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Neusa Souza e o discurso elaborado pelo negro acerca de si mesmo

1.4 Psicanalistas negras esquecidas e silenciadas: apagamentos sucessivos de uma

1.4.2 Neusa Souza e o discurso elaborado pelo negro acerca de si mesmo

Com tudo isso, no entanto, o segredo de Virgínia Bicudo não é o único no que se refere à relação da psicanálise brasileira com as autoras negras. Como nos lembra Gomes (2013) a respeito da trajetória intelectual de mulheres negras no Brasil, é fundamental atentar para os processos de fabricação do esquecimento e da memória através “da não citação em trabalhos acadêmicos, da extirpação de textos em compêndios [...] da ocultação da cor do pesquisador” (GOMES, 2013, p. 18).

Lembremos, com Freud, que a fabricação do esquecimento e da memória nem sempre se dá de modo proposital ou consciente. É o que fica evidente em outro caso de apagamento da produção de uma psicanalista negra, tanto pela “não citação de um trabalho acadêmico”, como pela “ocultação da cor do pesquisador” justamente por parte de um autor que buscava denunciar a omissão, a cumplicidade e a complacência com que a psicanálise sempre tratou a questão do racismo. Trata-se do artigo de Jurandir Freire Costa: “Da cor ao corpo: a violência

83Era um programa em formato de novela em que atores encenavam situações cotidianas de tensão e ela

do racismo” (COSTA, 1983, 2003), escrito inicialmente como prefácio ao livro de Neusa Santos Souza, Tornar-se negro84.

O que nos parece paradigmático nesse caso é que o texto de Jurandir Freire Costa tenha provocado uma forma de apagamento e silenciamento do livro pelo qual afirma nutrir grande respeito e considerar da maior relevância, havendo uma homologia sobre o que ocorreu com esse texto publicado e a temática por ele abordada.

Neusa Santos Souza (1948-2008) foi uma psicanalista lacaniana que nasceu na Bahia, mas se estabeleceu no Rio de Janeiro. Estudou Medicina e Psicanálise e para sua pesquisa acadêmica entrevistou dez negros em ascensão social no Rio de Janeiro na década de 1980, escrevendo um trabalho que se tornou uma referência fundamental, tendo sido publicado em 1983 sob o título Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.

Este livro de Neusa Souza trouxe como prefácio o “Da cor ao corpo: a violência do racismo” de Jurandir Freire Costa (1990), bem como um posfácio de Gregório Baremblitt (1990), ambos contundentes, rigorosos teoricamente e poéticos. Posteriormente, Jurandir Freire reeditou este seu Prefácio numa coletânea, com outros quatro artigos de sua autoria, sob o nome Violência e psicanálise, cuja primeira edição foi em 1984.É bastante curioso que no capítulo do livro de Jurandir Freire Costa, embora o texto seja exatamente o mesmo que o do Prefácio, não haja uma só referência bibliográfica ao livro de Neusa Souza que lhe deu origem: nem em notas de rodapé, nem indicação bibliográfica no próprio capítulo ou no final do livro, ou na sua introdução. Claro que como prefácio dentro do próprio livro de Neusa Souza, isso seria desnecessário; mas a questão é que ao deslocá-lo para um livro com outros artigos seus, a ausência do nome dela ou de seu trabalho de pesquisa, não nos permite identificar o texto que ele tomou por base para prefaciar: o leitor de Jurandir Freire não sabe o quanto é ou não leitor de Neusa Souza.85

A única dica sobre o livro ao qual estaria se referindo no decorrer deste artigo é quando Freire Costa afirma que “os estudos sobre as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social levou-nos incoercivelmente a refletir sobre a violência” (COSTA, 2003, p. 136). Ao se referir a esses “estudos”, ele não diz quem os fez e onde encontrá-los, só reproduz

84 As formulações da pesquisa de Neusa Santos Souza serão abordadas detalhadamente no Capítulo 5,Sofia e o

tornar-se uma mulher negra.

85 Jurandir Freire Costa faz referências a uma autora e um livro que estaria prefaciando, mas nunca registrando

seus nomes, como pode ser visto nos exemplos a seguir: “prefaciar o presente livro [...] lendo este trabalho” (COSTA, 2003, p. 135), “comentar um trabalho deste gênero” (COSTA, 2003, p. 136). “Preste atenção a estas vozes que a autora nos fez ouvir” (COSTA, 2003, p. 153).

(não se trata de uma citação) parte do subtítulo do livro de Neusa Souza: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.

As consequências de Jurandir Freire Costa ter deixado de fora o título principal, Tornar-se negro, não nos parecem um detalhe irrelevante. Não só porque Tornar-se negro é o único título que aparece na capa do livro de Neusa Souza e não se constitui um sinônimo do seu subtítulo, mas, principalmente, porque se refere a toda uma formulação do trabalho de Neusa Souza a que Jurandir Freire Costa não faz referência: a possibilidade de um negro, Tornar-se negro.

O que queremos apontar é que essa pesquisa fundante e fundamental desta psicanalista negra, Neusa Souza, foi se tornando uma pesquisa menos acessível e de divulgação mais restrita que o texto que foi escrito como seu Prefácio86. A questão é que o texto de Jurandir

Freire Costa se refere à violência racista87 e o livro de Neusa Souza ao tornar-se negro, como

bem expressa o título de um e de outro. Divulgando a obra de Neusa Souza com a ênfase na perspectiva da violência racista, e sem acesso à obra de referência do texto original, o leitor perde a chance de tomar contato com toda a face de resistência frente a essa violência presente na fala de alguns dos entrevistados de Neusa Souza e, principalmente, na da própria autora.

Uma vez que no artigo-prefácio de Jurandir Freire Costa não é mencionada em nenhum momento a cor de Neusa Souza, o leitor perde a chance de saber que ela era negra e militante e que seu livro representava, para ela, seu anseio de elaborar um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade (SOUZA, 1983).

O último artigo publicado por Neusa Souza foi, provavelmente, “Contra o racismo: com muito orgulho e amor” (SOUZA, 2009), escrito especialmente para a edição de 13 de maio de 2008, por ocasião da comemoração dos 120 anos da abolição da escravatura, a pedido do editor do jornal Correio da Baixada88. Em dezembro do mesmo ano, Neusa Souza morreu:

“suicidou-se sem antes jamais ter dado sinais de depressão ou de que pudesse um dia recorrer ao gesto extremo de tirar a própria vida [...] deixou apenas uma pequena mensagem pedindo desculpas aos poucos amigos do peito por sua decisão radical” (HERKENHOFF, 2009). Apesar da importância de sua produção, ela nunca teve apoio efetivo da mídia, sendo sua morte noticiada praticamente só pela Fundação Palmares (HERKENHOFF, 2009).

86 Enquanto o livro de Neusa Souza teve sua segunda edição, de 1990, esgotada, o prefácio de Jurandir Freire

Costa continua sendo reeditado no seu livro de artigos.

87 “Da cor ao corpo: a violência do racismo” (COSTA, 1990; 2003).

88Jornal vespertino diário voltado para a periferia do Rio de Janeiro, segundo seu editor Alfredo Herkenhoff