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4.3 Criadas de ontem e de hoje

4.3.1 Mucamas

Primeiro realizada pela força indígena, mas posteriormente pelos africanos e seus descendentes, a escravidão doméstica foi uma das principais modalidades do trabalho escravo no Brasil. A presença dos escravizados domésticos foi marcante nos lares do período colonial: dos mais simples aos mais abastados, fosse nas fazendas ou nas cidades (SOUZA, 2012).

Se no sistema escravista tanto os homens quanto as mulheres eram considerados propriedades do senhor, juntamente com os bens e os animais, há que se marcar as peculiaridades dessa posse do corpo, no caso das mulheres. Para além de serem majoritárias entre os criados domésticos, sua especificidade se inscreve no fato de que se somavam, à ideologia paternalista e ao controle social em relação aos escravizados, as relações de poder baseadas no gênero.

Assim como os homens escravos, as mulheres escravas possuíam um corpo que não lhes pertencia; a particularidade no caso delas, porém, estava no fato de que a sua sexualidade

194 Depoimento no documentário “25 de julho – Feminismo negro contado em primeira pessoa”. Disponível

aparecia ao senhor como se fosse livre de entraves ou amarras, alheia às normas morais e religiosas, para ser apropriada como seu objeto sexual (GIACOMINI, 1988).

Tanto assim que estas escravas recebiam o nome de mucamas: palavra originada de mu´kama, que teria o sentido de ‘amásia escrava’ na língua africana quimbundo195. No Brasil,

recebendo o sentido de “escrava negra moça e de estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou acompanhar pessoas da família e que, por vezes, era ama de leite”196.

“Enquanto mucama,cabia-lhe a tarefa de manter, em todos os níveis, o bom andamento da casa-grande: lavar, passar, cozinhar, fiar, tecer, costurar e amamentar as crianças nascidas do ventre ‘livre’ das sinhazinhas” (GONZALEZ, 1982c, p. 93). Para esclarecer o que significava esse “em todos os níveis”, Lélia Gonzalez acrescenta: “isto sem contar com as investidas sexuais do senhor branco que, muitas vezes, convidava parentes mais jovens para se iniciarem sexualmente com as mucamas mais atraentes” (GONZALEZ, 1982c , p. 93).

Assim, da mesma forma que já abordamos o quanto na relação entre as crianças brancas e as mães pretas o afeto e a promiscuidade, a hierarquia e a diferença estavam presentes de forma absolutamente indissociável, na relação do senhor com esta mulher escravizada, a mucama, que fazia parte da intimidade do lar na casa-grande ou na cidade, essa constatação se repete.

Algumas “criadas de servir” poderiam receber um tratamento diferenciado quando comparadas aos outros sujeitos escravizados, numa certa hierarquia entre eles, mas é preciso lembrar que estes benefícios continuavam numa lógica de dominação social e seguindo a vontade soberana do senhor ou da senhora (SOUZA, 2012).

Embora a condição de escravo atribuísse ao negro o valor de uma coisa, um instrumento de trabalho sem direitos de nenhuma espécie, é preciso lembrar que o processo de coisificação do negro não foi total. Ainda que os brancos lhe negassem a condição humana, tanto objetiva quanto subjetivamente, não só podemos observar as inúmeras e diversas formas de resistência dos negros a esse processo, como os próprios brancos acabaram dispensando tratamentos diferenciados aos diferentes segmentos. O sistema escravocrata apresentava contradições entre os interesses econômicos do senhor branco, enquanto empresário capitalista, e este tratamento diferenciado a certos tipos de escravizados. As regalias podiam chegar à alforria, por motivos de conveniência, mas também pela existência de laços afetivos.

195 Língua falada em Angola, do grupo banto.

196 FERREIRA, A.B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 12ª impressão. Rio de Janeiro:Nova

E amais séria inconsistência deste sistema escravocrata com certeza se referia aos papéis desempenhados pela mulher negra (SAFFIOTI, 2013).

Como nos lembra Saffioti, cabia à escrava, além de sua função no sistema produtivo de bens e serviços, uma função sexual, e essa exigência de prestação de serviços sexuais a tornava ao mesmo tempo res e pessoa humana. “Transfigurava-se, assim, em processo de coisificação o papel que lhe cabia enquanto pessoa, e em criatura humana a coisa (instrumento de trabalho)” (SAFFIOTI, 2013, p. 236). Para além da noção apresentada por Caio Prado Jr., de que a relação entre escravas e seus senhores configurava-se numa relação de um contato primário, animal e puramente sexual, Saffioti (2013) e Gonzalez (1984) apresentam um quadro de tensões relativas a essas relações, incongruentes com as expectativas de um sistema baseado numa lógica puramente econômica e escravista. “Ela [escrava] se constituía no instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida, quer na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familial” (SAFFIOTI, 2013, p. 237-238).

