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Marcas da resistência: Sônia e a casa com muita gente

A reincidente tentativa de enxergar a vida dos que foram escravizados sob a perspectiva de uma vida sem importância política, semelhante aos animais, aparece também na forma como foram significadas suas relações sociais pela historiografia até poucas décadas atrás. Privilegiando estudos sobre as relações entre senhores e escravos, atribuíam aos escravizados um papel extremamente passivo politicamente e os caracterizavam por uma animalidade e falta de freios frente aos seus instintos. Lembremos que um dos aspectos das artimanhas do poder é exatamente incidir sobre o sentido da vida, abalando a potência da experiência compartilhada que escreve tanto a história do sujeito, como da comunidade (ROSA,VICENTIN& CATROLI, 2009).

Vocês podem imaginar como eu me sentia na aula de história quando a professora dizia que o negro era servil e o índio indolente! Logo eu, filha de pai negro e mãe índia!(Lélia Gonzalez)128.

O depoimento de Lélia Gonzalez nos aponta claramente alguns dos efeitos perturbadores sobre a possibilidade de o sujeito escrever sua história diante de uma degradação da história dos seus antepassados – daí a necessidade de pensar no que a historiografia produziu e privilegiou sobre as relações sociais no período escravista, tanto do ponto de vista das relações verticais, quanto das horizontais.

No que se refere às relações verticais, ainda que sociólogos respeitáveis tenham denunciado a violência presente nessas relações de servidão apontando o quanto elas teriam imposto condições anômicas de existência aos sujeitos escravizados, acabaram por considerá- los como passivos e secundários no processo para a abolição, creditando aos imigrantes e aos

fazendeiros o papel de protagonistas, esquecendo o engajamento e resistência dos africanos frente à dominação129.

Sobre a outra faceta da vida social, o engajamento em relações horizontais entre os escravos e suas relações familiares, é somente a partir de 1970, com a influência de uma virada nos paradigmas da história social norte-americana e europeia, que vários autores começaram a rever e propor novas formulações sobre a família escrava no Brasil. Até então, as representações do que seria a vida nas senzalas resumia-se basicamente a cenas de promiscuidade sexual, reforçando uma visão estereotipada de ausência de laços de solidariedade e responsabilidade. Os historiadores que até então dedicavam-se às relações familiares entre os escravos, baseavam seus argumentos “numa leitura ‘rala’ dos depoimentos de testemunhas brancas, ou seja, aceitavam quase ao pé da letra os registros recorrentes nesses relatos de uniões instáveis, promiscuidade e pais ausentes” (SLENES, 2013, p. 51). Tal leitura seria fruto, possivelmente, dos equívocos e modelos brancos, muito mais do que da realidade dos negros no cativeiro. Ou seja, seria um entendimento sobre os negros baseado nas projeções e no olhar dos brancos, da mesma forma que Edward Said nos apontou os riscos das representações do Oriente a partir do olhar ocidental. No seu livro Orientalismo: Oriente como invenção do Ocidente130, Said analisa o olhar do europeu sobre o não europeu, segundo

seus desejos, investimentos e repressões. Ou seja, um Oriente construído a partir de uma ideia de superioridade europeia frente a todas as culturas não europeias131.

Robert Slenes (2013) deixa claro esse olhar míope e enviesado do branco atravessado por fortes preconceitos raciais e culturais quando retoma a descrição do viajante francês Charles Ribeyrolles, de meados do século XIX, sobre a escravidão. A importância da retomada desta descrição se justifica por refletir um consenso existente tanto entre os viajantes europeus da época, como entre os historiadores brasileiros até cerca de quarenta anos atrás. Ribeyrolles afirmava que para os cativos não haveria famílias, “apenas ninhadas”, e deduzia, a partir dessa suposta inexistência da família escrava, consequências nefastas no

129 Robert Slenes deixa essa questão muito evidente ao se referir à bibliografia sobre a escravidão: “não era mais

sustentável o argumento, comum na bibliografia clássica sobre a escravidão no Brasil e especialmente no Oeste Paulista, de que as condições do trabalho forçado e as decisões maquiavélicas dos senhores haviam destruído as famílias dos cativos, deixando-os na ‘anomia’, isto é, sem normas e nexos sociais, e portanto sem condições para se mobilizarem de forma ‘politicamente’ consequente contra seus opressores” (SLENES, 2013, p. 18).

