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4.4 Retorno do insuportável: racismo e a outra face do servil

4.4.1 A dica de Fanon: o negro como o não eu

“[...] não há mais dúvida de que o verdadeiro outro do branco é e permanece o negro. E inversamente. Só que, para o branco, o Outro229 é percebido no plano da imagem corporal,

absolutamente como o não eu, isto é, o não identificável, o não assimilável” (FANON, 1952/2008, p. 141).

É numa longa nota de rodapé, da qual retiramos esse trecho, que Frantz Fanon nos aponta um caminho baseado na noção lacaniana de Estádio de Espelho para compreender psicanaliticamente a situação racial sentida por consciências particulares, conforme suas palavras. Lamentamos que só tenha podido utilizar as formulações dos primeiros anos da produção lacaniana, uma vez que quando escreveu Pele negra, máscaras brancas (FANON, 1952/2008) Lacan sequer iniciara seus seminários.

Não nos deteremos nos efeitos psicopatológicos que tal situação possa ter sobre os negros, relatados por Frantz Fanon230.’ O que dele iremos apreender, para buscar novas

consequências, será sua hipótese de que a presença do corpo negro poderia trazer ao branco uma perturbação e desestruturação do seu corpo, uma agressão imaginária ao seu esquema corporal. Ainda que não se detenha nesse ponto, Fanon afirma o poder da irrupção de um corpo sobre o outro. Acreditamos que essa sua observação dos negros antilhanos nos fará avançar sobre a intensidade da reação violenta que recai sobre os negros, também no Brasil.

Não se trata de pensar em uma identidade negra, ou em uma regra fixa e universal, mas adentrar alguns possíveis efeitos subjetivos sobre vários sujeitos brancos e negros, de diversos países, a partir do encontro entre eles.

Podemos ler neste autor que não seria a imagem do negro que se tornaria inassimilável ao branco, e sim o que o branco enxergaria dentro de si no seu encontro com o negro, que se tornaria impossível de ser assimilado ou admitido. Esse inadmissível ficaria evidente ao retornar através de reações violentas dos brancos, sobre os negros.

229 Embora Fanon esteja se referindo ao texto lacaniano sobre o Estádio do Espelho (LACAN, 1949/1998), o

conceito de Outro que está utilizando não é aquele proposto por Lacan para diferenciar Outro (lugar do código) e outro (semelhante), uma vez que esta diferenciação foi proposta por Lacan a partir de 1954 (LACAN, 1985) e o texto de Fanon a que estamos nos referindo é de dois anos antes. Este conceito nos parece estar sendo utilizado como o fez Germaine Guex, citada por Fanon algumas páginas antes: “Ser ‘o Outro’ é se sentir sempre em posição instável, permanecer na expectativa, pronto para ser repudiado” (GUEX apud FANON, 2008, p.78).

230 Nascido na Martinica, Fanon apoiou-se na sua escuta e observação sobre as atitudes de negros das Antilhas e

de antilhanos que foram morar na França; ainda que tenha se ancorado em conceitos freudianos e pós-freudianos em diversas articulações, não deixou de sustentar uma forte crítica à psicanálise: “Veremos que a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia” (FANON, 2008, p. 28).

Essa relação do sujeito com o outro, do dentro e do fora, exige uma topologia muito mais complexa do que Lacan pudera apresentar quando de seu artigo “Os complexos familiares na formação do indivíduo”, escrito em 1938 (LACAN, 1938/2003b), citado por Fanon. Topologia esta que vai aparecendo no decorrer da sua obra como uma necessidade teórica, para dar conta da complexidade dessa relação entre eu-outro e da dificuldade em falar que há uma separação entre eles. De tal modo que o inassimilável ou insuportável que estamos abordando, estaria dentro do branco ou dentro do negro?

