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As taxas de encarceramento há pouco citadas nos ajudam a deslocar a história de Suzana e seus filhos presos da posição de um caso de exceção para a posição de um caso típico, típico dentro de um lugar de exceção. Podemos recolocá-la, bem como sua família, na posição de quem povoa um território, dentro do nosso Estado democrático, que tem suspensos e desrespeitados alguns direitos fundamentais cotidianamente, configurando-se num espaço de exclusão destes direitos. Como nos afirma Paulo Endo (2008), as ruas da periferia de São Paulo, assim como as penitenciárias, seriam lugares em que os agentes do Estado exerceriam todo tipo de comportamento arbitrário e violento, “como se fossem lugares privados, onde as leis não se executam, a não ser sob sua forma negativa e onde vigora o estado de exceção” (ENDO, 2008, p. 18).

Lembremos de Walter Benjamin quando nos diz que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 2014a, p. 245), pois esses espaços de exceção fazem parte do corpo social legítimo e é como se somente a inclusão desses espaços de exclusão pudesse garantir a segurança deste corpo social (GAGNEBIN, 2010). Jeanne Marie Gagnebin aponta que haveria uma correspondência secreta entre esses lugares de exclusão e exceção, os lugares sem lei do presente, com as lacunas impostas pelo não dito do passado. Aqui podemos incluir tanto a nossa colonização

171 Hamilton Borges é um dos organizadores da 2ª Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, 172 Documentário de 2009, com direção de Luis Carlos Nascimento.

173 Grifo nosso.

174 “Sobrevivendo no inferno” é o nome do álbum do grupo de rap Racionais MC’s lançado em dezembro de

que dizimou a população indígena, o nosso passado escravista e as décadas de ditadura militar, lembrando que, em cada um desses momentos, há aqueles que ficaram reduzidos a uma vida que poderia ser retirada ou interrompida. Aqueles homens que não são mais homens, no sentido que podem ser mortos sem que seus assassinatos sejam castigados175 ou

reprimidos, ou seja, sendo o seu extermínio, de certa forma, legitimado e esperado (GAGNEBIN, 2010). Entre os lugares de indeterminação citados pela autora está Guantánamo, os campos de refugiados, mas também as periferias das grandes cidades.

Às formulações de Jeanne Marie Gagnebin, podemos articular a lucidez e poesia de Mano Brown, ao nos mostrar que permanecer vivo nas periferias das grandes cidades passa a ser a exceção, uma vida que contraria as estatísticas.

Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal Por menos de um real

minha chance era pouca

Mas se eu fosse aquele moleque de toca

Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca De quebrada sem roupa, você e sua mina

Um, dois

nem me viu: já sumi na neblina Mas não, permaneço vivo prossigo a mística

Vinte e sete anos contrariando a estatística (“Capítulo 4 versículo 3”, Racionais Mc’s)

São esses dados da conjuntura brasileira sobre o encarceramento e o genocídio negro, caracterizando os lugares de exceção, que nos remetem novamente à fala de Suzana.

Suzana nos faz lembrar daquilo que Benjamin aponta como um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa (BENJAMIN, 2014). Tal aproximação entre as gerações se relaciona com o que Gagnebin nos diz do passado que insiste em perdurar de maneira não reconciliada no presente, ressuscitando nos inúmeros corpos violentados e mortos o que, desse passado, não passa (GAGNEBIN, 2010).

Sejam dois dos seus filhos maiores de idade, seja seu irmão, seja um dos seus ex- maridos e, mais recentemente, um filho menor de idade: a família de Suzana nunca saiu do mundo das algemas.

Cheguei em casa do trabalho e tinha tido a maior confusão aqui: o Beto176 foi levado pra delegacia, me ligaram enquanto eu estava lá trabalhando, cheguei e tava tudo revirado. Vieram pra levar ele pra delegacia [...] me desculpe mesmo, não queria furar com você, eu gosto de falar com você, tinha marcado, mas vou ter que desmarcar, estou numa confusão ainda vendo o que fazer (Suzana, 2014)177.

O que ela nos mostra é a presença da polícia e da prisão no cotidiano da sua vida.

