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1.4 Psicanalistas negras esquecidas e silenciadas: apagamentos sucessivos de uma

1.4.1 O Segredo de Virgínia Bicudo

O pai de Virgínia havia nascido de “ventre livre”, afilhado do importante fazendeiro de café Coronel Bento Bicudo; sua avó paterna (Virgínia Júlio) havia sido escravizada e, posteriormente, alforriada. Sua mãe vinha de uma família de imigrantes italianos, os Leone. “Virgínia, Leone e Bicudo eram três nomes que circulavam pelo mesmo espaço social, o da

72 Não iremos abordar possíveis diferenças entre depoimentos e testemunhos, uma vez que tomaremos tanto as

entrevistas quanto o material clínico colhido por estes pesquisadores, como resenhas clínicas, o que já foi exposto no nosso Capítulo Metodologia.

73 Buscando não reincidir nesse esquecimento, alguns desses depoimentos encontram-se citados no decorrer

deste capítulo e outros estarão ao longo desta tese.

74 Vale lembrar que o baiano Juliano Moreira (1873-1933), considerado o fundador da psiquiatria moderna no

Brasil, também era negro, sendo reconhecido como a primeira pessoa a difundir a psicanálise no nosso país (ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998).

75 Registramos como exceções, todas bastante recentes, que retratam tanto a trajetória de Virgínia como

socióloga e psicanalista, assim como sua origem e sua história, os trabalhos de: Maio (2010a;2010b); Cytrynowicz (2013); Teperman e Knopf (2011); Moretzsohn (2013), o livro Vírgínia Bicudo: a trajetória de uma psicanalista brasileira, de Jorge L. Abrão (2010) e a dissertação de Janaína Gomes (2013).

fazenda, exercendo papéis distintos (o escravo, o imigrante, o dono das terras)” (GOMES, 2013, p.47).

Virgínia Bicudo (1910-2003) não só foi a primeira mulher a fazer análise na América do Sul e uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, como foi também quem defendeu a primeira dissertação no Brasil sobre relações raciais.

Apesar dessa dupla pertença no que se refere à sua formação acadêmica e de contribuições em momentos fundamentais tanto na área da sociologia como da psicanálise, não foi só do meio psicanalítico que Virgínia Bicudo quase desapareceu:

[...] comecei a inquirir meus colegas das ciências sociais sobre a existência de tal pessoa [Virgínia Bicudo]. Silêncio. Ninguém a conhecia. Os poucos que já tinham ouvido falar sobre ela, não sabiam que era negra (Janaína Damaceno Gomes, doutora em sociologia pela USP, 2013)76.

Esse desconhecimento sobre Virgínia Bicudo nas ciências sociais é bastante espantoso, primeiro, pela importância da sua dissertação de mestrado, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Defendida em 1945, conseguiu antecipar, juntamente com a pesquisa de Oracy Nogueira, alguns pontos fundamentais sobre as relações raciais no Brasil, que seriam pesquisados somente na década seguinte. Ela apontava a existência do preconceito de cor e o quanto a ascensão social, ao invés de fazer desaparecer o preconceito racial por diluir as desigualdades, o evidenciava, como algo que não era superado com a melhora das condições culturais e sociais do sujeito. Apesar disso, sua tese foi quase perdida, estava mofando na biblioteca da instituição em que ela cursou sua pós-graduação até que recentemente, em 2010, foi recuperada e publicada por Marcos Chor Maio (2010b).

Como se isso não fosse suficiente, anos depois, Virgínia Bicudo foi uma das pesquisadoras do conhecido Projeto Unesco, que foi fundamental para os estudos raciais no Brasil, pois representou o marco da desmontagem do mito da democracia racial neste país. No entanto, quando da publicação desta pesquisa, Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, em 1955, os trabalhos de Oracy Nogueira, Aniela Ginsberg e Virgínia Bicudo foram tratados como “apêndices” da pesquisa principal, a qual supostamente teria sido coordenada por Florestan Fernandes e Roger Bastide, os únicos que ficaram conhecidos, posteriormente, como autores do projeto (MAIO, 2010b).

Já o seu esquecimento na psicanálise se deu de outro modo, como veremos. Foi durante o seu curso de ciências políticas e sociais da Escola Livre de Sociologia e Política, que tomou contato com a psicologia social e, a partir daí, com textos de psicanálise que a motivaram a buscar o médico e psicanalista Durval Marcondes (MAIO 2010a; 2010b; GOMES, 2013).

Em 1936 a psicanalista Adelheid Koch veio da Alemanha para o Brasil, tornando-se a primeira analista didata do país e Virgínia Bicudo logo se tornou sua paciente77.

Eu fui a primeira pessoa que usou o divã da Doutora Koch. Mas não é pra contar isso pros outros, viu? Os médicos não vão gostar. Estou fazendo brincadeira agora. Acontece que fui mesmo... A Doutora chegou, todo mundo com receio, com medo... E a Doutora: “Estou organizando aqui, quero ver quem quer...”. “Eu quero!” Eu sempre brinco que estreei o divã no Brasil (Virgínia Bicudo, entrevista a Marcos Maio, 1995)78.