130 SAID, Edward W. Orientalismo: Oriente como invenção do Ocidente. 4ª reimpressão, São Paulo: Companhia

das Letras, 2013.

131 Esse paralelo entre o lugar do branco nas relações raciais tomando o seu grupo como padrão universal e os

estudos de Edward Said foram abordados de maneira muito pertinente por Maria Aparecido Bento (BENTO, 2012,p. 30-31).

cotidiano colonial: “Nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem esperanças nem recordações” (RIBEYROLLES, 1859 apud SLENES, 2013, p. 27).

A ausência da flor como equivalente à falta de esperanças nas senzalas é o primeiro índice desse olhar europeu que atribui ao outro um entendimento a partir de seus próprios parâmetros e costumes. Isto porque Slenes (2013) nos mostra que na sociedade africana as flores eram pouco utilizadas tanto com uma função decorativa como simbólica, enquanto este era um costume bastante próprio à sociedade francesa do século XIX.

Portanto, há aí um equívoco estrondoso: que houvesse da parte de fazendeiros esse olhar, explicitado na existência de fazendas consideradas “criatórios de escravos”, não significa que os que foram escravizados tenham se relacionado com o nascimento e a morte como se fossem eventos desprovidos de humanidade, de desejos, de esperanças e de temores. São numerosos os relatos de estratégias extremas e desesperadas, que incluem a tentativa de aborto, de infanticídio e de suicídio, que podemos interpretar como esforços dos que viveram escravizados buscarem conduzir a própria vida em condições absolutamente adversas (G.NOGUEIRA, 2011). Assim como há diversos relatos de tentativas de fugas, diante do receio de se verem separados por vendas decorrentes do tráfico interno.

A recuperação da voz dos sujeitos escravizados e recém-libertos tem permitido observar que tanto nas grandes plantações do Sudeste (SLENES, 2013; MATTOS, 2013; SAMARA, 1989) durante o século XIX, como também em Salvador e no sertão da Bahia desde o século XVIII (G. NOGUEIRA, 2011), a família “era uma das instâncias culturais importantes que contribuíram [...] para a formação de uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por uma grande parte dos cativos” (SLENES, 2013, p. 59).

Ainda que estes novos estudos tenham um caráter fragmentário, uma vez que a grande maioria focaliza fazendas específicas ou determinadas regiões por períodos muitas vezes pouco extensos (SLENES, 2013), não nos parece motivo suficiente para desprezar o que se tem obtido. Dados referentes a diversas localidades de São Paulo, que se repetem em Minas Gerais e Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX, revelam que cerca de um terço dos escravos com quinze anos ou mais eram casados ou viúvos.

Os senhores de escravos, na tentativa de construir condições mínimas de segurança, se viram obrigados a abdicar do desejo de manter seus escravizados estranhos uns aos outros, passando a investir em outros modos de controle132. Com isso, acabaram possibilitando que

132 A possibilidade de constituição de famílias formadas por pessoas escravizadas, na medida em que eram

estes ‘se encontrassem’, estreitassem laços familiares e se unissem em torno de experiências e memórias compartilhadas, ainda que a política de incentivo promovida pelos seus senhores colocasse os escravos muitas vezes disputando recursos bastante limitados (SLENES, 2013).

“É importante frisar que os novos estudos não amenizam nossa visão dos horrores da escravidão [...] Apenas devolvem ao escravismo sua ‘historicidade’ como sistema construído por agentes sociais múltiplos, entre eles senhores e escravos” (SLENES, 2013, p. 54). Isto, nas palavras do autor, significaria reabilitar a “luta de classes” sob o escravismo, algo que ficara praticamente excluído da grande maioria das pesquisas dos sociólogos da Escola Paulista133.

Viver escravizado no Brasil foi uma experiência dolorosa de ressocialização em condições extremamente adversas, mas que produziu toda uma gama de relações comunitárias e familiares – nuclear, extensa, intergeracional – uma vez que se estendeu ao longo de gerações e gerações (MATTOS, 2013). Relações essas que ficaram omitidas e desconsideradas em grande parte das pesquisas históricas, como já foi apontado.