“Nossa, Suzana, você tem tanto problema, dois filhos presos!”. Eu digo: “Não fui eu que fiz nada errado – me viram saindo 4:00 h pra trabalhar e eles terem o que comer. Tinham que me ter como exemplo. Vou continuar saindo, bebendo minha cervejinha, não vou abrir mão da minha felicidade”. Algumas pessoas entendem, outras dizem: “Como pode deixar o filho?! Falar assim do filho?!”. Não posso passar a mão na cabeça. Amanhã pode virar estuprador, matador, posso ser a próxima vítima. Não abandono, mas eles fizeram...( Suzana, 2013).

Quando mais adiante na entrevista, insiste nesta frase constantemente dirigida a ela, “Nossa! Você tem dois filhos na cadeia?”, o que será que está nos dizendo?

Tem gente que fala também: “Nossa! Você tem dois filhos na cadeia?!”. Eu digo: “eles fizeram, agora têm as consequências, não vou passar a mão na cabeça. Fizeram coisa errada, agora tem que pagar por isso”. Vou lá, vou visitar, não vou largar. Tem uma prima que o filho dela foi preso, ela não quer saber, eu é que fui visitar. E olha que ela dizia que não queria que o filho dela brincasse com os meus, como se não fossem bom exemplo. Agora ela nem quer saber do filho dela. Eu não passo a mão na cabeça, senão, acham que podem fazer qualquer coisa que tudo bem, estuprar, matar. Então quando falam, eu digo: “o meu exemplo eles tiveram, se escolheram fazer, agora aguenta” (Suzana, 2013).

Esse “Nossa!” de início nos parecia referido a uma precaução frente a nós, conforme dissemos na Introdução deste trabalho, um pedido de cautela para não a responsabilizarmos ou condenarmos de antemão. Não descartamos esta como uma das significações de sua fala, no entanto, não nos parece que sua repetição deva ser atribuída somente a esta razão.

A partir do que foi exposto sobre o encarceramento, o espanto dos outrosparece cínico ou ingênuo: seria esse o motivo de ela nos fazer testemunha e ouvir também o “Nossa! Você tem dois filhos na cadeia?!”? Por que o espanto? Qual a surpresa? Ela seria mais uma de

176 Nome fictício do seu filho de 15 anos.

177 Escutamos essa fala quando estávamos confirmando um encontro previamente agendado com Suzana: por

tantas mães que não teriam escapado ao destino de ter seus filhos encarcerados: uma mulher negra, como tantas outras mulheres negras.

Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo

As negras duelam para vencer o machismo, o preconceito, o racismo Lutam para reverter o processo de aniquilação

Que encarcera os afrodescendentes em cubículos na prisão (“Mulheres negras”, 2013)178

Poderíamos também pensar ao contrário: apesar de Suzana ser a regra num dos nossos lugares de exceção, falar do espanto através da fala dos outros pode ser uma forma de sustentar o fato de que o encarceramento de jovens negros, ainda que possa ser tão comum, não é normal, no sentido de que não tem nada de natural: é político.

As palavras que vêm na sequência do seu “Nossa!”, no entanto, nos reenviam ao começo da frase, como uma pontuação que decide pela sua significação e nos permite avançar novamente179. Seja ao responder:“me viram saindo 4:00 h pra trabalhar e eles terem o que

comer. Tinham que me ter como exemplo”, seja o “meu exemplo eles tiveram, se escolheram fazer, agora aguenta”, num caso, ou no outro, o que se segue ao “Nossa!”é a repetição do “meu exemplo”. Vale dizer, no entanto, que, no primeiro caso, trata-se do “meu exemplo”que viria a partir do que a viram fazer, e, no segundo, o “meu exemplo eles tiveram” e é nessa distância entre um caso e o outro que nos perguntamos: qual a diferença entre o exemplo que eles teriam que ter seguido ao vê-la e o exemplo que eles tiveram?

