. Já os luso-açorianos não tinham essa mentalidade capitalista, pelo contrário, sua economia era de subsistência, trabalhavam o necessário para sobreviverem, sem ambicionar acumular riquezas.

Esse contraste entre as culturas fez com que os descendentes ítalo-germânicos não permitissem, inclusive, casamento interétnico com os descendentes luso-açorianos “filho(a) meu (minha) não casa com brasileiro(a) (descendente de luso-açoriano) senão não entra mais na minha casa, não é mais meu(minha) filho(a) será deserdado(a)” (FARIAS, 2000, p.107).

Os descendentes luso-açorianos passaram a sentir certa pressão em função dos valores culturais dessas sociedades tecnologicamente mais qualificadas e competitivas que passaram a mostrar “um outro universo de bens de consumo, técnicas de produção e visões de vida” (FARIAS, 2000, p.108), que os chamados “manezinhos, mocorongos, atrasados” (p.108) não conheciam.

Para reverter essa sensação de desprestígio cultural que os descendentes dos luso-açorianos passaram a ter, procurando se desfazer de todos os traços caracterizadores dessa cultura, inclusive os lingüísticos, alguns movimentos importantes começaram a surgir. Em 1992, criou-se o Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC, objetivando “devolver ao povo litorâneo o conhecimento de suas raízes históricas e culturais, despertando seu orgulho pelos valores culturais que praticava” (FARIAS, 2000, p. 108).

Esse núcleo passou a oferecer cursos de cultura açoriana, além de divulgar atividades culturais regionais de origem açoriana na mídia. Construiu-se o monumento em homenagem à colonização açoriana em SC, criou-se também o troféu Açorianidade, a Semana da Cultura Açoriana, o Encontro sul-brasileiro de comunidades luso- açorianas. A parceria com o Governo Regional dos Açores também contribuiu com a revitalização da cultura açoriana, viabilizando a ida de pessoas engajadas no projeto para os Açores a fim de realizarem cursos.

Também não poderíamos deixar de lembrar que a mídia passou a destacar Florianópolis como uma das capitais com melhor qualidade de vida, assim como a ascensão do tenista Gustavo Kuerten, que sempre fez questão de enfatizar sua naturalidade e, juntamente com a criação do troféu “Manezinho da Ilha”, fez com que o ilhéu se sentisse de alguma forma prestigiado com o status de manezinho.