Entendemos que estaria, como aliás é próprio do campo pulsional, naquilo que se desprende de um e está articulado ao outro, do mesmo modo que não podemos dizer que o olhar está no olho de quem olha, nem no que se dá a ver, mas no que envolve o olhar sendo visto. A atividade da pulsão, como nos aponta Lacan, se concentra neste se fazer: se fazer ouvir, se fazer chupar,se fazer cagar. “Não parece que, nesse reviramento que representa seu bolso, a pulsão, invaginando-se através da zona erógena, está encarregada de ir buscar algo que, de cada vez, responde no Outro?”(LACAN, 1988c, p.185). Quando Fanon diz o quanto se impressionou com o fato de que se o “preto” seria escravo da sua inferioridade, o branco o seria da sua superioridade, ambos se comportando segundo uma orientação neurótica (FANON, 2008/1952), vamos lê-lo com essa lente do que não está somente num ou no outro, mas num circuito pulsional que se passa no entre um e outro: naquilo que se destaca do sujeito, se desprende dele e chega ao outro (NASIO, 1993, 1995; LACAN, 2003a, 2002, 1988c).

Partindo do comportamento de mulheres brancas diante de homens “pretos”, observado quando prestou serviço militar em países da Europa, Fanon aponta que haveria um retraimento e um pavor não dissimulado por parte destas ao receber um convite deles, ainda que estes fossem incapazes de tentar algo contra elas. A partir do conceito de transitivismo, Fanon aponta o quanto elas sentiriam um temor ansioso frente a eles, por serem vistos com uma potência sexual alucinante, expressos na fala: “‘Sabe lá Deus como [os negros] fazem o amor! Deve ser horrível!’” (FANON, 2008, p. 139).

O autor vai escutando o que essa fala revela da relação dessas mulheres com aqueles que encarnariam o símbolo fálico. O negro seria linchado e inferiorizado pelos brancos justamente por representar o ideal de virilidade absoluto: “será que o branco que detesta o negro não é dominado por um sentimento de impotência ou inferioridade sexual?” (FANON, 2008, p. 139).

A violência sobre o negro passa a ser entendida não como um ato frente aquele que seria inferior, mas sim àquele que seria, imaginariamente, superior sexualmente: “A

superioridade do negro é real? Todo mundo sabe que não. Mas o importante não é isso” (FANON, 2008, p. 139).

Assim, Fanon afirma que para se compreender psicanaliticamente a situação racial, não de uma forma global, mas como seria sentida por cada um, seria preciso dar grande importância aos fenômenos sexuais.

“O branco está convencido de que o negro é um animal; se não for o comprimento do pênis, é a potência sexual que o impressiona. Ele tem necessidade de se defender deste ‘diferente’, isto é, de caracterizar o Outro” (FANON, 2008, p. 147). O negro ficaria eclipsado ao ser transformado em pênis no imaginário dos brancos: provocaria horror, desejo, preocupação, mas nunca a indiferença (FANON, 2008).

O conceito que Fanon vai cercando extrapola o território do prazer, tanto assim que cita como exemplo o depoimento de uma prostituta que teria uma preferência por homens pretos desde que escutara a história de uma mulher que teria perdido a razão ao fazer amor com um deles. Ela tentava reproduzir essa situação, encontrar esse segredo inexprimível, buscar uma ruptura e dissolução do próprio ser no plano sexual, um delírio orgiástico, segundo as palavras de Fanon (2008). Haveria melhor descrição para a fantasia de um gozo desmedido e sem limites?

Tanto assim que Fanon afirma que, para a maioria dos brancos, o negro representaria o instinto sexual não educado, a potência genital acima da moral e das interdições (FANON, 2008), ou seja, um suposto gozo que não estaria submetido à lei. “Qualquer aquisição intelectual exige uma perda do potencial sexual. O branco civilizado conserva a nostalgia irracional de épocas extraordinárias de permissividade sexual, cenas orgiásticas, estupros não sancionados, incestos não reprimidos” (FANON, 2008, p. 143). O que o autor afirma é que o branco projetaria essas fantasias no “preto”, como se ele fosse capaz de realizá-las efetivamente.