O exemplo que, segundo Suzana, eles teriam que ter seguido, seria:“me viram saindo 4:00 h pra trabalhar e eles terem o que comer”. Provavelmente foi isso que Suzana pensava estar transmitido: que fossem honestos, esforçados e trabalhadores como ela. No entanto, a conexão entre “os filhos terem o que comer” e para isso ser necessário “acordar às 4:00 h da manhã para trabalhar” já é a prova de uma condição social de quem vive num território de exceção e, assim, o que esse pedido poderia significar para eles? A visão de um exemplo calcado na miséria ou no trabalho?

Lembramos o que Paulo Endo (2008) nos coloca sobre as dificuldades de existir e a busca por reconhecimento de crianças e adolescentes pobres e negros nas grandes cidades

178 A música “Mulheres negras” foi composta por Carlos Eduardo Taddeo, ex-integrante e fundador do grupo de

rap Facção Central.

179 Lembremos que, diferentemente de uma sessão analítica que permite não só uma pontuação mas a escuta da

fala do paciente a partir da nossa intervenção, no caso apontado nesta pesquisa, trata-se tão somente do que se produziu, em nós, a partir da fala de Suzana, sendo esse reenvio para ela impossível pelo próprio propósito e enquadre da pesquisa.

brasileiras. Segundo ele, “tornar-se honesto e trabalhador, projeto já bastante custoso, torna-se desvalorizado quando a honestidade e o trabalho têm como consequência a precariedade e a humilhação” (ENDO, 2008, p. 20).

Nesse sentido, o que os filhos de Suzana teriam visto ao observá-la cotidianamente? Não poderia ter significado para eles a transmissão de uma subalternização cotidianamente presente no trabalho, dificultando ou estreitando a possibilidade do jovem que ama sua família de admirá-la e reconhecê-la no horizonte de seus próprios ideais (ENDO, 2008)?

Seria muito diferente, para seus filhos, “acordar às 4:00 h da manhã para terem o que comer” ou ser “o cara que se humilha no sinal por menos de um real”? O seu ato não poderia estar sendo compreendido por eles como se fosse uma conivência ou submetimento a uma condenação do discurso hegemônico de que os pobres não teriam direito à mobilidade, devendo somente ir de casa para o trabalho, do trabalho para a casa (ENDO, 2008)?

Além disso, será mesmo que era esse o exemplo que queria que seguissem e o que desejava para eles era essa mesma situação precarizada de trabalho?

Eu pensava esse vai ser “Antonio Carlos180advogado”. Todos os meus filhos têm dois nomes. Todos seriam doutores... doutores da sem-vergonhice. Não estão nem aí com nada. Talvez seja culpa minha, o fato de estar criando sozinha, lutando para dar tudo para eles. Para não ficar com o pé descalço, porque o amiguinho tinha. Nem terminaram de estudar, agora é que estão voltando a estudar. Estão vendo que estou lutando. Vai numa festinha, os meninos todos arrumadinhos, tem que estar arrumadinho também: “se arruma, vai tomar banho, vai se arrumar”. Minha família sempre foi assim. De manhã tem que tomar banho, se arrumar, criei meus filhos assim. Claro que vai sentir vergonha de ficar com calça rasgada, sapato velho... tentei sempre estarem de igual, para não ter diferença. Usar marca porque trabalha. Também gosto de marca [...] Tem que aprender que tudo é caro, aprender quanto pesa no bolso (Suzana, 2013).

Suzana não desconsidera que tenha havido uma escolha em cada ato dos seus filhos:“se escolheram fazer... agora aguenta”. Ela não retira em nenhum momento a responsabilidade deles pelos atos que cometeram, o “não vou passar a mão na cabeça deles” também insiste em sua fala, parece tentar reafirmar que não é conivente com a transgressão à lei,“senão, acham que podem fazer qualquer coisa que tudo bem”. Mas o que Suzana parece não escutar na sua fala é que ela tenta, através de um esforço pessoal, fazer desaparecer para os filhos o mundo desigual, na tentativa de não ter diferenças.

Como negar que a escolha singular deles, por estar inscrita num campo discursivo e político, torna a chance de se tornarem doutores, mais do que uma exceção, quase uma impossibilidade? Não se pode desconsiderar que o que estaria reservado como futuro a eles e confirmado nas estatísticas se dividiria, basicamente, entre a humilhação e a resignação, o encarceramento ou a morte.