Considerando o quanto a escravidão foi longeva no Brasil, há que se considerar a convivência de três gerações de sujeitos escravizados, simultaneamente, em diversas localidades, o que permitia que se transmitissem pessoalmente ensinamentos de antepassados africanos aos netos brasileiros. Ou seja, estas relações se intensificavam com o passar do tempo e o africano escravizado recém-chegado adentrava não só um campo de relações frente ao seu senhor, mas a uma comunidade escrava que foi produzindo uma identidade africana bastante singular, sem equivalente nem mesmo na própria África (MATTOS, 2013).

Ao recuperar a voz dos negros africanos escravizados e recém-libertos no Brasil, seja através de depoimentos como réus ou como testemunhas em processos de transmissão de bens, inventários de proprietários rurais, processos cíveis ou criminais, seja através dos registros de nascimento e óbito e notícias de jornais, Slenes (1999; 2013), como Mattos (1995; 2013) e Samara (1988; 1989) e outros historiadores que a eles se seguiram, encontraram sistematicamente esperanças e recordações na formação da família escrava134,

num contraponto fundamental aos paradigmas presentes nas representações da vida íntima na senzala, desde a Abolição e que persistem ainda hoje (SLENES, 2013).

133 Neste sentido vale retomar o trecho emblemático de um dos seus pesquisadores, o ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso: “Em todo o processo de ‘passagem’ [para uma sociedade capitalista e burguesa], os escravos, os índios, os peões livres, os libertos, os ‘camponeses’, são [...] uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam as forças transformadoras da história [...] As lutas dos quilombos [...] e a revolta do escravo que matava algum senhor e fugia não eram embriões de uma luta social maior, capaz de pôr em causa a ordem senhorial” (CARDOSO, 1975 apud SLENES, 2013, p. 40).

134 Parafraseando o título de Robert Slenes: Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da

Seria à maneira das ninhadas ou da promiscuidade sexual semelhante ao gado nos pampas135 que a maternidade e a convivência familiar teria sido vivida e transmitida para

Sônia?

Meus avós vieram para cá, não tinha essa casa, fizeram um cômodo, construído com muito suor. Via meus tios, primas, entrando e saindo, pensava “quero uma casa com muita gente”. Desde os nove anos sempre quis família grande (Sônia, 2013).

Quando as pessoas perguntam quantos filhos eu tenho, dizem “Nossa! Nove filhos!”. Eu já vou logo cortando: “Mas sabe porquê?”. Quando nos acostumamos a viver sozinhos, a gente quer uma família. Eu era independente com 14 anos, e eu quis nunca ficar sozinha. Já corto assim. Umas falam da coragem.[...] Quem tem um filho, não tem nenhum. As colegas falam “fez bem”. Porque uma, o filho morreu, outra, o filho foi embora, ficou mais sozinha. Quando vê essa movimentação, vê que é feliz. Não tenho do que reclamar (Sônia, 2013).

Quando Sônia nos relata o espanto que percebe na fala do outro ao dizer sobre os seus filhos, não deveríamos creditar essa surpresa a um olhar que desqualifica o seu ato como escolha, como se fosse um ato despido de quereres, recordações ou esperanças?

O que nos parece fundamental apontar é o quanto na fala de Sônia querer ter uma família que tenha continuidade e seja numerosa é contrastante com a historiografia preponderante até a década de 1970 e que permanece ainda no discurso hegemônico. Como estamos afirmando, trata-se de uma concepção que insiste em considerar a relação entre aqueles nomeados escravos como se fosse indubitavelmente marcada por uma promiscuidade primitiva e a relação entre eles e o nascimento de seus filhos como equiparada à reprodução de animais.

Alguém tem que dar uma sequência na família, sobrenome morre também se não dá sequência. Vou dar continuidade, tanto no espiritismo, como família, netos, filhos. Tive nove filhos, minha família aumentou. Continuidade na família que é bonita [...] Quero continuar aqui, não quero parte de nada136, esse bairro inteiro conheceu meus avós, meu pai... Todo mundo sabe quem foram meus antepassados, sabem que venho de uma família boa, de uma cultura (Sônia, 2014).