Isto porque a valorização sexual da mulher negra levava a comportamentos antieconômicos por parte do senhor; entre estes, a venda e a tortura de negros com os quais ele competia no campo amoroso e sexual. Surgia, assim, uma disputa entre homens brancos e negros concorrendo pelas mulheres negras, bem como uma rivalidade entre mulheres brancas e negras, pelos homens brancos. Enquanto às brancas197 cabiam as funções de esposa e mãe

dos filhos legítimos do senhor, às escravas cabia a satisfação das suas necessidades sexuais (SAFFIOTI, 2013).

Os ciúmes das senhoras brancas, ocasionados pelas relações amorosas do senhor com as escravas, embora não fosse uma fonte constante de atritos conjugais – uma vez que ambas as mulheres tinham uma posição subalterna em relação ao senhor e que as diferenças sociais entre as brancas e as negras eram gritantes – perturbavam tanto o sistema de trabalho quanto a moralidade, tendo como consequência alguns procedimentos indesejáveis por parte das sinhás (SAFFIOTI, p. 238-239).

Nesse sentido, Gilberto Freyre (1933/2008) nos traz alguns exemplos da crueldade de senhoras de engenho em relação a algumas escravas, provenientes dos relatos de viajantes ou

197 Mary del Priore aponta que é importante atentar para os poderes discretos e informais exercidos pelas

senhoras brancas através da maternidade, que punha em xeque a ficção do poder absoluto do senhor; caso contrário reincide-se numa visão da mulher totalmente passiva no processo histórico. Isto porque, segundo a autora, assim como as mulheres de classe subalterna (normalmente negras, mulatas ou índias) foram apresentadas recorrentemente pela bibliografia tradicional com imagens estereotipadas que as associavam à promiscuidade e lascívia, as senhoras brancas também foram apresentadas estereotipadamente como autossacrificadas, submissas sexual e materialmente (DEL PRIORE, 2009).

da tradição oral: “sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas [...] outras que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas” (FREYRE, 2008, p. 421). Segundo o autor, o motivo seria o ciúme do marido, o rancor sexual e a rivalidade de mulher com mulher. O isolamento e a submissão ao marido em que viviam nas casas-grandes nordestinas talvez fossem um estímulo poderoso ao sadismo das senhoras brancas, completa o autor. Apesar do relato sobre esses atos violentos, é preciso lembrar que Gilberto Freyre idealizava uma nova civilização através da casa-grande, em que a sexualidade brasileira seria considerada resultado, na sua visão, de uma mistura tão benfeita quanto original, em que a convivência cultural parecia se sobrepor à realidade da extrema desigualdade social (SCHWARCZ, 2012a).

Gilberto Freyre (1933/2008), ao considerar que os portugueses não eram racistas, apontava para uma noção de miscigenação e harmonia racial através dos casamentos “inter- raciais”, em que ficava omitido que tais uniões se davam à custa da violência sobre as mulheres negras por parte da minoria branca dominante, os senhores de engenhos, os traficantes de escravos etc. (GONZALEZ, 1982c).

Ainda que o discurso oficial condenasse o hábito entre os homens de “fazerem uso de suas escravas” – fossem eles casados, solteiros, ricos ou pobres – a escravidão era uma fonte privilegiada de concubinatos, pois todos os que possuíam escravas, desde os grandes senhores até os simples trabalhadores, achavam-se no direito de estender o domínio e posse de suas escravas à posse sexual. À mulher de origem africana era associado o pecado de ‘viver em tratos ilícitos’, sendo considerado muito grave ser manceba, amásia ou concubina de um homem casado (DEL PRIORE, 2000).

Se a satisfação das necessidades sexuais dos senhores proprietários cabia às mulheres escravizadas e às prostitutas, pode-se afirmar que o que tornou possível a castidade e a manutenção da rígida normatização da sexualidade das mulheres da camada senhorial foi justamente a presença das mulheres erradas, das mulheres perigosas. A figura da prostituta foi ideologicamente útil para a construção e manutenção de seu oposto: a mulher pura, distante da sexualidade transgressora e desregrada (DEL PRIORE, 2000).

Ou seja, o que é indispensável destacar é que a figura da mucama (assim como a da prostituta) se articula, se alimenta e se constrói em relação à figura da santa-mãezinha, de tal modo que uma não existiria sem a outra.