Sabemos que muitas vezes, diante do impacto traumatizante frente à violência e arbitrariedade do Outro, alguns sujeitos não conseguem mais do que se calar, o que seria um embrião de resistência e recusa. Outros, apresentam reações violentas (ROSA, 2002). Isso porque “a submissão do indivíduo à lei só tem sentido quando a lei não se transforma numa máquina de suplicar, ou seja, quando as bases em que se fundamenta uma sociedade são de natureza diferente das do terror e da exclusão” (MANNONI, 1995, p. 35).

É nesse sentido que nos parece extremamente coerente a proposta de Nilo Batista de incluir e considerar a experiência social dos réus – com as oportunidades que lhes foram dadas ou não, a assistência que lhes foi ministrada ou não – de forma que o campo da responsabilidade se torna um campo da coculpabilidade: correlacionando a responsabilidade do sujeito com a do Estado, fazendo sentar no banco dos réus, lado a lado, os réus e a sociedade que os produziu (BATISTA, N., 2007).

No entanto, essa coculpabilidade não só dificilmente é reconhecida socialmente, como é bastante incomum que os réus ou suas famílias consigam responsabilizar também o Estado pelas suas ações. Assim também Suzana chama seus filhos, mas não o Estado, para que sentem no banco dos réus. E aí, talvez por perceber o quão insuficiente e ineficaz é o ato de responsabilizá-los sozinhos, é que se pergunta se foi sua a culpa de que seu projeto sobre eles não tenha se concretizado: teriam se tornado doutores da sem-vergonhice por ela os estar criando sozinha, lutando para dar tudo para eles?

Será que quando observa a distância entre o nome duplo que lhes deu na expectativa de que fossem todos doutores, e a situação em que se encontram hoje, se dá conta do quanto essa sua expectativa contrariaria as estatísticas?

No momento em que ela desloca a responsabilidade absoluta deles sobre o que fizeram, o faz às custas de transferir para si a possibilidade de ser julgada também. O que ela parece não escutar, ao deixar o Estado de fora da responsabilização, é que ela tenta através de um esforço individual fazer desaparecer, para os filhos, a desigualdade. Lembremos que a impossibilidade constante de possuir deixa no sujeito uma sensação de engodo, uma sensação de embuste pelo não cumprimento das promessas que lhe são sempre adiadas (ENDO, 2008). Quando a questão da disparidade e desigualdade econômica no Brasil volta a aparecer na fala

de Suzana, através do comentário sobre a vergonha que eles sentiriam de “ficar com calça rasgada, sapato velho”, ela responde tentando responsabilizar-se pessoalmente e sozinha pelo que seria preciso para “estarem de igual”.

Quem deveria se envergonhar do nosso país ser o oitavo país mais desigual do mundo: ela? Quem deveria dar conta disso: ela?

Se considerarmos que Suzana e sua família habitam um desses espaços de exceção incluídos no nosso Estado democrático, o “Nossa!”dela nos concerne e, mais do que nos espantarmos, também nós, com a prisão de seus filhos num universo prisional desta monta, devemos atentar para a dimensão de humanidade que resiste e insiste no seu olhar.

Ela parece ter encontrado um modo singular de não ser “o cara que se humilha no sinal” e talvez tenha sido esse o exemplo que seus filhos tiveram. Mas, justamente este exemplo que tiveram não se coaduna com o exemplo que teriam que seguir, ao vê-la “acordando às 4:00 h da manhã para trabalhar e lhes dar de comer”. Pois parecem muitas vezes absolutamente inconciliáveis o não se humilhar com o ser trabalhador, dependendo do quanto as condições de trabalho estão precarizadas ou degradadas. Assim também o não se humilhar e não desacatar a autoridade policial, muitas vezes também se mostram inconciliáveis, dependendo das arbitrariedades da polícia de plantão. Talvez seus filhos não tenham ainda encontrado uma maneira conciliável de escapar da subalternização na rua, na escola e no trabalho, mantendo-se estudantes ou trabalhadores (ENDO, 2008). Talvez isso só seja realmente conciliável numa sociedade justa e igualitária. No entanto, Suzana parece ter encontrado uma maneira de resistir, sustentando e conseguindo reconhecer os rastros de humanidade mesmo diante do horror.