135RIBEIRO, s.d. apud SLENES, 2013, p. 143.

136 Sônia afirma não querer a parte do dinheiro que lhe seria cabido caso ocorresse a venda da casa em que mora,

cujo terreno comporta outros cômodos, onde mora a família de seu irmão. O bairro em que Sônia mora está passando por um processo de especulação imobiliária acentuado, principalmente com a chegada de uma estação do metrô nas proximidades.

Seria baseada na inexistência de laços familiares que poderíamos conceber as recordações e a memória de Sônia da experiência da casa de sua avó com tios e primos entrando e saindo, e que teriam lhe permitido as esperanças, já aos nove anos, de uma casa com muita gente para dar continuidade à família bonita? Ou ainda, seria pela inexistência de laços comunitários que Sônia afirma o quanto lhe é fundamental continuar morando na casa onde foi criada, no seu bairro, em que todo mundo conheceu seu pai e seus avós?

É por isso que entendemos a fala de Sônia como um discurso de resistência a essa fagocitose empreendida pelo discurso hegemônico: o discurso que construiu uma versão da história dos negros como passivos ou anômicos e incapazes de laços afetivos familiares ou comunitários.

Sônia nem se apega ao lugar de vítima, nem nega os efeitos da dominação: é incluindo o horror da violência do outro em sua fala que a feijoada e uma casa com muita gente podem ser vistos como uma resistência valorosa e valiosa construção, pois que se dá à revelia daqueles que os querem somente como restos e com os restos.

Tal qual Estamira137, a narrativa de Sônia nos revela “o quanto o poder narrar e

expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos” (SOUSA, 2007, p. 52). Tanto uma como outra, são capazes de nos fazer ouvir e ver a vida resistindo em palavras, conseguindo tirar da invisibilidade e do esquecimento uma enorme potência, conforme as palavras de Edson de Sousa (2007).

137 Estamira foi protagonista de um filme de Marcos Prado, de 2006, que leva seu nome. Tinha à época pouco

mais de 60 anos; diagnosticada como esquizofrênica, vivia há mais de vinte anos recolhendo seu sustento do aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro.

3 SUZANA E O RETORNO DAS ALGEMAS

Você é do Conselho Tutelar?

Foi o que ouvi de uma vizinha de Suzana, quando entrou na cozinha para um café, me observando com uma caneta e algumas anotações no papel.

No mesmo dia, pouco depois, quando terminara a entrevista e estava me despedindo de Suzana, já na calçada, sua filhinha mais nova começou a dar tapas no próprio rosto. Ao ouvir o comentário de sua mãe, “você vai se machucar”, ela continuou, rindo, numa brincadeira arriscada. Até que Suzana olhou para ela seriamente, dizendo:

Para com isso, senão você vai ficar machucada e, se chegar na escola assim, vão achar que fui eu! (Suzana, 2013).

Descoladas do campo discursivo no qual se inscrevem, essas frases poderiam denotar uma preocupação em ocultar algo importante; afinal, por que achariam isso na escola? Como diz a expressão popular: quem não deve, não teme! Assim, a menos que o receio de Suzana fosse o de que uma acusação de fora apontasse para alguma contravenção que ela preferisse omitir, não haveria com o que se preocupar.

No entanto, sua precaução não parece nem excesso de cuidado, nem preocupação desmedida, ela aponta uma pertença num mundo segmentado no que se refere ao campo do direito: há aqueles para quem a sensação é de que a lei os protege e há aqueles que têm a vivência cotidiana de que a lei serve para controlá-los e criminalizá-los. No nosso entender, Suzana e as outras mulheres de nossa pesquisa demonstram uma pertença a esse segundo grupo. O que fica evidente também na fala de sua vizinha, uma vez que mesmo os Conselhos Tutelares, que haviam sido concebidos para democratizar e garantir a justiça a crianças e adolescentes, tornaram-se, principalmente no que se refere às relações familiares dos pobres, dispositivos policialescos, prontos a penalizar e criminalizar, como nos lembra Vera Batista (2012)138.