No que tange às mulheres, Fanon se atém às atitudes e fantasias das mulheres brancas em relação aos homens negros: “As brancas, por uma verdadeira indução, sempre percebem o preto na porta impalpável [...] das sensações sexuais alucinantes... Mostramos que a realidade desmente todas essas crenças. Mas tudo isso se acha no plano do imaginário” (FANON, 2008, p. 152). Sua observação o leva a uma articulação com a produção de autoras pós-freudianas que lhe são contemporâneas, baseando-se numa leitura de Hélène Deutsch e Maria Bonaparte sobre a sexualidade feminina. A partir daqui já não o acompanharemos mais, uma vez que nossa leitura se distancia do que o autor expõe como realização definitiva da sexualidade feminina.

De qualquer modo, o próprio Fanon afirma que, ainda que sua tese sobre a psicossexualidade da mulher branca frente ao homem negro estivesse certa, ele não teria a mínima ideia do que propor para a “mulher de cor” (FANON, 2008).

Não acreditamos numa identidade negra, assim como não acreditamos numa identidade branca; também não acreditamos numa identidade da mulher ou do homem, como desenvolveremos mais detidamente adiante. Ao falarmos desse insuportável que retorna no encontro do negro com o branco, não pretendemos criar uma regra universal sobre categorias identitárias fixas. Se não consideramos o sujeito idêntico nem a si mesmo, uma vez que para nós a identidade seria sempre uma construção fugidia, o que dirá de uma identidade de um grupo? No entanto, nossa intenção ao considerar o campo discursivo em que estão incluídos, brancos e negros, é considerar os processos identificatórios envolvidos na relação destes sujeitos, considerando que o sujeito se constitui a partir do outro e do Outro, seja naquilo que é possível ver refletido na sua imagem ou na do outro, seja naquilo que escapa sempre à imaginarização e à simbolização231.

Consideramos que Fanon tocou em algo fundamental dessa concepção de identificação que vai muito além do especular, quando nos fez ver que a presença do negro colocaria o branco frente ao não eu, ao não assimilável. Lacan avançará muitíssimo sobre esse não eu presente na relação do sujeito com o outro/Outro, mas Fanon não terá a chance de ler essas contribuições. Iremos reler esse apontamento presente em Pele negra, máscara branca (Fanon, 2008) com os recursos proporcionados pela leitura dos textos lacanianos posteriores à escrita deste texto. Com isso, não pretendemos afirmar o que Fanon supostamente já estaria dizendo, mas retorcer um pouco mais o seu texto para tentar tirar novas consequências dele232.

O que podemos articular, seguindo a leitura de Freud e sua releitura por Lacan, é que o que fica marcado como não eu, o inassimilável, não é considerado assim por não ser bom o bastante ou não ser valorizado suficientemente pelo sujeito, mas por tocá-lo em algo que o sujeito julga ameaçar a integridade do seu ser. Trata-se do não eu, na medida em que não é suportável para o eu, pois que atesta a rebeldia de seu próprio desejo ou escancara o que escapa no seu corpo de uma domesticação do gozo. O sujeito tenta aprisionar, domesticar,

231 Lacan dedicou um seminário inteiro ao conceito de identificação durante os anos de 1961-1962 (LACAN,

2003a). Nos anos iniciais de seus seminários havia abordado a identificação somente pelo prisma do Estádio do Espelho, através da identificação imaginária (1954/1986). Seu desenvolvimento sobre o registro do Real exigiu retomar o processo identificatório sobre novas bases, o que esperamos que fique mais claro no próximo capítulo.

232 Seguimos aqui uma indicação de Lacan, em relação à leitura de seus próprios textos: “Sucede a nossos alunos

enganarem-se em nossos escritos, por encontrarem ‘já presentes’ aquilo a que depois nos levou nosso ensino. Não será o bastante que o que ali se encontra não lhe tenha bloqueado o caminho?” (LACAN, 1966/1998, p. 71).

capturar o indomável do desejo humano e do gozo, no outro, por lhe parecer indomável e ameaçador de sua própria integridade e civilidade.

A nossa hipótese é de que não podemos pensar nas mulheres negras brasileiras se não pudermos incluir, no olhar sobre elas, o que cada um que as olha e as reconhece teme não contornar e bordejar em si de seu erotismo, que é, desde a origem e desde sempre, desregrado.