Ela teima em não se calar! Tanto assim que seu “Nossa!”pode ser escutado, também, como uma ênfase na sua condição, sublinhando que embora mãe de dois filhos presos, não desistiu dos desafios e dos seus projetos de vida: “vou continuar saindo, bebendo minha cervejinha, não vou abrir mão da minha felicidade”. E isto, como nos diz, não significa de forma alguma abandoná-los ou esquecê-los, pois vai continuar visitando-os.

Ela insiste e resiste: quando está contando que um dos seus filhos foi preso por uma acusação que seria dirigida ao outro, nos diz o quanto considera que aí tem um ato ético. O fato de que alguém, para não incriminar o próprio irmão, seja preso no lugar deste, ainda que isto possa custar anos de reclusão, parece devolver uma dimensão de humanidade a eles e a ela, no meio do horror.

Um irmão foi preso no lugar do outro! Achei bonito isso, criei meus filhos muito juntos e ele assumiu o crime do irmão; confessou como se tivesse sido ele, porque jamais iria querer incriminar o irmão dele (Suzana, 2013).

Ela insiste e resiste: não se humilha e não se cala diante da arbitrariedade do Outro.

Quando meu irmão foi preso, o policial parou aqui em frente, deu um tapa no meu irmão. Eu vi, dei um tapa no policial, aí ele bateu no meu irmão, bati nele. Eu sei que estava ele em cima do meu irmão e eu em cima do policial. Ele até falou “Nossa! Parece que a senhora não tem medo de homem?!”. E eu vou ter medo de homem? Eu disse: “Como vou ter medo de homem? O senhor acha que tive um pai e sete filhos homens e vou ter medo de homem por quê?”. É isso, não é porque eu tenho peito e vagina que tenho que deixar. Falo mesmo. Não deixo de falar (Suzana, 2013).

Suzana não se intimida nem silencia, não deixa de falar. Ela teima em continuar existindo, teima em desafiar a violência instituída, teima em desafiar um Outro que se apresenta insistentemente tão consistente como se pudesse decidir sobre a vida e a morte daqueles que ela ama (ROSA, 2002). Sua reação acaba por surpreender o policial: “Parece que a senhora não tem medo de homem?!”.E deveria?

Neste capítulo fizemos um trajeto para situar o mundo em que Suzana habita, como mãe, filha, irmã, companheira e ex-mulher de homens tão marcados por um destino anunciado. Afirmamos que tanto a pobreza como o encarceramento e os homicídios têm cor, e ela, como mulher, negra e pobre, está imersa nesse universo. Ora se acha responsável pelo destino de seus filhos, ora os responsabiliza completamente: é bem difícil se dar conta de que as cartas já estão muito marcadas. No entanto, ainda assim, encontrou um jeito de não se calar e é essa a dica fundamental que ela nos deixa, apontando um caminho para seguir: “Não deixo de falar”.

No capítulo seguinte, pensamos que ficará mais clara a forma como Suzana significa o olhar do outro sobre ela, como mulher e como negra, o que envolve pensar sob a perspectiva do racismo e do sexismo. Talvez seja um bom começo para entender o espanto deste policial diante do fato de ela reagir e não se intimidar, demonstrando não sentir medo de homem. Mas será somente no capítulo subsequente que tentaremos nos aprofundar na dica que ela nos apontou. Por que vias teria conseguido não deixar de falar e não abrir mão da sua felicidade ainda que viva num mundo que insista em tentar silenciá-la, invisibilizá-la, apagar a memória de seus antepassados, encarcerar e assassinar seus homens queridos e olhá-la constantemente como suspeita?

4 SELMA: SOBRE A SERVIDÃO, O RACISMO E O SEXISMO

Eu tinha 17 anos, estava com meu filho Pedro que é mais branquinho e uma mulher falou pra mim: “Que bom que sua patroa confia em você, deixa você sair com o filho dela”. Eu não estava entendendo, falei que era meu filho, aí ela falou: “Espero que não tenha sido seu patrão que fez isso em você!”. Você sabe né?! Tinha muito isso