138 A pergunta que nos foi dirigida pela vizinha de Suzana nos fez lembrar quando estivemos na casa de uma mãe

de alunos da escola em que iniciamos nossa pesquisa. Essa mãe estava atravessando um momento de muita dificuldade e sentia-se muito angustiada, sendo essa a razão da nossa visita que fora, não só autorizada, mas aparentemente pedida e desejada. Foi necessário um bom tempo de conversa para que ela pudesse perceber que não estávamos lá para recriminá-la e que não iríamos fazer nenhum tipo de denúncia ao Conselho Tutelar. Chamou muito a nossa atenção o fato de que ela tenha passado tão rapidamente da posição de alguém que busca auxílio a uma pessoa prestes a ser denunciada.

O que iremos abordar neste capítulo é que se os dispositivos policialescos de controle dirigem-se prioritariamente aos pobres, como nos lembra Vera Batista no trecho acima, dirigem-se ainda mais aos pobres negros. Ou seja, estamos defendendo que, no nosso país, a desigualdade social não engloba ou abarca a desigualdade racial, ainda que possam ter uma articulação bastante íntima, como já afirmamos anteriormente.

O depoimento de Tadeu – um rapaz de 22 anos, branco, que nasceu numa família pobre e é morador de rua do centro de São Paulo desde os 12 anos – relatado pela pesquisadora Lia Vainer Schucman (2014), é emblemático em relação a essa questão.

Era uma maloca ali perto do São Pedro, eram mais de 50 pessoas que moravam dentro. Do nada, todo mundo acordou com uma arma na cara, só eu que não. Eu olhei assim pra todo mundo, ai o policial já perguntou: que você tá fazendo aqui, no meio de negros, esses porcos imundos? E me ofereceu dinheiro pra sair de perto deles

(Tadeu, entrevistado por Lia Schucman)139.

O que a autora nos mostra neste depoimento é que, embora a condição socioeconômica e o estilo de vida fosse o mesmo, os direitos dos negros foram aviltados nesta cena, enquanto Tadeu foi o único preservado da humilhação pela qual os outros passaram.

Essa sensação do sujeito de ser olhado como suspeito, de recair sobre ele um controle social e um processo de criminalização, não é algo individual ou que se dá ao acaso, diz respeito a uma lógica discursiva e de poder que vem sendo construída há muito tempo e que não acomete a população pobre de maneira homogênea. Se, no capítulo anterior, ao relatarmos a violência e a extensão da escravidão, ficou evidente o começo da nossa história como um país extremamente desigual do ponto de vista social e racial, o que iremos abordar é que essa desigualdade será reafirmada continuamente e permanecerá nos indicadores sociais e nas possibilidades de futuro.

Portanto, ao escutarmos Suzana, acrescente-se à questão da pertença a uma condição econômica empobrecida, o fato de recair sobre ela uma suspeição dirigida aos negros e negras deste país, com condições econômicas diversas, assim como com graus de instrução variados.

Tanto assim que, após pesquisa realizada com negros e negras em ascensão social no eixo Rio-São Paulo no início da década de 1980, a pesquisadora e psicanalista Neusa Souza observa que a espontaneidade é um direito que é negado ao negro, “não lhe cabe simplesmente ser – há que estar alerta” (SOUZA, 1990, p.27). Entre os depoimentos que lhe

servem de material clínico, a sensação de estar alerta e prestes a ser acusado aparece com clareza nos hábitos e comportamentos cotidianos.

Estou cansada de me impor. O negro não pode entrar num restaurante, por exemplo, naturalmente. Tem que entrar se impondo (Sônia, entrevistada por Neusa Souza, década de 1980)140.

Neste caso, o se impor, conforme Neusa Souza aponta, é estar sempre em guarda. “Defendido. ‘Se impor’ é colocar-se de modo a evitar ser atacado, violentado, discriminado. É fazer-se perceber como detentor de valores de pessoa, digno de respeito” (SOUZA, 1990, p. 27).

Embora tenham se passado três décadas desde a sua pesquisa, a sensação de que é preciso se impor para ser digno de respeito ou a vivência cotidiana de suspeição não parece ser algo ultrapassado: muito pelo contrário. Tanto assim que não poderia ser mais explícita a