No início dos anos 1940, Virgínia Bicudo começou a lecionar as disciplinas de higiene mental e psicanálise, junto com Durval Marcondes, na ELSP, o que transformou essa instituição num espaço importante de difusão e de instituição de “saberes psi” no Brasil (MAIO, 2010a).

Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história (Virgínia Bicudo, entrevista a Anna Verônica Mautner, 1998)79.

O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento. Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fosse problemas sociais, culturais. Então me matriculei na Escola de Sociologia e Política [...] Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque se o problema era esse preconceito eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado no nível sociocultural. No segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira, tive contato com a psicologia social. Comecei a ler e ali encontrei a

77 Segundo depoimento dado por Virgínia aos 85 anos, Adelheid Koch teria começado a atender pacientes

somente a partir de 1939, após aprender o idioma; no entanto, segundo Maio (2010a) e Gomes (2013), Koch teria começado a atender em 1937, ano em que Virgínia teria se tornado sua primeira paciente.

78 MAIO, 2010a, p. 350. 79 MAUTNER, 2000, p. 6.

psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: ‘É isso que estou procurando’ (Virgínia Bicudo, entrevista a Cláudio Tognolli, 1994)80.

Embora Virgínia atribua sua busca tanto pela sociologia como pela psicanálise ao preconceito de cor e à expectativa de rejeição que teria sentido na própria pele, esse dado foi muitas vezes não só omitido, como distorcido. No seu documento de trabalho ela foi identificada como “branca”, a mesma cor que ela aparenta na placa fixada na entrada da biblioteca da Sociedade de Psicanálise Brasileira, em sua homenagem.

“A cor atribuída a Bicudo revela uma das faces da ideologia do branqueamento no Brasil, em que a aparência de um indivíduo com marcas de origem africana poderia ser atenuada em função do grau de instrução, ocupação, aparência” (MAIO, 2010, p. 310), nos diz Marcos Chor Maio, utilizando-se das formulações da própria Virgínia Bicudo, publicadas em 1955, como explicação para o que teria se passado em relação à vida dela e à sua cor. “Seu processo de branqueamento foi notório. Seus traços afrodescendentes foram minimizados desde as mudanças socioeconômicas do pai, passando pela sua instrução e ocupação, até sua aparência”81 (ALMEIDA, 2011).

Em 1954, no Congresso de Higiene Mental, Virgínia foi vítima de acusações e difamações violentas, sendo chamada de charlatã pelos médicos82 contrários ao exercício da

psicanálise por não médicos. Ela já havia se tornado a primeira psicanalista não médica reconhecida pela IPA (International Psychoanalytical Association) no país.

A tal ponto esse episódio lhe deixou sequelas que alguns pesquisadores o apontam como fator decisivo para sua mudança para Londres no ano seguinte, por um período de cinco anos, em que fez especialização em atendimento de crianças.

[...] era a hora da Higiene Mental apresentar. Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: “Absurdo! Psicanalistas não médicos!” Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: você é charlatã! Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer (Virgínia Bicudo, entrevista ao Projeto Memória da SBPSP).

80 BICUDO, 1994, p. 6.

81 Gomes (2013, p. 153) considera que Virgínia, no seu processo de ascensão, não teria embranquecido, teria

perdido a cor temporariamente, mas teria tido uma velhice negra. Isto parece ficar evidenciado por algumas de suas fotos: se durante um longo período ela aparece com tailleur, chapéu e cabelo alisado, com um modo de vestir bastante formal, numa de suas últimas fotos, podemos ver Virgínia com turbante e seu cabelo natural.

82 Flamínio Fávero, o primeiro diretor do Conselho de Medicina de São Paulo, foi um dos que comandou a

ofensiva de desmoralização e acusação sobre Virgínia. À época eles chegaram a distribuir panfletos em que se lia: “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo” (GOMES, 2013, p. 61).

Difícil saber o quanto cada uma das características de Virgínia Bicudo estaria em jogo nessas acusações truculentas: mulher, negra, psicanalista não médica.

O fato de que o nome de Bicudo não apareça como referência nos trabalhos de psicanálise que tratam da questão da negritude, nem nos artigos de psicólogos que pretenderam recuperar o trajeto dos estudos das questões raciais do Brasil, não pode ser atribuído a uma suposta falta de importância histórica de suas produções ou de suas posições, nem na sociologia, nem na psicanálise. Também não pode ser explicada por uma falta de exposição de sua parte: Virgínia Bicudo, além de clinicar e dar palestras, participou ativamente da institucionalização da psicologia e da psicanálise no Brasil, criou um programa na Rádio Excelsior83 que fazia bastante sucesso à época, além de ter uma coluna no jornal

Folha da Manhã, chamada Nosso Mundo Mental.

“Arquivos roubados, tese mofada, entrevistas não publicadas, citações não feitas. Esses são alguns dos percursos do trabalho acadêmico de Virgínia Leone Bicudo” (GOMES, 2013, p. 153). Fazemos nossa a reflexão de Janaína Damaceno Gomes: “por que ela mesma tornou-se um segredo que só começou a se desvelar para mim, por força do acaso e das coincidências [...] o segredo de Virgínia é Virgínia como segredo” (GOMES, 2013, p. 27).